quarta-feira, 25 de abril de 2012

UM ESPELHO PARA RAFAEL PAPODEMOS



Rafael Papodemos. Pediram-me para escrever a respeito. Aceitei, embora seja um grande risco; inevitavelmente ele lerá, deve estar lendo agora, neste momento, mesmo que este seja o momento em que eu estou escrevendo. Ou tentando. Tentaram-me com aquela frase de que todo homem tem o seu preço; uma frase que eu tanto repudio. Mas a necessidade obriga e o preço era irrecusável, vocês podem imaginar. No entanto, coloquei minhas condições: dizer tudo! Para minha surpresa, não titubearam em responder que era isso mesmo que desejavam. Nada poderia ser omitido. É claro que eu não sei tudo, somente o que todos sabem ou o que muitos dentre todos sabem; melhor, alguns dentre muitos dentre todos sabem. Mas querem que todos saibam. Dito isto, este pequeno prólogo, este intróito, este exórdio, esta introdução, esta explicação - menos para vocês do que para me explicar para o Rafael, que deve estar rindo, sarcástico, se é que ele consegue rir ou demonstrar sarcasmo, vamos ao que importa para os que me pagam.

     Rafael Papodemos. Não se sabe a sua idade, estado civil, profissão ou verdadeira nacionalidade, mas todos dizem que é grego, embora haja divergências. O que se sabe é que é uma pessoa horrível! O pior entre os piores, o maléfico entre os maléficos; talvez pior ainda do que Aleister Crowley, que foi considerado o pior entre todos os homens da sua época, e que se autodenominava a Besta 666. Não sei por que; no seu tempo não houve Apocalipse. Mas agora haverá, se deixarmos, graças a Rafael Papodemos. Tudo indica, inclusive o Calendário Maia, o Egípcio e tantos outros calendários ainda não descobertos porque estão muito bem guardados por aquelas sociedades secretas que adoram esconder tudo de todos, ou não seriam secretas.

     Rafael Papodemos. Fala-se muito sobre ele; que a primeira vez em que ficou milionário - depois de acertar em uma daquelas loterias não muito confiáveis, que engordam os bancos e os governos – não deu festas, não presenteou os amigos, não participou de grandes viagens em transatlânticos para ver o Roberto Carlos cantar, não comprou carros importados nem mandou construir mansões luxuosas, não casou com a BBB mais linda. Sumiu. Sumiu e investiu o dinheiro. Todo o dinheiro. Não comprou nem uma caixa de bombons para os irmãos, embora eu não acredite que ele tenha irmãos. Pessoas como Rafael Papodemos não tem irmãos, não tem parentes, não tem amigos, tem somente espelhos e muitos são os espelhos que existem nas casas de Rafael Papodemos. Mas vamos por partes.

     Rafael Papodemos. Logo que reapareceu foi muito fotografado, cada vez com um rosto diferente. Máscaras, só poderiam ser máscaras, mesmo que parecessem rostos verdadeiros, humanos, de carne e osso. Estava imensamente milionário. Mais imensamente milionário do que o mais imensamente milionário. Sabe-se apenas, com quase certeza, do seu corpo. Nem muito baixo, nem muito alto. Esguio e forte como o de um ginasta. E dos olhos. Os olhos são imperdoáveis, de um verde claríssimo que assusta e intimida. Poucos são os olhos assim, mas há quem diga que usa lentes. Apareceu, ou reapareceu, como que do nada, como se dissesse aqui estou; não esperavam por mim?

     Rafael Papodemos. Começou a circular em círculos... Mas o que estou escrevendo? Quem circula, circula em círculos, não sejamos tão óbvios! Círculos cada vez mais fechados. Fechadíssimos! Relacionando-se com poucas pessoas, selecionadas entre as mais seletas – e até aí estava tudo normal, porque é assim que os muito ricos agem. Fecham-se como ostras, com medo de que roubem a sua preciosa e escondida pérola. Ouvia muito, falava pouco, dizem que com uma voz metálica, mas deve ser lenda. Sempre arredio, cuidadoso, cercado por aqueles imensos guarda-costas. Mesmo quando o convidavam para participar de negócios, que deveriam ser secretíssimos, os guarda-costas ficavam ao lado ou em volta e ninguém podia dizer ou fazer nada a respeito. Não com Rafael Papodemos.

