quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

TERRA DA GENTE


Assisti ao desfile cênico da Festa da Uva de Caxias do Sul e fiquei pensando na obviedade: aquela é uma cidade que cresce. Cresce, porque os seus cidadãos tem orgulho da cidade e nela investem a sua força de trabalho. Sentem vontade de trabalhar e de fazer a cidade crescer, porque o trabalho é bem remunerado; são reconhecidos enquanto participantes da sociedade à qual pertencem. Há quem possa dizer que não dá para comparar com Bagé - Caxias do Sul é um centro de força e energia. É verdade.

     Morei em Santa Maria durante os meus tempos de universitário, enquanto cursava Comunicação Social, e vi aquela cidade crescer em todos os sentidos. Na época, anos’70, a Reitoria ficava no centro. Quando saí de lá, cinco anos depois, a Reitoria já estava instalada no mais belo campus universitário que eu conheço. Tenho muitos amigos queridos em Santa Maria, pessoas que raramente vem a Bagé para não ficarem deprimidas.

     Fui convidado, em 1978, para fazer um estágio remunerado em Boa Vista, capital de Roraima, durante dois meses. Lá, trabalhei na Rádio Roraima, depois Rádio Nacional de Boa Vista, onde produzia dois programas por dia. E lá eu conheci o esfuziante povo macuxi. Naquela época, a cidade ainda não tinha duzentos mil habitantes, mas crescia, inclusive com a participação de muitos gaúchos, alguns de Bagé. Nas horas vagas, conheci hábitos e cultura daquele povo. Andei de bicicleta por toda a cidade, pesquei no meio do Rio Branco, em cima de uma barcaça e tirei duas belas piracatingas – que é o nosso jundiá -, e, naquele dia, quando voltei, ufano, para o Campus Avançado de Santa Maria e apresentei os meus trunfos para as cozinheiras elas riram de mim, dizendo que eram peixes pequenos que iriam dar para os cachorros.

     Outra vez, fui até a floresta, junto com o pessoal do Projeto Rondon, que prestava auxílio à população marginalizada, e me senti o próprio Rondon sob o verdadeiro verde, buscando trilhas que ainda não tinham sido demarcadas, encontrando indígenas que riam das nossas incertezas e dos nossos medos e caboclos que ainda usavam o pilão para fazer farinha. Certa noite, de madrugada, um dos formandos em medicina foi visitar o berçário da cidade e eu o acompanhei. Infelizmente, era época da ditadura militar e eu não pude fotografar o horror, nem reportar, depois, o que tinha visto - crianças que eram somente pele e osso, devido à desnutrição das mães, e que estavam destinadas a morrer em poucos dias, talvez em poucas horas.

     Em contraponto, os grandes palacetes dos latifundiários, que recebiam verbas fabulosas do governo do Estado, para desmatar e fazer da floresta campos de cultivo e de pecuária. O tempo passou, a ditadura fardada acabou, mas, pelo que sei de Roraima e do restante da nossa Amazônia as coisas pioraram em muito. Nem Projeto Rondon existe mais. Quando voltei a Bagé, os carros continuavam subindo e descendo a Sete.

     Morei em São Leopoldo, nos anos ’80, por cerca de dois meses e parecia estar em outro mundo. É uma cidade onde as pessoas são reconhecidas pelos seus méritos e não pelos seus bens. Tem jornais, revistas e muita atividade cultural. Tem indústrias. Na biblioteca pública, uma sala reservada apenas para enxadristas. Ali encontrei pessoas que se tornaram amigas e me convidaram para participar da equipe da Sociedade Ginástica de São Leopoldo, como sócio-atleta. Joguei com eles um torneio inesquecível, quando pela primeira vez São Leopoldo venceu o zonal daquela região. Nos finais de semana, a Rua Grande é fechada para automóveis e as pessoas passeiam e se encontram; fazem planos e são alegres, e não precisam ficar restritas a bares para buscar um prazer quase artificial.

     Com minha família, quando pequeno e ainda na minha juventude, viajei por quase todo o Brasil, com exceção do Nordeste e de alguns estados do Norte. Em cada cidade e lugarejo uma surpresa, uma novidade, um deslumbrar. As memórias que mais guardo foram os momentos de encantamento junto às esculturas do Aleijadinho em Congonhas do Campo, a surpresa do demasiado ouro nas igrejas de Ouro Preto, um momento de descanso para tomar mate junto à igreja da Pampulha, ao lado das pinturas de Portinari, o quarto onde Getúlio Vargas morreu, conservado como estava no dia da sua morte, no que é hoje o Museu do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, um entardecer às margens do rio São Francisco... O Niemeyer que me perdoe, mas Brasília, além de desnecessária e artificial, é uma cidade esquizofrênica; não sabe se pertence ao povo ou aos grupos oligárquicos que lá se sentem à vontade para as suas tramas. Lembra a ilha flutuante, descrita por Jonathan Swift em “As Viagens de Gulliver” – que só se dignava descer ao reino para cobrar impostos e fingir bondade.

     Em outra ocasião, fiquei surpreso quando cruzamos a fronteira de Santa Catarina com o Paraná. Havia um cartaz onde estava escrito: “Aqui se trabalha!”. Bastante antipático, como se no resto do Brasil ninguém trabalhasse... Mas lá os campos são todos cultivados, até a beira das estradas, como em algumas cidades do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde se trabalha e o povo é feliz.

     Como em Caxias, Santa Rosa e tantas outras cidades, principalmente na região da serra, onde o povo e a natureza são respeitados e as pessoas, mesmo quando muito velhas, acreditam no futuro que é fabricado todos os dias, com entusiasmo, e a vida sempre é uma surpresa, porque muitas são as possibilidades.

     Conheço muitas pessoas que gostariam de ir embora de Bagé, se pudessem. Mas estão presas pela família, pelo trabalho, que é pouco, mas fazer o que? E os jovens que podem estão indo embora de Bagé, porque aqui não há futuro. Esta é uma cidade opaca, quase uma cidade-dormitório para a grande maioria do povo. É a terra da gente, eu sei, e deveríamos falar bem dela, lembrar das verdes coxilhas, de Santa Tecla, das promessas dos políticos especializados em política e que somente pensam em reeleição e em ganhar mais... Mas aqui também é a terra do “já teve”. De dez anos para cá, talvez mais, é uma cidade em decadência. É certo que canteiros são “revitalizados”, museus são refeitos, praças são destruídas para depois serem reconstruídas de outra maneira, e outras maquilagens... Mas também é certo que o nosso povo anda de cabeça baixa. Cada vez mais.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O GÁS DO IRÃ


Desta vez não são as jazidas de lítio do Afeganistão ou as reservas de petróleo do Iraque que estão sendo visadas pela OTAN e Estados Unidos, mas o gás do Irã. 

