quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

SEU JUCA



Pois cheguei na porteira da chácara do seu Juca, e depois de fazer algumas reflexões sobre o ninho de joão-de-barro que ali estava, impávido, mesmo depois de abandonado há muitos anos, entrei e bati palmas:

     - Ô de casa!?

     Nada. Até parecia casa abandonada. Caminhei mais um pouco e vi que o seu Juca a tinha modernizado com uma bela antena parabólica e pensei “diacho! Vai ver que até internet ele já tem...” Diamante veio correndo para me lamber as mãos e fazer festa. Tinha crescido e quase não o reconheci, mas ele sim, porque não latiu. Para um pastor ovelheiro, deveria estar adulto, talvez com cinco ou seis anos, com o pelo amarelo e branco bem cuidado. Eu nunca tinha entendido porque o seu Juca tinha adquirido logo um ovelheiro para uma chácara pequena onde não havia ovelhas nem nenhum tipo de gado. Com exceção da Manhosa, a sua vaca leiteira, cuidada como se fosse uma filha.

     Se Diamante tinha ficado solto era porque o seu Juca tinha saído. Fui entrando aos pouquinhos, passei a casa e me arranchei num banco embaixo da parreira, pronto para uma longa espera. Diamante sentou ao meu lado, depois de me lavar as mãos com as suas lambidas amistosas.

     Não demorou muito e o seu Juca apareceu. Me viu de longe e gritou:

     - Mas quem é vivo sempre aparece! Já achou o Diamante ou ele é que te achou?

     Nos abraçamos, felizes pelo reencontro, enquanto Diamante pulava com mais alegria ainda, à nossa volta.

     - Por onde andou, seu Juca? Dando uma volta nas terras?
     - Terra pequena, mas terra, esse menino. Fui ver as carpas, ali no açude. Levei pão para elas. É uma das minhas alegrias sentir elas comerem quase nas minhas mãos. Me afeiçoei tanto que desisti de pescar no açude. Quando quero pescar vou para algum lagoão onde não conheça os bichos, mas pesco só o suficiente – uns dois ou três jundiás e algumas traíras.
     - Muçum nem pensar, seu Juca? – disse, brincando.
     - Que é isso, esse menino? Muçum só serve para estragar a pescaria. Mas espere aí que eu vou fazer um mate pra nós.
     - Então faça com esta erva que eu lhe trouxe. E tem mais umas coisinhas neste trem, porque eu sei que o amigo às vezes tem dificuldade de ir até a cidade – e lhe passei uma sacola que continha várias coisas, inclusive ração para o Diamante.
     - Mas não era preciso, esse menino! Olha só! O Diamante vai se refestelar com esta ração! Vem cá, Diamante! Olha o que tu ganhaste!... Espere um pouco que eu vou botar uma água no fogo e já volto com o mate pronto.

     Enquanto seu Juca ia fazer o mate e Diamante se atirava na ração fiquei pensando que quem visse o seu Juca assim, de bombacha e alpargatas, uma eterna faca na cintura e aquele jeito agauchado, não daria nada por ele. Ou por outra, pensaria que era apenas mais um gaúcho. Viúvo há mais de cinco anos, com os filhos criados e já fazendo a vida em outros lugares, seu Juca comprara aquela chácara depois de viver quase uma vida inteira na cidade.

     Era professor aposentado. Carregara para a chácara, além do pouco e necessário, toda a sua biblioteca, adquirida durante muitos anos e pela qual tinha muito amor. A casa não era muito grande e os livros eram encontrados em todas as peças, embora uma delas fosse a que chamava de escritório, onde ficavam as estantes maiores, atulhadas de livros e papéis, além de uma máquina de escrever antiga e um computador. Gostava de escrever, mas só publicava no jornal da cidade eventualmente, e suas crônicas e poesias eram lidas com apreço.