     Rafael Papodemos. Foi eleito O Cara Do Ano pela revista Forfaite e, ao receber o prêmio, fez aquele discurso que todos conhecem ou deveriam conhecer, absolutamente inútil e antiético. Disse que estava recebendo o prêmio porque era muito rico e não pelos seus belos olhos (foi esta a expressão usada!), porque se fosse um negro pobre jamais receberia prêmio algum, mas chibatadas travestidas de salário mínimo. Todos se retiraram e ele saiu gargalhando entre todos. No dia seguinte recebeu uma intimação judicial. Deveria se desculpar perante os negros. Negou-se. Foi preso simbolicamente e condenado simbolicamente a prestar serviços à comunidade ou pagar uma multa gigantesca para a indignada comunidade negra. Pagou a multa e ainda disse que era esse o seu desejo ao fazer aquele discurso: ajudar os negros pobres. Foi novamente intimado a comparecer em juízo para explicar-se, mas a acusação foi retirada, o promotor ganhou inesperadas férias com passagens pagas para Cancún e o juiz se considerou suspeito, porque pertencia a um dos clubes de Rafael Papodemos. Já naquela época todos os clubes eram de Rafael Papodemos.

     Rafael Papodemos. Alguns dentre os muito ricos, os mais afoitos e desavisados – e é difícil acreditar que existam afoitos e desavisados entre os muito ricos -, iniciaram uma campanha moral contra Rafael Papodemos, nas suas revistas, jornais e canais de televisão. Através de terceiros, Rafael Papodemos comprou todos os veículos de comunicação. Ou quase todos. Restou uma revista, que parecia inexpressiva, onde um dos colunistas disse que Rafael deveria ser gay, porque nunca fora visto com mulher. Em um dos seus jornais, Rafael concedeu uma entrevista onde dizia que não era gay porque abominava o sexo passivo, acrescendo que respeitava a escolha sexual de cada um. Foi processado e pagou a multa astronômica antes de ser condenado, afirmando que gostaria de ajudar as associações de GBLT. Juízes e promotores respiraram aliviados: não precisariam dar-se por impedidos ou viajar para Cancún. Naquele mesmo mês, Rafael disse, em outra entrevista para uma das suas revistas, que mulher era uma questão de preço. Chamou todas as mulheres de prostitutas. No dia seguinte, os seus advogados concordaram em pagar a multa muito acima do que as associações femininas previam, e Rafael afirmou que tinha dito aquilo porque era a única maneira que encontrara para ajudar o movimento feminista, que achava tão bonito. Divertia-se.

     Rafael Papodemos. Foi considerado louco, excêntrico, extravagante, mas, quando chegaram as eleições todos os políticos de todos os partidos correram a bater à sua porta. Rafael montou um escritório, que denominou de “Escritório de Ajuda Política”, onde todos os candidatos iam receber os seus cheques e prometer lealdade e honestidade com a coisa pública. A coisa pública era Rafael. Acredito que ainda seja. Lembram-se daqueles escândalos? Rafael. Todos eles. Sempre através de agentes fantasmas, que concordavam em dar a cara para bater no caso de serem descobertos. Quase todos foram descobertos, condenados e soltos. Ainda faltam alguns, que terão o mesmo belo e folgado destino.