     De acordo com a edição do Pravda, de 24/03/2010, “todas as agências de energia reconhecem que as primeiras fontes do gás natural do futuro estão no Oriente Médio e na Eurásia, incluindo a Rússia.”

     “Dentro do Oriente Médio, o Irã é sem dúvida o principal possuidor de reservas de gás. O seu campo de South Pars é o maior do mundo. Se convertido em barris de petróleo equivalentes, o South Pars do Irã tornaria diminutas as reservas do campo petrolífero de Ghawar, na Arábia Saudita. Este é o maior campo de petróleo do mundo e, desde que entrou em operação em 1948, Ghawar tem sido efetivamente o coração pulsante do mundo para o abastecimento de energia primária. Na era que se aproxima de domínio do gás natural sobre o petróleo, o Irão retirará à Arábia Saudita da condição de principal fornecedor de energia do mundo.”

     Toda essa conversa de defesa do mundo ocidental ou da grande ameaça que representa o Irã ao construir centrais nucleares é somente conversa. Quem desejar armamento nuclear, hoje em dia, basta comprar. É claro que ogivas nucleares não estão à venda nas feiras, mas em um mercado não tão secreto assim. Conforme o jornalista Ernesto Carmona, o diário britânico The Guardian, revelou, em 23 de maio de 2010, como Israel ofereceu a venda de oito ogivas nucleares - em 1975 - ao regime do apartheid. O periódico tornou público um documento secreto sul-africano que tem a assinatura do então Ministro da Defesa israelense, Shimon Peres e de PW Botha, naquela época o seu par sul-africano, que deixaram um registro ultra-secreto de um encontro em Zurique (Suíça).

     Depois do fim da União Soviética, muitas ogivas nucleares passaram a pertencer a países que se tornaram independentes da Rússia, e comenta-se sobre possibilidade de vendas dessas ogivas. Este é um mundo nuclearizado. O grande interesse em atacar e destruir o Irã é o gás.

     Ainda de acordo com o Pravda em língua portuguesa, “há razões sólidas para o gás natural (metano) estar a tornar-se o rei dos combustíveis fósseis. Em primeiro lugar, tem um poder calorífico muito maior do que o petróleo ou o carvão. Ou seja, mais calor produzido por unidade de combustível. Em segundo lugar, é o combustível mais limpo, pois emite 30 por cento menos dióxido de carbono em comparação com o petróleo em comparação com o petróleo e 45 por cento menos em comparação com o carvão. Em terceiro lugar, o gás é mais eficiente para o transporte, tanto como matéria primária forma comprimida ao longo de pipelines enterrados como combustível para veículos.” 

     Além do gás – a principal atração dos mercadores que preparam uma urgente guerra contra o Irã – existem razões geopolíticas e ideológicas. Conquistar o Irã é o mesmo que dominar todo o Oriente Médio e encurralar a Rússia.

     As razões ideológicas dizem respeito à necessidade que o Ocidente tem de combater os países que tem a religião muçulmana ligada ao Estado, porque, geralmente, são países nacionalistas. E o capitalismo pode até saber lidar com países comunistas, mas tem no nacionalismo o seu principal inimigo. Pior ainda, o presidente do Irã – e não somente ele no país persa – nega o holocausto judeu. E isso é considerado um pecado imperdoável.

     Israel, com o auxílio do submisso Estados Unidos, está muito desejoso de atacar o Irã, por todas as razões citadas. Mas os Estados Unidos querem, primeiro, destruir a Síria e, lá no Pacífico, a Coréia do Norte volta e meia ameaça recomeçar a guerra com a Coréia do Sul, o que os deixa confusos em relação a qual guerra deve ser a preferida.

     No entanto, o gás do Irã talvez seja o mais atraente botim.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

LIBERDADE PARA O TRÁFICO





Você sabe o que é “pequeno traficante?” É uma pessoa pequena que trafica ou é um traficante que pratica tráfico de entorpecentes em pequena escala? Talvez seja um aprendiz de grande traficante, aquele que repassa o produto que recebe do grande traficante que, por sua vez, repassa em grande escala o produto que recebe dos fabricantes de drogas.

     O Senado acaba de liberar os pequenos traficantes. Bem na época do Carnaval. Talvez, lá em seu íntimo, os senadores tenham pensado como ficariam os viciados numa época em que o vício é incentivado. Sem os pequenos traficantes não há venda de drogas, ou vocês imaginam que o grande chefão de alguma rede de tráfico irá se dar ao trabalho de entregar drogas de porta em porta? Para isso existem os pequenos traficantes que, agora, são criminosos menores, de acordo com o seu trabalho.

     Se forem presos, os pequenos traficantes receberão penas alternativas, como serviços prestados à comunidade, mas os pequenos traficantes já prestam serviços comunitários. O que é um vendedor de drogas, senão alguém que passa o seu produto para um número de usuários cada vez maior? Usuários de drogas, comumente chamados de “viciados”, necessitam desse serviço para que possam ficar calmos e tranqüilos, vivendo o seu mundo muito particular e não saiam a incomodar os outros pecadores que não são viciados com desesperadas crises de abstinência devidas à ausência dos pequenos traficantes.

     Liberar os pequenos traficantes é liberar o tráfico de drogas, mas quem disse que o tráfico de drogas não está liberado no Brasil? É claro que há todo um jogo de cena, com policiais e militares invadindo favelas, prendendo grandes traficantes e queimando enormes quantidades de drogas. Mas é um jogo de cena. Se existem usuários, compradores, viciados, sempre haverá uma maneira para que essas pessoas recebam os seus produtos preferidos. Se um traficante não se comporta bem é preso; se os produtos tendem a baratear, queimam-se algumas toneladas para que a lei de oferta e procura prevaleça e os preços sejam controlados.

     O usuário de drogas não regateia preço. Ele quer a droga, necessita dela e aceita o preço que for estipulado. Não se queixa para o PROCON, não chama a imprensa para dizer que está sendo explorado e esconde-se para usar a droga. Com exceções, como os que usam maconha e crack. Os primeiros não se escondem porque a maconha está liberada e porque não vêem nenhum mal no seu uso; os outros, porque perderam totalmente a consciência e são retirados das ruas porque os cidadãos que usam drogas mais caras não gostam daquela visão grotesca.

     Usar drogas também é uma questão de classe social, às vezes de status.