     Escrevia um diário há anos, e dizia que queria transformá-lo em um romance, “diferente do que todos imaginam”, mas publicar como? Por isto o chamava de diário. “Nesta terra só publica quem tem dinheiro, mesmo que mal saiba escrever”. Vivia enfronhado em seus afazeres campeiros, lendo e escrevendo de noite, poucas vezes ligando a televisão – “só para ver algum filme que preste”. Adotara aquela vida rústica para se identificar com a terra, segundo o que ele mesmo costumava dizer e, aos poucos, fora pegando o jeito e os modos de um perfeito gaúcho de campanha – embora a sua chácara ficasse quase nos arredores da cidade e não exatamente na campanha.

     Voltou com o mate pronto e a térmica de água quente, dizendo que não era necessário entrar em casa, ainda, porque estava muito calor e no verão o ideal é ficar debaixo das árvores. Ou embaixo da parreira.

     - Mas que bela parreira, seu Juca... Mas a sua não era uva preta?
     - Estou fazendo uma experiência com moscatel, tentando cruzar com a preta. Ainda não sei se vai dar certo...
     - E a horta?
     - Pois a minha hortinha tá que é uma beleza. Venha ver.

     Acompanhei o seu Juca até atrás da casa, onde ele tinha plantado todo o tipo de hortaliças: alface, mostrada, abobrinha, couve, cebola, alho... Tinha até feijão!

     - Mas o senhor tem tudo aqui, seu Juca!
     - Quase tudo, esse menino... Quase tudo. Mas pra mim é mais que o suficiente. Sabe que eu já andei vendendo o excedente aí pelas feiras? E que ganhei uns bons trocados?
     - Mas que bom, seu Juca!
     - O que me entristece mesmo é esse povo, esse menino. Não sei de onde tiraram essa modorra toda, esse desinteresse, esse fastio da vida, essa preguiça – para usar a palavra certa. Dias desses, eu fui até a cidade e peguei um ônibus só para rever os bairros e vilas, dar um passeio. E sabe o que eu não vi? Eu não vi ninguém plantando nada, nem uma árvore frutífera que seja. Está certo que as casas são pequenas, mas nessas vilas populares, todas elas tem um pátio, e ninguém se mexe, vivente! Ninguém é capaz de pegar uma enxada. Se queixam de pobreza, mas não fazem nada. Querem as mesadas do governo e mais nada. E depois gastam com cerveja! O que eu tenho visto de gente pobre bebendo cerveja, quando eu vou na cidade... Depois, gastam o que tem e ficam se queixando da vida, esse menino!
     - E votam em quem paga mais.
     - E ainda por cima isso. O nosso tá virando um povo sem dignidade, apenas esperando que caia do céu ou de Deus ou do governo ou do que seja.
     - Um povo amortecido, seu Juca. Anestesiado. As pessoas só querem ver aqueles programas que só deseducam, na TV, e futebol nos domingos. Se queixam do tempo quando tá frio e quando tá quente e só falta se queixarem da Primavera e do Outono.
     - Por falar nisso – mas não querendo me queixar – vamos voltar pra baixo da parreira, porque hoje tá quente mesmo. Viu as minhas árvores? Algumas crescem mais rápido, outras menos, mas breve vamos comer fruta no pé.

     Dali da horta se podia ver duas fileiras de árvores frutíferas, formando um corredor. Ainda estavam em fase de crescimento.