     Rafael Papodemos. Certa vez um dos últimos grupos anarquistas o chamou de anarquista. Ele revidou dizendo como posso ser anarquista se eu sou a cara do Sistema? Aliás, eu sou o Sistema. O Sistema não reclamou. Sumiu novamente, depois de comprar todos os bancos e casas de crédito. Foi quando começou a crise na Europa e os seus seis gigantescos guarda-costas foram fotografados por um daqueles repórteres paparazzi em um café de Paris. Suspeita-se de que Rafael estivesse entre eles. Depois em Roma, Berlim, Tóquio, Nova Iorque, Londres e até nos Alpes suíços, quando aconteceu aquele desastre que matou três agentes da inteligência internacional. Rafael Papodemos. Ele também tem os seus agentes especializados, que se antecipam a qualquer ação. Antecipou-se e comprou os serviços secretos do mundo inteiro, com governos e tudo. Os governos não reclamaram, o preço era muito bom. Reservou-se o direito de escolher presidentes e primeiros-ministros. Através de eleições, é claro, mas todos os políticos eram de Rafael Papodemos. Foi quando surgiram os livros denunciando os Illuminati, o Clube de Roma, a Távola Redonda, o Foreign Office dos Estados Unidos, o Clube Bilderberg, a associação Caveira e Ossos, extremamente secreta, mas flagrada por um cineasta indiscreto em uma das suas iniciações de homossexualismo implícito e drogas estranhas, inclusive bebidas com alto teor alcoólico. Todos os escritores apontavam essas organizações secretas como as responsáveis pelos males do mundo, até pelo efeito estufa. Não posso afirmar com certeza, mas minhas fontes fidedignas dizem que eram escritores a soldo de Rafael Papodemos. Seria uma manobra diversionista para que o mundo internético acreditasse nas maquiavélicas manobras dos dominadores do mundo real – reis, presidentes, banqueiros, domadores de circo, apresentadores daqueles irritantes programas de variedades, jogadores de futebol que conhecem o drible do coice, princesas, misses e colunistas sociais que se deixam matar, aos poucos, pelo amor ao ócio, seriíssimas apresentadoras de jornais televisivos com olhar magnético e transbordante sex-appeal; blogueiros indiscretos que escrevem aparentes absurdos, sempre errando na pontuação e na concordância, artistas, escritores, poetas, escultores; especialistas em instalações onde tresanda o cheiro do amor e quase anda o engano da morte, entre cortinas que parecem irreais, sons multidimensionais, aparições surreais e atmosfera densa e voluptuosa; jogadoras de tarô, viciadas em bingo, adolescentes hipnotizados por jogos eletrônicos; mães, pais e filhos de todos os clubes comunitários onde se fala sobre a paz e o bem e se pensa em futebol e novelas; estudantes valorosos dispostos a mudar o mundo através de passeatas a favor da liberação das drogas mais leves; as últimas donzelas que ainda esperam o seu cavaleiro andante, perdidas nas nuvens de uma idade média não tão média, mas muito própria. Rafael Papodemos.

     Rafael Papodemos. Lembram dos tsunamis na Indochina e Japão, do terrível terremoto no Haiti, e outros terremotos menores, mas não menos sinceros e graves? Pensem bem nas ameaças de guerra entre as duas Coréias, na primavera árabe que já está virando outono, nas ameaças diárias entre Irã e Israel, na nova crise das Malvinas, nos assaltos diários no Brasil, na invasão dos morros do Rio de Janeiro, nas eternas balas perdidas que enfeiam o corpo de tantas pessoas. Pensem nas crianças mudas, telepáticas e nos adultos apáticos que fingem que nada está acontecendo e que sempre dizem que não é com eles a tragédia do vizinho. Rafael Papodemos.

     Rafael Papodemos. Dizem que foi ele que convenceu Dilma Roussef a construir a hidrelétrica de Belo Monte, mas pode ser boato. Ele teria sido o responsável pela aprovação do Novo Código Florestal, também conhecido por Código do Desflorestamento Final. São os seus satélites que vigiam, observam, anotam, fazem gráficos e análises complexas sobre a Mata Atlântica e a Amazônia, com o único objetivo de alegrá-lo quando aumentam as queimadas e mais árvores são cortadas e arrancadas. São os poucos momentos em que fica feliz. Também gosta dos programas do Jô Soares e do Silvio Santos, mas tem ojeriza pelos filmes de Fellini. Depois que ele comprou as bolsas de valores do mundo inteiro, brinca fazendo com que elas oscilem diariamente. Principalmente na Europa, porque detesta a figura que simboliza o euro. Acha o dólar mais rebuscado, mas passável; costuma rir-se do real e diz que nunca entendeu porque o FHC repudiou os próprios livros ao tornar-se presidente pela primeira vez. Considera o Lula uma graça, mas diz que a Marisa é mais simpática. Não gosta de falar sobre Dilma Roussef. Alguns mais próximos (e são tão poucos!) afirmam que o único momento em que sente algum temor é quando ouve Dilma falar. Não se sabe o porque. Talvez algum trauma de infância, se é que Rafael teve infância.