     Aos muito pobres, o crack e coisas piores, para que se matem rapidamente e parem de incomodar. Para a classe média, maconha e drogas leves; para os muito ricos, cocaína, heroína, ecstasy e todos os tipos de drogas sintéticas.

     Todos eles necessitam do pequeno traficante, que agora está liberado para traficar. Por vezes, os muito ricos fazem festas, onde incluem muitas drogas exóticas e, provavelmente, convidem os grandes chefes das quadrilhas de traficantes. É quando novas drogas são experimentadas e os pequenos traficantes servem como mordomos.

     Em 1972 o cineasta espanhol Luis Buñuel dirigiu “O Doce Charme da Burguesia”. Em uma das cenas, depois de um belo jantar os convidados passam para outra sala para tomar o café e, pouco depois, chega um mordomo que serve um pó branco para todos aspirarem. Tudo muito chique.

     E agora o Senado brasileiro liberou os pequenos traficantes para cumprirem o seu papel mais comodamente. Acredito que foi um dos poucos momentos em que o nosso Senado tirou a sua caquética máscara da hipocrisia. 

     Por falar em máfia, de acordo com “O Diário Online”, de 19 de fevereiro de 2012, “neste ano, escolas de samba do Grupo Especial do Rio vão receber R$ 29,8 milhões, entre patrocínios e convênios com Petrobras, governo do Estado e prefeitura. Entre as beneficiadas, pelo menos sete são controladas pelo jogo do bicho, duas têm suspeita de ligação com milicianos e uma mantém relação com traficantes. É o que mostra inquérito civil do Ministério Público do Rio, que investiga repasses de recursos públicos para as 13 agremiações”.

     Vocês acreditam que todo esse vinculo monetário com o Poder fará com que as escolas de samba do Rio apresentem enredos criticando a corrupção, desmatamento, usina de Belo Monte, desemprego, miséria e coisas do gênero? 

     Por exemplo, a Beija-Flor de Nilópolis tem como samba-enredo cantar as maravilhas da cidade de São Luís, capital do Maranhão, terra do Sarney, onde a sua filha, Roseana Sarney é governadora. 

     Por um descuido, a polícia carioca prendeu Anísio Abraão David, Presidente da Beija-Flor, pouco antes do carnaval, mas o Sarney ficou sabendo e o Anísio já está solto para pular o carnaval. Para quem não se lembra, o Sarney é o Presidente do Senado.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

A REVOLUÇÃO


Recebi uma mensagem através do Facebook dizendo que a revolução no Brasil está começando e que o primeiro sinal foi a vitória da constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa no STF. Em seguida, recebi outra mensagem dizendo que a revolução no Brasil está começando e que foi iniciada com as diversas marchas contra a corrupção e que os corruptos devem fugir para não serem atropelados.

     Corri para olhar os jornais. Nada de revolução. Poderão me dizer que os jornais que olhei fazem parte da grande mídia reacionária. É verdade. Costumo ler de passada aqueles jornais para entender o que eles estão pensando e o que querem vender para a massa. Todos dão as mesmas notícias, porque recebem as mesmas informações das mesmas agências de notícias – devidamente peneiradas – e as repassam para os seus leitores. Nos sábados e domingos é pior, como se o resto do mundo não existisse; como se o Brasil se resumisse a Rio e São Paulo.

     Fui colocar o lixo no enorme caixão de lixo - recentemente inventado pela reacionária Prefeitura de minha cidade - pensando que a Revolução não começa nem termina: é um processo sociológico inevitável, com momentos de ruptura institucional, quando o povo não agüenta mais ser explorado, mas que não se esgota nesses momentos, ou não seria revolução; costuma avançar e retroagir, conforme as forças sociais em conflito, mas existe desde que as pessoas se organizaram em sociedade, buscando a felicidade através de melhorias materiais e espirituais.

     Também lembrei uma famosa resposta dada por Fidel, a um repórter ingênuo que lhe perguntou quando ele (Fidel Castro) iria cortar a barba. A resposta foi: “quando a revolução terminar”. 

     A Revolução não termina; avança, evolui, muda de aspecto, de acordo com as exigências sociais, por vezes parece involuir para momentos de sectarismo e despotismo, quando um grupo se considera “dono da revolução” e obriga o povo a aceitar as suas idéias e desmandos, em outros momentos é golpeada por oligarquias que se sentem diminuídas em seu poder e apelam para as armas. Mas continua, mesmo sob um regime ditatorial, como um rio contido entre margens muito apertadas, mas que sabe que o seu destino é o mar.

     Estava pensando sobre essas coisas, quando cheguei à enorme caixa de lixo na rua e vi uma senhora de cabelos brancos remexendo no lixo. Eu não a conheço, deve ser uma pessoa que chegou à miséria recentemente. Ou, talvez, estivesse procurando no lixo da minha rua o que não tinha achado em outros lixos de outras ruas. Para aquela senhora a revolução não chegou. Ela não deve pertencer a nenhum sindicato, é velha demais para trabalhar e bem que gostaria de fazer uma revolução, mas não tem forças. Enquanto isso, tenta sobreviver como pode, como as revoluções usurpadas de nosso país.

     Naquele momento, lembrei da Dilma e de suas férias carnavalescas na Bahia. Era inevitável a comparação.

     Quando voltei para casa nesta tarde de calor, olhei mais uma vez as notícias. Talvez alguma coisa tivesse escapado à minha observação... E vi!

     Milhares de pessoas pulando atrás do Cordão da Bola Preta e do Galo da Madrugada, no Rio de Janeiro. Até parecia uma revolução. Mas estamos no Brasil.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A MISÉRIA DA MISÉRIA



Certa vez, em Porto Alegre, vendo pessoas dormirem ao relento, e falando a respeito com alguém que estava comigo e morava perto dos que hoje são chamados “sem teto”, recebi a resposta de que eles (os sem teto) gostam de viver assim. Não entendi e perguntei por que. A resposta foi: “Porque sim”.

     Não foi a única vez em que ouvi comentários de que as pessoas que não tem casa – eufemisticamente chamados de “moradores de rua” – sentem prazer com essa situação. Muitas pessoas acreditam nesse estranho prazer, mas não trocariam de lugar com os sem teto. Não sentiriam o prazer que eles sentem.

     Sem teto também é um eufemismo, porque pessoas que não tem teto, também não tem paredes, portas, janelas, banheiro, cozinha, sala, escritório. Sequer tem um jardinzinho ao fundo da não-casa onde possam plantar flores ou o que desejarem. Não tem nada. Vivem em situação de extrema miserabilidade, dependendo dos que tem para sobreviverem.

