segunda-feira, 5 de março de 2012

O GRANDE RANCOR




O exílio judeu na Babilônia durou setenta anos, e todos os exilados pertenciam a famílias da classe média para cima. O povo pobre ficou na sua terra de origem, porque alguém tinha que cuidar dos campos, do gado e até dos lugarejos que ainda existiam no outrora reino de Judá. Os membros das famílias ricas foram levados para serem reeducados na corte, embora não tenha dado resultado. Setenta anos depois, quando Ciro, o persa, reinava, representantes da nova geração judia pediram ao rei licença para voltarem à sua pátria, reerguerem a cidade dos seus antepassados – Jerusalém – e reconstruírem o Templo. Como não representavam mais nenhum perigo, Ciro concordou.

     Não poderia ter sido mais ofensivo. Nem com visita chata se faz uma coisa dessas! É de praxe dizer que fiquem mais um pouquinho, a conversa está tão boa... Imaginem com escravos, ou súditos!... 

     Informes sigilosos revelam que o atual estado beligerante entre Israel e Irã, o país Persa, tem como origem o rancor causado por Ciro ao ter aceitado o pedido dos judeus de deixarem a Pérsia, naqueles tempos longínquos, e não, conforme é divulgado atualmente, a suposição de que o Irã esteja construindo armas nucleares.

     Um antigo pergaminho caiu em minhas mãos num desses dias ventosos. Provavelmente veio direto do Irã ou de Israel e comprova essa teoria. Chama-se “O Rancor dos Rancores”. Leiam e julguem.


     - Como vai, doutor Ciro? Eu queria lhe falar uma coisinha...
     - Não precisa me chamar de doutor; basta Magnífico Rei do Mundo.
     - Perdão, Magnífico. É que o nosso povo é dado a profecias e daqui a alguns séculos o título de doutor vai ser tão reverenciado como hoje é o título de rei.
     - Magnífico rei! E já estou cheio dessa estória das profecias de vocês. O velho Nabucodonosor sofreu muito com aquele tal de Daniel, que interpretava sonhos e profetizava.
     - É provável, Magnífico, ouvi falar a respeito, mas eu queria lhe pedir um favor.
     - Pois fala, criatura do teu deus!
     - O senhor sabe que o nosso povo já está aqui há mais de setenta anos. Dá pra cansar um pouco. Além disso, sentimos muita falta da nossa humilde terra, das colinas verdejantes, das cidades que foram arrasadas e saqueadas, das ovelhas, das vacas e até da mísera ralé que ficou lá cuidando de tudo isso para nós...
     - Mãinha do Céu!
     - Como disse, Magnífico?
     - É uma expressão, uma frase comum, um dizer exclamativo que os magos da corte me contaram que vai ser usada daqui a muitos séculos em um país de dançarinos e malabaristas. Significa: para de me chatear e vai direto ao ponto.
     - Bem, me perdoe pela ousadia, Magnífico, mas indo direto ao ponto nós gostaríamos de voltar para a nossa terra. Pronto, falei!
     - Só isso? E precisava dar tantas voltinhas para um pedido tão simples? Podem ir.
     - Como assim, Magnífico, o senhor quer dizer...
     - Isso mesmo que eu disse: que podem ir. É só arrumarem as malas e pé na estrada. O dia está ótimo para uma boa viagem.
     - O senhor está nos correndo, Magnífico?
     - Não, súdito falador, apenas concordando com o seu pedido.
     - Mas eu pensei...
     - Não pense. Se você pensar, continuará falando e agora eu tenho muito que fazer. As minhas esposas estão me esperando.
     - Se essa é a sua resposta, Magnífico, eu terei que comunicá-la ao Super Grande Conselho Secreto.
     - Pois faça isso. Divirta-se.

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     Reunião do Super Grande Conselho Secreto.

     - Ele disse que nós podemos ir, irmão número 1?
     - Com essas palavras, irmão número 2.
     - Mas isso é terrível, irmão número 1! Que falta de respeito! Não pediu que ficassem alguns dentre nós para servi-lo?
     - Nem lembrou dos nossos imensos serviços ao reino, irmão número 2.
     - Isso entristece muito a minha alma, irmão número 1.
     - Eu tenho uma idéia!
     - Que bom que você tem uma idéia de vez em quando, irmão número 3! E qual seria essa idéia?
     - Devemos pedir mais, irmão número 1. Volte ao rei e peça que levemos conosco os objetos do Templo que foram roubados por Nabucodonosor. Quero ver se esse pedido não o fará enfurecer-se a ponto de proibir a nossa saída do reino.
     - Brilhante, irmão número 3! Amanhã mesmo vou fazer esse pedido ao rei.