     Rafael Papodemos. Há boatos de que ele teria preferido o Brasil para morar devido ao Carnaval, período em que ele pode vestir-se de baiana e soltar a franga em várias escolas de samba que patrocina. Mas, evidentemente, são boatos maldosos, provavelmente espalhados pelo repórter que disse que Rafael é gay. Foi a primeira vez que Rafael reclamou da extrema liberdade de imprensa, embora quase toda a imprensa seja dele. Quase. Os veículos de comunicação anarquistas (aqueles dois!) recusaram-se a se vender por uma questão de ética. Ou de ótica, porque é muito comentada uma reunião extremamente anarquizada, onde rolou vodca com guaraná e aquela droga que o FHC defende, e alguns diziam que seria muito anarco-político-independente vender-se a alguém do Sistema, pegar o dinheiro e depois jogar coquetéis molotov no próprio jornal, em protesto. Mas voltaram atrás quando os que ainda não estavam bêbados lembraram que ficariam sem jornal e tornar a pichar paredes é contraproducente e cansativo, além do frio e da geada das noites de inverno. Já os comunistas não se fizeram de rogados. Venderam-se na hora. Como estão muito preocupados em promover a revolução burguesa, para somente depois tentar a revolução socialista, acreditaram que um dinheirinho a mais vinha a propósito. Restou, também, uma revista, a última das nanicas, cujo dono disse que preferia tentar o suicídio jogando-se nas águas poluídas do Tietê a vender a razão da sua vida, que é lida somente por ele, a família e alguns vizinhos e conhecidos. Eu inclusive. Rafael Papodemos não deu bola. Preferiu voltar a sua atenção para assuntos mais interessantes. Fundou a era do sertanejão country, aproveitando para vender chapéus de cowboy, cavalos de raça, bois que parecem touros e toda aquela parafernália que os adeptos e simpatizantes adoram usar nas festas que julgam tão necessárias. Depois de divertir-se um pouco com tudo aquilo, Rafael Papodemos sumiu de novo, justamente no momento em que se falava muito em aquecimento global e mudança climática.

     Rafael Papodemos. Vocês adivinharam – foi ele! Não tinha mais o que fazer, disse certa vez a uma das amantes compradas, que foi logo vender a sua informação para aqueles jornais anarquistas. Não ganhou nada, apenas o prazer, embora não se saiba que tipo de prazer. Não tinha mais o que fazer, ora vejam! Os muito ricos tem essa mania de não ter o que fazer e é justamente quando fazem as coisas mais terríveis. Fabricou o seu próprio ônibus espacial, que o levou para a sua estação orbital particular. De lá, olhou para nós e disse a célebre frase: “A Terra é azul.” Pois, pois. Olhou para o céu e, no primeiro dia ficou extasiado, no segundo dia ficou deslumbrado, no terceiro dia demorou-se a olhar para as crateras da Lua. E viu que era bom. No quarto dia bombardeou a atmosfera terrestre com o seu laser especial, no quinto dia apontou o seu telescópio para a Terra e ficou chateado com tanta confusão e bagunça que ele tinha promovido; no sexto dia programou no seu computador um novo ser mais evoluído e complexo para povoar o nosso planeta e criou os genes sintéticos de uma natureza submissa. Adorou. No sétimo dia descansou, dormindo enquanto voltava.

     Rafael Papodemos. Nunca deveremos esquecer esse nome. Quando lutamos contra o aquecimento global, o buraco na camada de ozônio, os raios refletores que atingem a ionosfera e provocam todo o tipo de transtornos chamados pela sua mídia de “naturais”, os transgênicos que adormecem e desertificam a terra, o desmatamento desenfreado, a fome e a sede de milhões de habitantes deste nosso pequeno planeta, as injustiças que são consideradas normais pelos governantes governados por ele... lutamos contra Rafael Papodemos.