     Este é o país onde ter ou não ter é a principal questão. Ao vencedor as batatas e ao perdedor a ruína física e moral. Este é o país da barganha e quem não tem nada não pode barganhar. É o país do jeitinho e da malandragem, mas é impossível ser malandro quando a miséria é uma companheira cruel, e um sonho dar um jeitinho na vida quando se mora na rua à mercê dos piedosos cidadãos.

     Pois um desses moradores de rua, chamado Nelson Renato da Luz, em outubro do ano passado foi preso em flagrante quando tentava furtar placas de zinco da estação República do Metrô, em São Paulo. Dois dias depois, a juíza da 14ª Vara Criminal da Capital converteu o flagrante em prisão preventiva.

     No entanto, o laudo pericial comprovou que o suspeito é inimputável (sofre de doença mental e é pessoa comprovadamente incapaz de responder por seus atos) e, portanto, não poderia ser preso.

     “Inegável que a simples soltura do acusado não se mostra apropriada, já que nada assegura que, em razão dos delírios decorrentes da certificada doença mental, não volte a cometer delitos”, afirmou o desembargador Figueiredo Gonçalves, relator do habeas corpus que pedia a soltura do morador de rua.

     “Todavia, evidente também que inadequada a prisão preventiva, por colocar no cárcere comum pessoa que demanda cuidados médicos, situação que põe em risco a incolumidade física de eventuais companheiros de cela e do próprio paciente”, completou o desembargador.

     O relator cogitou da internação provisória de Luz em um hospital de custódia e tratamento, mas concluiu que a medida só se aplica nos casos de crimes violentos ou praticados com grave ameaça.

     Luz não se enquadra em nenhum dos casos. A solução encontrada pela 1ª Câmara de Direito Criminal, a partir do voto do relator, Figueiredo Gonçalves, de mandar o acusado responder ao processo em prisão domiciliar - quando ele não tem residência fixa - criou outro problema para o suspeito. Apesar de estar solto, poderá ser detido novamente.

     É um daqueles casos em que a Lei auxilia o criminoso e, ao mesmo tempo, o prejudica. Auxilia, porque o condena a prisão domiciliar e o prejudica porque o condenado não tem domicílio, não tem casa e – pasmem! – poderá ser preso novamente por não cumprir a pena de prisão domiciliar.

     Neste caso, o apenado é considerado doente mental e o artigo 196 da Constituição diz:

     Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

     É direito de todos e dever do Estado. Sabemos que isso não acontece, mas é o que reza a Constituição, e o Estado deveria ser responsável também pela saúde desse cidadão, independente da gravidade do seu delito.

     Além disso, se a pena é de prisão domiciliar, penso que caberia ao Estado providenciar uma casa para o senhor Nelson Renato da Luz. Caso contrário, ele corre o risco de ser preso por culpa do próprio Estado que o condenou a prisão domiciliar, sendo ele um sem teto. Se o Estado assim não fizer – não providenciar a casa para que Renato cumpra a sua prisão domiciliar – estará descumprindo a sua própria ordem, ou sendo omisso no caso de Renato ser preso novamente por não ter casa.

     Também vemos na Constituição Federal que:

     Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

     IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

     Portanto, cabe ao Estado, através dos seus agentes autorizados, evitar a existência dos sem teto. E, se existem, o Estado está descumprindo com uma das suas funções constitucionais.

     Se formos mais adiante, a razão do crime de Nelson – crime de furto – foi provocada pela ausência do Estado que teria o dever de não só ampará-lo economicamente, evitando que caísse em extrema miséria, mas, também, por não lhe dar qualquer assistência social ou não providenciar cuidados para a sua saúde.

     Mas o Estado, nesses casos, não funciona – prefere o paradoxo – assim como não funciona em outros casos.

     Por exemplo, na Constituição, artigo 225, está escrito:

     Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

     No entanto, temos o novo Código Florestal, que a presidente Dilma deve sancionar, e que é um exemplo de como se deve depredar o meio ambiente.

     É gigantesca a distância entre as classes sociais no Brasil. Houve tempos em que eu acreditava que era por maldade que eles faziam esse tipo de coisa, mas é por falta de visão. Vêem o povo como nós vemos as formigas. Ou pior: como micróbios. Micróbios trabalhadores que podem ser descartáveis quando perdem a utilidade.

     Pessoas que não trabalham, que vivem na rua e que enlouquecem porque não lhes é dada qualquer perspectiva talvez não sejam vistas nem com microscópio. Pior ainda: são considerados não-existentes, cadáveres vivos que não tem direito a nada, porque nada possuem.

     O que acontecerá com Nelson Renato da Luz?

     Será preso e solto repetidamente, até o momento em que um grupo desses meninos e meninas da classe média decidir que matá-lo a pontapés é a melhor solução para a sociedade?

     Ou esperará, entre uma prisão e outra, as reformas da presidente Dilma, que diz pretender acabar com a miséria?

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

NA FLORESTA (I)