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     - Majestade, Magnífico Rei do Mundo, Excelsa Estrela do Universo...
     - Para de me puxar o saco e diz o que você quer.
     - Lembra da nossa conversa, Magnífico, quando eu implorei que deixasse o nosso povo partir de volta para a terra dos nossos ancestrais?
     - Se lembro!... Passei a noite em claro só pensando nisso.
     - Com insônia, Magnífico? Quer dizer que se arrependeu? Deseja que fiquemos aqui? Ficou triste ao lembrar que o nosso povo deixará a Pérsia?
     - Ao contrário. Foi tamanho o alívio que não consegui dormir. E quando vocês partem?
     - Magnífico, se me permite...
     - Permito, mas diga logo o que deseja que eu permita.
     - Magnífico, nós pretendemos reconstruir o Templo, mas faltam os utensílios. Vossa Majestade deve lembrar que são utensílios raríssimos e caríssimos, feitos por inesquecíveis artesãos. Estão no tesouro real e eu vim humildemente pedir que nos deixe levá-los.
     - Mas porque não pediu antes? Tem a minha permissão. É só falar com o tesoureiro real e pegar o que precisa.
     - Assim no mais?
     - Mas não é o que pediu? Podem levar. Eu sou um rei magnânimo.
     - Devo lembrá-lo, Magnífico, que são peças de ouro e prata de valor inestimável.
     - É verdade, mas eu não me importo muito com as coisas materiais. Eu sou um rei espiritualizado.
     - Muito bem, Magnífico, mas terei que comunicar a sua decisão...
     - Ao SGCS? Pode comunicar. E saudações aos outros dois irmãos do Conselho Secreto.
     - Como Vossa Majestade sabe que o nosso Conselho Secreto é composto por três pessoas?
     - É que o meu serviço secreto é muito aperfeiçoado, quase tanto quanto será o de vocês daqui a muitos séculos – segundo visões sobre o futuro dos magos da corte – ou o S2 daquele país de bailarinos e contadores de anedotas, daqui a muitos e muitos séculos.
     - Majestade, mas o senhor disse anteriormente que será um país de dançarinos e malabaristas...
     - Ou isso. Os meus magos, em suas visões, vêem um estranho povo que gosta muito de correr atrás do couro que salta, e de cantar e pular. Nas horas vagas, contam anedotas e falam incessantemente num estranho aparelho que colocam junto ao ouvido.
     - Que estranho, Magnífico!... O que o futuro nos espera!...
     - Espera a eles. É por essas e outras que estou ficando espiritualizado. Agora pode ir, porque está na hora de eu assistir ao grande espetáculo da ordenha das cabras reais.

                                  ---

     Reunião do Super Grande Conselho Secreto.

     - Então ele não nos quer mais, irmão número 1! Como a minha alma fica contristada!
     - Pssst! As paredes, o teto e até as goteiras e teias de aranha tem ouvidos.
     - Então vamos falar a língua do Pê, irmão número 1.
     - Não diga bobagens, irmão número 3! Eles devem conhecer a língua do Pê.
     - E só vamos ter um bom serviço secreto lá pelo século XX, irmãos...
     - E a Cabala será aperfeiçoada somente na Idade Média, irmão número 2...
     - Isso tudo deixa a minha alma...
     - Muito triste. Eu já sei disso, irmão número 2. Vamos conversar bem baixinho.
     - pstflsbsgnlstfsgmn........
     - flllstmancvcdassaso...
     - kasdfccmlsnvbdf...
     - Grande idéia, irmão número 3! Você está se sobrepujando!
     - Pssst, irmão número 2. Amanhã falarei com ele.