     Os mais trôpegos dizem que não se pode lutar contra alguém que domina a tudo e a todos, mas recentemente foi descoberta uma maneira. O dono daquela revista, a última revista nanica, enviou para um dos túneis onde Rafael Papodemos se refugia esperando o fim do mundo que programou para dezembro, com a ajuda dos seus cientistas comprados... O dono daquela revista enviou para Rafael Papodemos um espelho. Nunca se ouviu tamanho grito; inclusive, ouve ameaça de tsunami, porque a terra tremeu ameaçadoramente. Mas temos que correr todos os riscos contra o risco maior da nossa extinção. Espelhos continuam a ser enviados para Rafael Papodemos. Dizem que ele os quebra. Melhor: sete anos de azar. Mas sete anos é pouco. Se você não conhece o endereço de Rafael e quer participar da campanha envie espelhos para todos aqueles que se venderam, principalmente para os políticos. Ainda há uma chance.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

LEVEZA


Sejamos leves. É importante que a leveza esteja presente em todas as nossas ações, sejam elas quais forem. Leveza é sinônimo de democracia. Leveza e ar perfumado. Observemos a mídia amestrada: como é leve em seus falares e dizeres. Também os políticos amestrados. São leves e suaves. Jamais discutem, apenas colocam posições. Obviamente, estão todos perfumados. Faz parte dos hábitos da época. Adoram comissões de inquérito para inquirir o que todos já sabem.

     - Sr. Bicheiro, é verdade que o senhor é banqueiro de jogo do bicho? Pode me dar um palpite para que eu faça uma fezinha?

     - Oh, sim. Tente o 666.

     - Sr. Corrupto Reconhecido, quanto roubais?

     - Apenas o suficiente; tenho muitos parentes.

     E nos debates:

     - Exmº Sr. Deputado que se opõe a mim, saiba que eu me oponho a vós.

     - Anotado, Exmº Sr. Deputado que se opõe à minha oposição. Saiba que tenho o senhor em alta estima e o convido para um cafezinho na sala das Abóboras Coloridas para fazermos um acordo que una as nossas oposições tão ferrenhas.

     - Dependerá do preço, Ilustríssimo Excelentíssimo senhor prezado deputado.

     - Quanto a isso poderemos falar com um dos ministros amigos ou com algum dos empresários ansiosos por uma fraudulenta licitação. Nada que não se possa resolver com uma boa conversa. Estamos numa democracia.

---

     - Prezado senador que tanto ilustra com o seu saber e erudição esta casa do Congresso, gostaria de lembrar a todos as suas ligações com a ditadura oficial fardada naqueles anos de chumbo, quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo e ficamos tão felizes.

     - Foram apenas ligações tênues, Excelência. Um ou outro assassinato, algumas necessárias torturas, e nada que eu tenha visto; apenas informações sigilosas que perderão o sigilo daqui a cinqüenta anos quando esta democracia estará devidamente consolidada.

     - Foi como eu disse, Excelência. Eu apenas gostaria de falar a respeito, mas perdi o gosto subitamente quando Vossa Excelência mencionou aqueles atos de bravura e peço à Presidência que considere o meu discurso como lido. Quem desejar lê-lo na íntegra deverá entrar na página do Senado e ali encontrará todas as reticências e eufemismos necessários.

     - A Mesa considera lido o seu discurso, senador. Com a palavra agora, quem é mesmo, secretário? Está na lista, Presidente. Ah, o senador Sono Impenetrável, que já está na tribuna e vem nos honrar com a sua ilustre presença. Por favor, senador.

     - Exmº Sr, Presidente, excelentíssimas e belas senhoras senadoras, excelentíssimos senhores senadores, ouvintes da Rádio Senado, telespectadores da TV Senado, povo brasileiro.

     - Venho a esta tribuna, aliás, não mais venho porque aqui já estou, para denunciar veementemente o que está se passando bem às nossas vistas. São coisas que não me permitem calar, acontecimentos de tamanho significado que nem o verbo de um Cícero ou a indignação de um Silveira Martins conseguiria relatar. Estou aqui para dizer ao povo que me elegeu que estou perplexo e estupefato, talvez mais estupefato do que perplexo – embora não use estupefacientes. Sinto o meu peito doer, as minhas veias latejarem, o meu coração bater descompassado ante os fatos que estão aí para todos verem e julgarem. Estão aí, à vista de todos, senhoras e senhores! E é uma vergonha que estejam aí, porque não deveriam expor-se dessa maneira tais coisas vergonhosas; melhor seria varrê-las para debaixo do tapete, mas, nesse caso, até o tapete deveria ser varrido para debaixo de outro tapete e não teríamos tapetes suficientes para encobrir toda essa lama que não nos deixa caminhar direito nesta grande sala. Coro de vergonha ao narrar esses fatos, mas tenho o dever, a obrigação moral, de não ficar calado perante aqueles que me elegeram e que em mim confiam... Concedo aparte ao digníssimo senador Servílio Servílius, que muito honra esta casa com o seu trabalho, a sua magnificência, a sua lucidez, o seu destemor...