Depois de muito caminharem, o professor Silvestre e seu auxiliar, Óscarparaobrasil, chegaram a um lugar onde viram uma casa, com uma bela varanda e cercada por hortas e árvores frutíferas. Estavam cansados e famintos. Já fazia mais de quatro horas que perambulavam na floresta amazônica, de clareira em clareira - provocadas pelo desmatamento e queimadas criminosas - e em cada uma dessas clareiras paravam alguns minutos para chorar. As lágrimas que restavam eram poucas e já estavam temerosos de gastarem todas quando chegaram àquele lugar que parecia encantado.
     Bateram à porta e ninguém atendeu. Bateram novamente e nada. Por fim, desistiram e sentaram-se nos degraus da varanda que era guardada somente por uma jibóia que não ligou para eles e continuou melancolicamente enrodilhada. Parecia triste e sozinha.
     Óscarparaobrasil afagou a jibóia e perguntou ao professor Silvestre se não seria o caso de colherem algumas daquelas frutas, mas o professor Silvestre o impediu com a sua célebre frase: “A sorte não abandona os destemidos” e puseram-se a esperar ao lado da jibóia, embora não soubessem quem estavam esperando.
     O sol já estava se pondo, junto com as esperanças dos dois, quando ouviram ruído de passos e, logo em seguida, alguma coisa parecida com um ser humano, mas indistinguível na forma, apareceu e perguntou: “Quem são vocês?”.
     “Um momento, Shu. Eu é que pergunto: Quem são vocês?”, falou uma moça que vinha logo atrás da estranha forma que parecia humana e transparente. Era loura, alta, olhos azuis translúcidos, vestindo botas e roupas de couro e carregando em uma das mãos uma espingarda de dois canos.
     Depois de recompor-se da surpresa, o professor Silvestre disse: “Perdoe-me, bela senhora, por estar invadindo os seus domínios. Eu sou o professor Silvestre e este é o meu auxiliar Óscarparaobrasil. Fazemos parte da expedição da ONG “Chorar Pela Amazônia” e nos perdemos dos outros quando estávamos cumprindo o nosso dever de chorar pela Amazônia em um dos muitos lugares devastados por queimadas. A fumaça era tanta que nos ajudou a chorar, e quando, finalmente, saímos do lugar com os olhos úmidos e purificados na alma não vimos mais ninguém. Caminhamos durante horas e chegamos a este lugar que parece um paraíso no meio do inferno – se me permite a imagem vulgar – e fomos recebidos apenas por esta jibóia que estava dormindo e agora parece muito interessada no meu auxiliar”.
     “Hermelinda, comporte-se e vá caçar ratos!”, disse a moça, fazendo com que Hermelinda – a única jibóia que ainda conserva acento no “ó”, por ser contra as novas regras ortográficas – deixasse o colo de Óscarparaobrasil. Espreguiçou-se e foi em direção à floresta. Enquanto isso, a porta da casa tinha sido aberta pelo ser que parecia humano e não tinha forma definida, e todos entraram.
     “Nada mais eu estranho nesta floresta, senhora”, disse o professor Silvestre. Nem mesmo...” – e apontou para a estranha figura que se confundia com móveis e paredes. “O nome dele é Shuniazzar”, disse a mulher, “um estranho animal mitológico que fala. E o meu nome, hoje, é Ingrid. Às vezes, é Gerda, ou Maria, ou Gertrude. Depende do dia. O povo da floresta me chama de Alemã na Floresta, o que é óbvio, porque eu sou alemã e moro na floresta. Eu não me importo que me chamem assim. Vim para cá quando era muito pequena. Havia uma grande guerra na Europa e a Alemanha estava sendo invadida pelos inimigos. Foi quando os meus pais decidiram me colocar em uma barquinha que atravessou o Mediterrâneo e o Atlântico e me trouxe para este país. Shuniazzar me encontrou quando eu estava transpondo a pororoca; me protegeu e me ensinou todas as coisas que um estranho animal mitológico que fala pode ensinar. Quando eu cresci, me ajudou a construir esta casa. E o senhor, é professor de que? Mas deixe para contar durante a janta. Shu, estamos com fome”.
     Imediatamente, o professor Silvestre e Óscarparaobrasil, sem que tivessem se mexido, perceberam que estavam em uma sala, iluminada por grandes velas colocadas em castiçais antigos, onde havia uma mesa, cadeiras, belos quadros nas paredes, e um piano ao fundo, ao lado de uma janela. Sobre a mesa, pratos e travessas contendo comida que parecia apetitosa. Ingrid, percebendo a surpresa deles, disse que aquele era mais um dos truques de Shuniazzar, que fossem se servindo e não fizessem cerimônia, porque via que estavam com muita fome. Em seguida, serviu o vinho, que apareceu subitamente sobre a mesa e, depois de alguns minutos, quando já se ouvia o piano tocar músicas que embelezavam a alma e abriam o apetite, repetiu a pergunta que fizera ao professor Silvestre: o que ele ensinava?
     Com o estômago agradecido e a voz embargada – talvez por ter chorado muito durante o dia – o professor começou a dizer “Pois dona Ingrid...”, quando foi interrompido pela dona da casa: “Ingrid não, agora é Gertrude, já passou da meia-noite”. “Pois dona Gertrude” – recomeçou o professor – “saiba que este país que me engana, ai de mim Copacabana, sobre a cabeça os aviões e sob meus pés os caminhões, como diz o poeta, não só engana a mim como a quase todos que nele moramos, porque madame diz que a vida não melhora, que a vida piora por causa do samba – como diz outro poeta -, mas não é por causa do samba, mas do desgoverno que nos aflige como um caminhão derrapando na estrada de Santos, como diria outro poeta, e nós, indignados brasileiros fundamos a ONG “Chorar Pela Amazônia”, que reúne intelectuais de todo o país, e eu – que sou professor de Anatomia da Natureza e Fisiologia Sistêmica dos Bens Renováveis – convidei os membros da nossa ONG para virmos até a Amazônia. Nem todos vieram, alguns preferiram ficar chorando em casa, mas o pequeno grupo que aqui está já faz três dias que chora desesperadamente cada vez que vemos uma parte da floresta desmatada ou incendiada. Hoje, eu e Óscarparaobrasil nos perdemos dos demais e caminhamos até encontrar a sua bela morada.”
     “Que interessante!” - disse Gertrude “E existem outras ONGS que se interessam pela Amazônia?”
     “Inumeráveis!” - respondeu o professor. “Algumas se destacam mais, como a ONG “Deitados Em Berço Esplêndido”, que faz um grande trabalho pela Internet, ou a ONG “Garota da Amazônia”, que recolhe assinaturas em Ipanema para protestar contra a desvirgindade da floresta; a ONG “Poetar É Preciso”, formada por poetas de todo o Brasil, que escrevem poemas contra a devastação da Amazônia e brevemente lançarão o seu primeiro livro, a ONG “O Último Suspiro”, cujos membros fazem reuniões para suspirar sentidamente pela Amazônia e pela Mata Atlântica, a ONG “Me Engana Que Eu Gosto”, que faz vigílias em frente ao Congresso Nacional para vaiar deputados e senadores... E tantas outras...
     “Que bonito!” – disse Gertrude. “E eu achando que só existia a ONG “Macunaímas Traídos”, formada pelo povo da floresta que vê cair as suas árvores e volta e meia grita: “Estamos sendo traídos!”, e depois voltam a dormir em suas redes, ou a ONG “Grandes E Poderosos Índios Valentes”, formada por índios aculturados que, quando sabem de algum novo desastre florestal fazem aquela dança onde sapateiam e gritam “hu-hu-hu-hu” e depois voltam para assistir televisão ou jogar vídeo-game, ou a ONG “Guerrilheiros Da Floresta”, formada por jovens intelectuais que distribuem panfletos para os madeireiros, enquanto eles cortam as árvores, e depois voltam para as suas casas para escrever novos panfletos. E tantas outras... Mas vejo que estava enganada.”
     “O nosso esforço conjunto um dia dará seus frutos, a sorte não abandona os destemidos” – disse o professor. “É verdade, professor”, respondeu Gertrude, mas já é hora de dormir. Amanhã eu vou caçar e vocês dois estão convidados”. “Agradeço, mas eu não mato animais”, disse o professor. “Nem eu”, respondeu Gertrude. É uma caçada diferente, o senhor vai ver”.
     Em seguida, a sala se transformou em um quarto espaçoso, onde se viam duas camas e um guarda-roupa. O professor Silvestre e Óscarparaobrasil já não se surpreendiam de nada. As suas mochilas estavam no chão, uma ao lado de cada cama. Trocaram de roupa e se deitaram. Quando Hermelinda, no meio da noite, entrou, sinuosa e lânguida, pela janela e foi enroscar-se sobre os pés de Óscarparaobrasil, por quem já tinha alguma afeição, ele perguntou: “Comeu o seu ratinho, Hermelinda?”