                                         ---

     - Majestade, Magnífico, Supremo entre os Supremos, Luz da Melíflua Beleza, Grande e Portentoso Sábio do Universo...
     - Você está querendo me gozar, não é? Pensei que você e todo o seu povo já estavam a caminho. Diga logo o que deseja.
     - Magnífico, depois que pedi desesperadamente para que deixasse o meu povo partir para a terra onde mana leite e mel e que hoje, infelizmente, está devastada por feras e salteadores, e depois que Vossa Majestade concordou com os meu pedidos, porque sabe que somos súditos leais e eternos...
     - Confesso que ao ouvi-lo falar, súdito leal e eterno, quase esqueço que um dia os nossos povos serão inimigos.
     - Inimigos?! Mas como isso poderá ser, Majestade?
     - Segundo os meus magos, por causa daquele líquido negro e viscoso que usamos para acender fogueiras e lampiões.
     - Mas isso é impossível, Majestade! Ainda se fosse por ouro...
     - Pois os meus magos me disseram que daqui a muitos séculos aquele líquido mal-cheiroso vai valer mais do que ouro.
     - Ah, é bom saber desde agora... É bom saber...
     - Mas você dizia...
     - Eu dizia... O que eu dizia, mesmo, Magnífico? Perdão, fiquei um pouco perturbado ao falar em ouro... Lembrei, Sapientíssimo! Apenas um último e, creio, doloroso pedido para Vossa Majestade.
     - Doloroso? Doloroso é saber o que aquele povo do futuro - aquele que gostará de rir e de dançar – vai fazer com a sua fauna e flora daqui a muitos séculos. Isso sim é que é doloroso. Você nem imagina o que os meus magos tem me contado sobre suas visões do futuro!...
     - Parece que será um povo um tanto extravagante, Magnífico...
     - Extravagante é dizer pouco. Totalmente inconsciente! Mas o que você deseja agora? Armas e mantimentos? Podem levar. Material de construção para o Templo e para a cidade, idem. O que mais?
     - Sinto ter que comunicar à Vossa Presença Iluminada que o nosso povo tem que sair sem que falte um só membro. Sentiremos muita saudade da Pérsia, mas temos que ir todos, inclusive levando os ossos dos nossos pais que morreram aqui. É uma questão de tradição.
     - Uh! Que tradição horrível! É isso que é doloroso para mim?
     - Não exatamente, Magnífico Rei. Sabe a sua esposa número 3?
     - Aquela que tem lábios de rubi, olhos cor de mel, seios como os montes mais altos do meu reino, cabelos negros como a asa da graúna?
     - Essa mesma, Majestade. Mas o que é graúna, se me permite a pergunta, Magnífico?
     - É um dos pássaros que vai ser extinto naquela terra que já lhe falei. E o que tem a minha esposa número 3?
     - Ela é da nossa raça, Magnífico, e terá que ir junto para a nossa terra. Claro que somente se Vossa Majestade permitir... Se não for possível, teremos que ficar todos aqui. O nosso lema é “Um Por Todos e Todos Por Um” – ou “Por Uma”, como é o caso.
     - Oh, isso me deixa muito entristecido! - como diria o seu irmão número 2. Mas que fazer? Leve-a. Afinal, eu tenho mais 333 esposas que tem os olhos cor de mel e todos aqueles outros atributos necessários a uma esposa real. Vão com o vosso deus e com a minha bênção, e não percam tempo, aproveitem o tempo bom, partam amanhã mesmo.

           A caminho da terra muitas vezes prometida, os membros do Super Grande Conselho Secreto conversavam.

     - Irmãos, andei verificando a caravana e está tudo certo. Temos cavalos, camelos, cabras, ovelhas, bois, vacas, material de construção, armas, todos os utensílios do Templo e os tesouros que tinham sido roubados do nosso povo, dinheiro persa, alimentos em abundância, os ossos dos nossos pais, a ex-esposa número 3 do rei... Enfim, tudo o que foi pedido e ainda muitas outras coisas. Só o povo é que anda murmurando por ter que deixar um reino tão rico como o da Pérsia.
     - Este nosso povo sempre foi murmurador, irmão número 3. Faz parte da nossa tradição. Mas sinto um grande rancor no meu peito porque o rei nos despediu assim, tão facilmente.
     - Eu também, irmão número 1. A minha alma sente-se atribulada com tamanha ofensa e o meu corpo esmagado pelo andar desajeitado deste camelo.
     - Ainda nos vingaremos, irmão número 2. O rei me falou de um futuro conflito entre os nossos povos, daqui a muitos séculos. Devemos nos preparar desde agora. Afinal, não deve ser por acaso que somos o povo escolhido.
     - É verdade, irmão número 1. Mas daqui a muitos séculos ainda vai demorar um pouco. Tudo que eu desejava era que o rei não permitisse a nossa saída da Pérsia.
     - Eu também, irmão número 2. Seria perfeito. Teríamos a oportunidade de reeditar a epopéia de Moisés, com todas aquelas pragas sobre o povo do Egito, a matança dos primogênitos, o exército do Faraó morrendo afogado no Mar Vermelho. Deve ter sido tão bonito!
     - Nem me fale, irmão número 1, nem me fale...
     - Irmãos, eu vejo!
     - O que você vê, irmão número 3?
     - Eu vejo muros cercando os nossos escravos e armas que lançam fogo e imensos anjos voadores que rugem nos céus e atiram raios que explodem e magníficos cogumelos de luz que antecedem a vinda do nosso Messias e...

     E o povo, embasbacado, ouvindo as exclamações do irmão número 3 começou a murmurar novamente e diziam: “Estará o irmão número 3 entre os profetas?”

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