     - Obrigado, sapientíssimo senador Sono Impenetrável. Faço minhas as suas palavras neste momento de tristeza em que tantas coisas estão aí e aí não deveriam estar. Que é feito das faxineiras e dos encarregados pela limpeza? Estarão em greve de novo? Mas isso é uma desfaçatez! Gostaria de saber quem inventou a greve para mandar prendê-lo! Obrigado, senador Sono Impenetrável.

     - A lama, senhoras e senhores! A lama! Exceto no Nordeste e no Sul, onde há estiagem sazonal - mas isso não nos compete, porque todos sabem que chuva é incumbência de São Pedro - haverá chuva e lama assim no restante do país? Até quando sofrerá o povo brasileiro com tanta chuva? Niemayer, oh Niemayer! Por que tantas curvas nesta cidade que está afundando na água pútrida, quando deveria haver apenas uma reta calha providencial? Até quando, São Pedro, abusarás da nossa paciência?

     A leveza. Sejamos leves. É a leveza que faz uma democracia. Vejam as notícias, como são ditas levemente.

     - Três criancinhas morreram de fome hoje, mas a presidente Dilma prometeu que acabará com a miséria em breve. O PIB está cada vez maior.

     - Cidadão morreu de ataque cardíaco em Farmácia Popular, devido à falha do sistema que estava fora do ar, e os vendedores da farmácia não quiseram liberar o remédio. O Governo informou que novas Farmácias Populares estão sendo abertas em todo o país para servir à população. O PIB está cada vez maior.

     - Acidentes com morte ocorreram em todas as estradas brasileiras neste fim de semana, mas o Ministério dos Transportes comunicou que o número de acidentados foi menor do que no ano passado, na mesma época. O PIB está cada vez maior.

     - O desmatamento na Amazônia foi apenas de 34% este mês; 14% a menos do que no mês passado. Os satélites que constataram o desmatamento funcionaram muito bem. O PIB está cada vez maior.

     Coisas assim, ditas com a leveza democrática que o tato jornalístico exige.

     De vez em quando, uma entrevista com seres estranhos e cultos.

     - O que o senhor acha do peripatético andar dos caminhantes?

     - Saudável. Aconselho a todos a caminhar. O povo brasileiro que está acostumado a andar de ônibus deveria andar mais com as suas próprias pernas. Além do mais, ajuda a emagrecer.

     Leveza. Devemos ser leves como é leve a vida para os que afirmam que a vida é leve. É uma questão de democracia. Cada um no seu lugar. Graças a Deus.

terça-feira, 3 de abril de 2012

GUSTAVO ADOLFO E DRICA DE BENFICA - PELO TELEFONE

- Gustavo Adolfo!

- Não precisa gritar, Drica. A cidade inteira vai ouvir.

- O que é um perigo, não é Gustavo Adolfo? Você viu o que aconteceu com o...

- Não diz o nome! Não diz o nome!

- Está bem, Gustavo Adolfo, não vou dizer o nome do...

- Não! De preferência não fala, se falar cochicha, se cochichar que seja bem baixinho.

- Credo, Gustavo Adolfo!... Você está com síndrome de pânico? Até parece que essa síndrome virou moda...

- Eu estou é com síndrome de guarda pretoriana, Drica.

- Preto, Gustavo Adolfo? Você não sabia que não pode dizer que preto é preto ou vai pra cadeia?

- Pretoriana, Drica. Não é preto.

- Mas começa com preto, não é Gustavo Adolfo? Onde é que você está?

- Eu estou numa reunião aqui no... na casa do...

- No partido, Gustavo Adolfo?

- Não fala em partido, Drica! De preferênca não fala em nada pelo telefone.

- Uai, mas não é um telefone celular? O que é que tem?

- O que é que tem? O que é que tem? O que tem é que hoje em dia até vídeo-game é perigoso.