     A noite passou como costumam passar as noites: dormitando em sua escuridão, até o momento em que foi definitivamente acordada pelo Sol, que pedia para brilhar, e recolheu-se, resmungona, para o outro lado do globo. Óscarparaobrasil acordou com as amorosas lambidas de Hermelinda e disse para ela que estava na hora de caçar ratos. Hermelinda quase respondeu que nem só de ratos vive uma jibóia, mas conteve-se, educadamente, e saiu pela janela, preguiçosamente.
     O professor Silvestre estava acordado desde o momento em que os róseos dedos da aurora tinham entrado pela janela e tocado na sua testa. Óscarparaobrasil voltou-se para ele e disse “Bom dia, professor” – ao que o professor retrucou, impiedosamente: “Se você não usasse esse cabelo moicano e não passasse tantas horas assistindo futebol talvez percebesse que este dia só é bom na aparência. Quantas árvores estão sendo derrubadas neste exato momento!, e só resta a nós, as forças desarmadas – porque as armadas devem estar dormindo nos quartéis ou invadindo favelas -, só nos resta chorar. Choremos, pois”.
     Choraram pela Amazônia e pelas maldades dos humanos que destroem o mundo e, em seguida, sentiram urgente necessidade de ir ao banheiro. Naquele momento surgiram dois banheiros, que os atraíram como os olhos da Iara e onde entraram empurrados por uma força interior irresistível. Depois, banhados e com as roupas trocadas, quando pensavam em sair do quarto viram-se na mesma sala onde tinham jantado na noite anterior. Sobre a mesa, bules fumegantes de café e leite, queijos, geléias, pães os mais diversos, patê, manteiga e tudo o que deve conter um legítimo café colonial. “Desculpem pela ausência de margarina”, disse Gertrude, que já tomava o seu café. “Eu não uso gordura trans. Passaram bem a noite?”
     O professor Silvestre disse que tinha dormido como uma criança e Óscarparaobrasil quase se queixou de Hermelinda, mas preferiu perguntar como era que Shuniazzar adivinhava até pensamentos.
     “Shuniazzar é muito prático”, disse Gertrude, “ele não adivinha, se antecipa; deixa tudo programado com antecedência através de formas de pensamento que são acionadas e se transformam em realidade quando nelas pensamos. Só não pode interferir na vontade das pessoas; caso contrário, a floresta não estaria sendo devastada. Ele é apenas um ser mitológico que fala”.
     “Muito curioso”, disse o professor, “mas de qual mitologia?”
     “Ele nunca me disse nem eu perguntei”, respondeu Gertrude. “Mas penso que de todas ou um pouco de cada uma. Shu não gosta de discriminação. Mas por que Óscarparaobrasil tem esse nome tão expressivo?”
     “É que meus pais”, respondeu Óscarparaobrasil, “sempre assistiram todos os filmes norte-americanos e desejam muito que um dia o Brasil seja premiado com um Oscar, o que seria um enorme salto qualitativo para a nossa cultura, segundo eles, e, quando eu nasci me deram o nome de Óscarparaobrasil, assim mesmo, com acento, mas eu sempre quis trocar de nome. Gostaria tanto de ser João, ou José, ou até Mário, apesar daquela piada... Só não troco para respeitar a vontade deles, e uso o meu cabelo estilo moicano porque rima com norte-americano. Mas o professor me ensinou que todos os moicanos foram mortos pelos brancos daquele país e agora eu uso o cabelo assim em forma de protesto silencioso”.
     “Ah, sei... E você respeita muito os seus pais?”
     “Muito.”
     “E o seu Governo?”
     “Muito.”
     “Então, o que você faz aqui na floresta, Óscarparaobrasil?”
     “Eu também respeito muito o professor.”
     “Você tem alguma perturbação?”
     “Não. Eu sou perfeitamente correto. Vou cursar advocacia, casar com uma moça certinha, que não pense muito, como eu, ter dois filhos, entrar para a Maçonaria e para o Rotary e viver feliz. Eu só me perturbo quando durmo com uma jibóia nos pés ou quando encontro um estranho ser mitológico que fala. Mas logo aceito qualquer situação como normal, seguindo o conselho do meu pai que sempre me disse, como regra de vida, que devo respeitar a todos e aceitar tudo.”
     “Bem, senhores – disse Gertrude – está na hora da caçada.” Levantou-se e pegou a sua arma de dois canos, colocou um cinturão com cartuchos preso na cintura e disse: “Vamos?” Saíram os quatro e, depois de alguns passos, já estavam em plena floresta. Caminharam cerca de uma hora em silêncio até que Gertrude mandou parar. “Estão ouvindo?” – perguntou. O professor esforçou-se por ouvir qualquer coisa diferente dos ruídos esquivos da floresta, sem nenhum resultado, e foi Óscarparaobrasil quem disse: “Parece uma banda de rock!” À medida que caminhavam o ruído se tornava mais claro: “rrrrrrrrróqpóqrrrrróqpóqrrrrrrrrrrr”.
     “O que será isso?”, perguntou o professor Silvestre, “Algum outro animal mitológico, que não fala e só ruge?” “É o ruído do desmatamento, professor”, respondeu Gertrude, e em seguida disse para Shuniazzar, que estava em algum lugar ali por perto: “Shu, precisamos ficar invisíveis”. Imediatamente uma estranha neblina verde os envolveu. Aproximaram-se ainda mais e viram vários homens portando motosserras e cortando gigantescas árvores. Dois ou três caminhões estavam estacionados mais adiante para carregar a madeira. Outros homens cortavam as árvores que já tinham sido derrubadas.
     Gertrude pegou a sua arma e a carregou com dois cartuchos. Imediatamente, o professor Silvestre, horrorizado, disse: “Por favor, senhora, não os mate!” Ao que Gertrude respondeu dizendo ao professor que ele e seu auxiliar poderiam aproveitar para chorar um pouco, enquanto ela fazia algo mais prático. “E não se assuste tanto, professor, eu não vou matar ninguém”. Colocou a arma no ombro, apontou, no momento em que o professor começava a chorar, junto com Óscarparaobrasil, e deu o primeiro tiro. Ouviu-se um grito e um dos homens que estava mais perto começou a correr para todos os lados e a gritar esganiçadamente.
     Gertrude continuou a atirar. A cada tiro, gritos e correria. Até que os homens entraram nos caminhões como puderam e deram a partida. Gertrude dava grandes gargalhadas. O professor aproximou-se e perguntou: “O que a senhora fez?”
     “Chumbinho nas nádegas, professor. Só que hoje eu misturei com sal e pimenta moída. Pode apostar que esses não voltam mais. Devem estar pensando que é algum espírito protetor da floresta. Viu? Não matei ninguém. Eles sequer ouviram o barulho dos tiros, Shu não deixou.”
     Enquanto voltavam, o professor Silvestre fez um longo discurso sobre a não-violência, que os protestos deveriam sempre ser pacíficos, lembrou Gandhi e outros pacifistas, disse que cabia ao Governo tomar qualquer atitude mais enérgica, chegou a lembrar a nova Lei da Palmada...
     Finalmente, Gertrude respondeu: “E o Governo faz o que, professor? Estatísticas, enquanto a floresta está sendo derrubada? É preciso ser muito mulher para viver na floresta. Eu não sou a única. Enquanto os homens bebem, se queixam, fazem abaixo-assinados, choram, gemem, batem o pé e gritam hu-hu-hu-hu, as mulheres agem. Chumbinho nas nádegas, ou nos glúteos, se o senhor preferir, pode resolver muitos problemas, além de proteger a natureza. Isto sim é que é legítima defesa do outro, professor!”.
     Óscarparaobrasil ouvia a conversa e fazia o possível para não pensar.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

O GOVERNO EM XEQUE



Um estado policial sempre será ditatorial, mesmo que se mascare de democrata. Criar um estado policial é desejar ser refém da polícia, conforme vem acontecendo nos últimos doze dias na Bahia e, agora, no Rio de Janeiro. A presidente Dilma disse que não aceitaria determinadas exigências dos policiais baianos em greve, o governador Jaques Wagner apelou para o Exército, mas o que podem fazer os militares contra uma greve de militares, mesmo que policiais?

     Nada que se perceba. Cercaram a Assembléia Legislativa de Salvador, onde estavam mais de dois mil grevistas, prenderam alguns, atiraram balas de borracha em outros, mas os grevistas saíram e continuaram a greve.

     Qual a estratégia quando você quer derrubar um governo, ou, no mínimo, desmoralizá-lo? Greve nos serviços essenciais, como a polícia militar e os bombeiros.

     Um golpe de estado não surge do nada ou da vontade de alguns generais insatisfeitos. É planejado cuidadosamente. E greve nos serviços essenciais é sempre o primeiro passo. A população se sente insegura e ao Governo só restam duas opções: ou concordar com todas as exigências dos grevistas e perder a força e autoridade que se espera de um Governo, ou reprimir a greve.

     Não cabe a um governo civil, que se diz democrata, atos de repressão e não é provável que o Governo venha a ceder em todas as frentes aos grevistas. Se isso acontecer, será considerado um governo fraco.

     Mas o Governo já é fraco. As seguidas denúncias de corrupção, as quedas de ministros e assessores, a insatisfação geral contra um Executivo que sobrevive através de suspeitas alianças no Congresso e, para culminar, a crise no Judiciário, que põe a nu os altíssimos salários de juízes e desembargadores e revela que nada será feito se algum malfeito for descoberto, porque a máxima punição para aqueles senhores é o presente da aposentadoria, mostra um Governo cambaleante e desmoralizado.

     E o povo se sente roubado.

     Pior que isso. Cada vez mais se percebe que esta é a democracia dos banqueiros e empresários, restando ao povo pagar impostos e viver de sonhos.

     Junte-se a isso a recente viagem de Dilma a Cuba, que não agradou nem um pouco o seu aliado do Norte. Contra todas as expectativas da extrema-direita, Dilma não quis se encontrar com a mercenária cibernética Yoani Sánchez e recusou-se a falar nos direitos humanos em Cuba, alegando – justamente - que se fosse o caso de falar em direitos humanos teria que ser de maneira multilateral, incluindo a base estadunidense de Guantánamo, onde as piores torturas são perpetradas contra prisioneiros de guerra pelo Estado norte americano.

     Isso incomodou bastante aquele país que espalha o terror pelo mundo. Deixou o Governo dos Estados Unidos bastante irritado, no momento em que organiza a guerra civil na Síria e prepara a invasão do Irã.

     Quando invadiram o Vietnã, nos anos sessenta, os Estados Unidos fizeram questão de promover ditaduras militares em quase toda a América do Sul, que consideram seu terreno.

     A História não se repete, mas oferece lições.

     Talvez a greve dos PMs da Bahia seja justa, mas foi divulgado que eles ganham R$2,400,00 por mês, e se todo brasileiro ganhasse – no mínimo - esse salário teríamos um país justo. É uma greve curiosa, porque se estende para outros estados, como o Rio de Janeiro, estrategicamente organizada às vésperas do Carnaval e nos dois Estados (Bahia e Rio de Janeiro) onde o Carnaval atrai milhares de turistas do mundo inteiro.

     Mais curioso ainda é o fato de nesses poucos dias de greve dos policiais da Bahia, além dos inúmeros atos de vandalismo e assaltos, terem ocorrido mais de 150 homicídios. É como se a greve dos policiais tivesse aberto a jaula dos sedentos de sangue, dando a eles o direito de matar.

     Os assassinatos tem por objetivo legitimar a greve, mostrando ao povo baiano quão essenciais são os serviços da polícia. Mas surte o efeito contrário, no instante em que a população se dá conta de que está desprotegida e que os próprios policiais em greve são acusados de vandalismo, senão de coisas piores.

     O Governo está em xeque. Ou toma decisões enérgicas ou a sua óbvia fraqueza poderá dar ensejo a que algum aventureiro fardado - apoiado alegremente pelos Estados Unidos, que já desconfiam da Dilma – lance mão do seu poder bélico e tome o poder alegando as desordens e a corrupção.

     Se fosse nos anos sessenta, Dilma ganharia uma passagem de ida para um remoto país, junto com o seu ministério. Mas, naquela época, quando houve o golpe militar, o governo de João Goulart fazia reformas de base, educava o povo através do método Paulo Freire e era um Governo impecável, que só renunciou para evitar uma chacina quando soube que a IV Frota dos Estados Unidos estava pronta para intervir em caso de resistência ao golpe.