- Mas eu não jogo vídeo-game, Gustavo Adolfo! Isso é coisa para adolescente que foge das aulas. E é tão ridículo! Mata isso e mata aquilo. Depois eles saem enlouquecidos e querem dar tiros nos outros.

- Não é isso que eu queria dizer, Drica. Estou tentando lhe falar que o silêncio é de ouro, entendeu?

- E agora eu vou ficar muda no telefone, Gustavo Adolfo? Me diz pra que o telefone serve? Não é pra falar?

- Drica, estamos vivendo momentos perigosos no nosso país.

- Grande novidade, Gustavo Adolfo! O que é que a Dilma fez agora? Se recusou de novo a dar aumento para os militares?

- Não fala o nome Dilma, nem menciona os militares, Drica! Se falar diz “a presidenta” e “os excelentes defensores da nação” – dá pra entender?

- Claro que dá, Gustavo Adolfo. Eu sou loura, mas não sou burra, viu! Já estou ficando com a língua engessada neste telefone. O que podemos falar? Ah, já sei... Lembra do meu colar de pérolas, aquele que tu me deste de Natal? Vou usar hoje de noite no nosso jantarzinho, só pra te alegrar. Pode ser que até lá você esteja melhor, Gustavo Adolfo. Toma um chazinho pra melhorar o humor.

- Não!!

- Não o que, Gustavo Adolfo? Não vai ter jantar? Tu não gosta mais de mulher bonita? Viraste gay?

- Não diz bobagem, Drica! É o colar. Sabe, na época de Natal eu estava com pouco dinheiro e pedi emprestado para um amigo para comprar o colar pra ti.

- Agora eu tenho certeza de que tu gosta de mim, Gustavo Adolfo, que tu me ama. Fazendo sacrifício, te endividando só pra me agradar!

- Na verdade, eu não me endividei, Drica. Foi uma troca de favores. Sabe aquele nosso amigo, aquele que não podemos dizer o nome?

- O...

- Não diz!

- O que foi, Gustavo Adolfo? Voltou a crise de pânico?

- Que crise, Drica? Não ouviu falar que o... o telefone é inimigo do homem?

- Só se for aqui no Brasil, Gustavo Adolfo, porque em outros países o telefone até que é um dos maiores amigos do homem. E da mulher também, não seja machista!

- Pois é aqui, Drica, é aqui. Há mais coisas entre o Brasil e o resto do mundo, Drica, do que sonha a tua vã filosofia.

- Ai, que bonito Gustavo Adolfo!... Eu não sabia que tinha uma vã filosofia, mas é bonito... Continua falando assim.

- Falar é que são elas – como diria o poeta mudo, espreitando as meninas na janela.

- Deu até rima, Gustavo Adolfo! Tu tá virando poeta?

- Se a coisa continuar assim, vai ser o único jeito de se comunicar, Drica.

- Que coisa, Gustavo Adolfo?

- A coisa que não podemos falar, Drica, os amigos que não podemos citar, os presentes que não podemos dar.

- Rimar em “ar” você já sabe, Gustavo Adolfo.

- Por falar nisso, vou desligar, Drica. Neste país que me engana nunca se sabe onde está a guarda pretoriana.

- Lá vem você com essa tal de pretoriana de novo, Gustavo Adolfo. Afinal de contas, o que é isso?

- Isso é o que não se sabe, Drica. Pode estar no ar, no mar, em qualquer lugar. Esta é uma época em que não é mais proibido proibir. “Atenção: tudo é perigoso”. Mas não é mais divino, maravilhoso...

- Por quê, Gustavo Adolfo? Agora você tá ficando depressivo?

- Só apreensivo, Drica. Ninguém escapa...

- Já sei: à tal de guarda pretoriana!

- Ao que tem censura e sempre terá Drica. E isso não tem sentido: afinal, éramos ou não uma democracia?

- Depende, né Gustavo Adolfo. Talvez falte um “r”.

- Como assim, Drica?

- Erramos! Acreditamos! Sonhamos! E acabamos com crise de pânico ou depressão.

- Drica, você às vezes...

- Te surpreendo, não é amor da minha vida?

- Drica!

- Não precisa gritar, Gustavo Adolfo.
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