     Agora, por mais de esquerda que queira parecer, posando em foto com Fidel Castro, Dilma é aliada dos Estados Unidos em tudo e por tudo; curva-se às decisões de Washington, tem na Rede Globo um vacilante apoio, mas apoio, e faz o jogo neoliberal, continuando a privataria tucana com a privataria petista.

     Para que o atual Governo possa funcionar, apesar das corrupções comprovadas e veiculadas toda semana, não só atrelou a maioria dos sindicatos como se torna vassalo das Forças Armadas. E necessita da polícia para continuar marginalizando a pobreza. Fez do Brasil um estado policial, mas não contava que os seus policiais iriam, um dia, rebelar-se contra os baixos salários e péssimas condições de trabalho.

     Agora tenta salvar o seu Carnaval, porque carnaval é o apelido do atual Governo.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O PREFEITO E O CARNAVAL




O Prefeito estava em seu gabinete, depois de muito visitar as vilas da cidade, inaugurando tudo o que podia, até poço artesiano, e chegara muito cansado, pedindo um cafezinho, um chimarrão, um copo d’água, uma massagem, um escalda-pés, uma conversa amiga, um consolo, e o secretário reclamou:

     - Companheiro prefeito, sinto muito, um consolo só no Dia de São Nunca, que é santo muito milagreiro, mas posso providenciar qualquer outra coisa dessas que o companheiro citou. Ou quer todas ao mesmo tempo?

     - Companheiro secretário, para que eu preciso de um secretário?

     - Deve ser para guardar os seus segredos, companheiro prefeito. Para que mais seria?

     - E entre os meus segredos, um consolo significa alguma coisa obscena ou algum malfeito, companheiro secretário?

     - Desculpe, companheiro prefeito, é que nunca se sabe...

     - Você é que nunca sabe, companheiro secretário. Os meus pés estão cansados, a minha vista turvada, o meu coração acelerado como o PAC, depois de tantas visitas à plebe ignara, que votará em mim porque entende, em sua santa ignorância – que Deus a abençoe - o quanto eu sofro por ela, e peço um consolo, que significa algo que me tire dessa turbação espiritual e o companheiro me vem com piadinhas sobre São Nunca, um santo da minha devoção!...

     - Perdão, companheiro prefeito... tome aqui um cafezinho... Mas quanto à massagem... Ainda quer um escalda-pés?

     - Não é mais necessário. Escaldarei meus pés quando chegar em casa, na companhia da minha companheira, no meu aprisco, na solidão dos meus pensamentos, no aconchego das minhas revistas de figurinhas, colhendo as impressões do dia no meu diário secreto, assistindo ao BBB...

     - Sublime! companheiro prefeito. É justamente o que eu faço quando chego em casa. Aprisco não é para ovelhas, companheiro prefeito?

     - É como eu me sinto às vezes, companheiro secretário: uma ovelha abandonada no meio de feras famintas.

     - Que pena, companheiro prefeito! Não sabia que o companheiro tinha todo esse complexo.

     - É que o companheiro não entende o âmago do meu ser... Dê-me os alfarrábios prefeiturais.

     - Aqui estão, companheiro prefeito. O primeiro item da pauta é o carnaval.

     - Carnaval! Sempre carnaval! Por que será que nesta época só se fala em carnaval? Associações burlescas, carnavalescas, extravagantes, grotescas, folianescas pedindo verbas e gente se queixando do carnaval de rua. Como solucionar essa equação?

     - Eu não sou muito bom de matemática, companheiro prefeito.

     - O povo precisa gritar e cantar, mas os lojistas se queixam de que o carnaval de rua é perigoso, as pessoas de bem não querem ir para a rua durante o carnaval, com medo de assaltos. Mas o povo precisa pular, agitar-se, acreditar que tudo é festa, gastar a sua energia... Mas vejo um pedido da Associação de Impolutos Negociantes, a AIN, pedindo para acabar com o carnaval de rua. E agora?

     - Agora, é tirar o carnaval de rua das ruas, companheiro prefeito. No máximo, empurrá-lo para um cantinho de uma ou duas quadras bem escondidas e bem policiadas, com arquibancadas na volta e o povo pensará que aquilo é carnaval de rua.

     - Genial, querido companheiro secretário.

     - Controle-se, companheiro prefeito. Por favor!

     - Foi só uma efusão pré-carnavalesca, companheiro secretário. Olhe: outro pedido para extinguir o carnaval de rua. Um pedido drástico da PROFABEM, que pede o fim, inclusive, dos bailes nos clubes. Eles tem medo do que chamam de chinelagem.

     - A chinelagem é um grande problema, não só em nossa cidade, mas em todo o país, companheiro prefeito. Mas o que é PROFABEM?

     - É uma associação misteriosa, secreta, discreta e inquieta, formada pelas Probas Famílias de Bem. Gente que usa sapatos novos todos os dias. Por isso eles não gostam dos que usam chinelos e querem o fim do carnaval. Dizem que, no máximo, um carnaval bem longe da cidade, onde só possam participar aqueles que tem carros do ano e muito dinheiro - junto com seus fâmulos, guarda-costas e agregados – e onde não seja permitido o terrível cheiro de povo.

     - Sentirão cheiro de vaca, companheiro prefeito. Bem longe da cidade não seria na campanha?

     - Na campanha... Já sei! O castelo das Grandes Cuias. Recentemente foi tombado e se transformou em atração turística. Pintores pintaram afrescos em suas paredes, escultores esculpiram náiades e sátiros nos belos jardins, todos os dias pessoas pertencentes ao PROFABEM vão até lá para admirar a arte que só a eles pertence. E tem um grande salão. Que tal, companheiro secretário, um carnaval no castelo das Grandes Cuias só pra eles. E pra mim, é claro! Imagine um carnaval fora de época naquele belo lugar, para que o povo nem desconfie...

     - Perfeito, companheiro prefeito! Mas não venha com efusões pré-carnavalescas... Assim, mansinho, mansinho... Pronto!

     - Calma, companheiro secretário?! Foi apenas um entusiasmo passageiro. Aff!, cansei de tanto resolver problemas. Agora sim caía bem uma massagem.

     - Uma massagem, companheiro prefeito?

     - No ego, somente no ego, companheiro secretário. Diga que eu sou um gênio.

     - Gênio!, companheiro prefeito. Gênio!

     - Agora deixe ver o meu extrato bancário. Ah, como isso é bom!... Muito bom!
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