     - Mas seu Juca, o que foi que lhe deu? Bicho carpinteiro? Me desculpe falar assim, mas aqui o amigo ficou com a energia redobrada. É horta, é árvore, parreira, cuida das carpas do açude, tem apiário e faz não sei mais quantas coisas, sem falar que de noite eu sei que gosta de escrever... Qual é o seu segredo?
     - Pois tem um segredo, mesmo. Peguei um guri.
     - Um guri?
     - Um guri de seus catorze, quinze anos. Chama-se Tomás.
     - Mas como foi isso, seu Juca?
     - Até parece aventura. Coisa de dois meses atrás, eu tava sesteando e ouvi o Diamante latir. Levantei devagarinho, peguei a minha arma e dei a volta por trás da casa. Mas não é que tinha um guri roubando a horta? Já tava com um punhado de alfaces na mão.
     - Cheguei por trás e calcei com o 38, que estava descarregado, mas sempre assusta. É cano longo. Levou um susto e tentou reagir, mas eu logo tirei o cinto dele e se viu obrigado a agarrar as calças para não caírem. Nesse meio tempo eu libertei o Diamante, que ficou rosnando na volta dele. Assustado, ele gritava “por favor, vizinho, não me mate, não me machuque, eu não sou ladrão, só vim pegar as alfaces por causa da fome lá em casa”.

     “Que casa?” – perguntei, desconfiado.
     “Logo ali, vizinho” – e apontava para um lugar que eu não enxergava.
     “Ali aonde, seu guri safado? Me mostra. Vamos lá!” – cutuquei ele com o cano do revólver. E não me chama de vizinho que o meu nome é José. Seu José, pra você”.
     “Não me faça fazer isso, seu José, a minha mãe vai me matar se souber que andei roubando”.
     “Não mata não, que eu não deixo! E vamos indo que eu não tenho tempo pra lamúria de ladrãozinho”.

     - Fomos, com o Diamante junto e o guri com as alfaces na mão. Mais vermelho que pimentão. Uma magreza que só vendo. Depois de uns três quilômetros, pouco mais, chegamos a um casebre num descampado... Triste de se ver. Não tinha nem cerca na volta. A mãe dele, quando nos viu chegando, correu em nossa direção, gritando:

     “Mas o que foi que você fez, Tomás? E o que é isso” – disse, apontando para as alfaces. Duas crianças pequenas corriam atrás dela. Percebi logo a situação de emergência.
     “Não fez nada, não, dona” – respondi. “Encontrei o Tomás lá pras bandas da minha chácara e lhe dei essas alfaces, e vim conversando com ele...”
     “Graças a Deus” – ela respondeu. “O senhor caiu do céu. Estávamos sem o que comer, hoje, e eu não sabia o que fazer. Mas não é o seu Juca, daquela chácara bonita?...”
     “Sim senhora” – respondi – “às suas ordens. Mas o Tomás não me contou tudo direito. A senhora sabe que ele apareceu por lá se oferecendo pra trabalhar – não é Tomás?”. (Ele respondeu um “sim” baixinho, com cara de pecador). “E eu vim até aqui para ver onde e morava e tomar referências, se a senhora não se importa. Mas o Tomás não me contou tudo, não disse que estavam com toda essa precisão. Corre lá na chácara, guri, e trás mais uns temperinhos verdes, cebola, tomate e umas duas ou três abóboras. Pega um saco e vai com o Diamante.”

     - Dei a corrente do Diamante pra ele, devolvi o cinto e fiz com que o Diamante o acompanhasse. Nesse meio tempo, fiquei conversando com a mãe dele. Uma pobreza, esse menino, uma pobreza de quase saltar lágrimas. Entrei na casa, mais pra ver, e tinha só uns tarecos, aqui e lá. Um quarto com uma cama de casal, quase caindo de velha, onde devia dormir ela e os filhos; uma cozinha com fogão a lenha, umas panelas secas em cima. Lá fora tinha um tanque e um banheiro daqueles de madeira, de criar cobra. Conversei com ela - coitada!, não tinha nem roupa decente.. – e fiquei sabendo da situação. Você pode imaginar. O clássico caso do marido que vai embora, em busca de emprego, e deixa a família para Deus. Depois, não volta mais, talvez por vergonha de não ter dinheiro, talvez por outra razão, e as coisas vão minguando e escasseando na casa, até o dia em que o Tomás se decide a roubar a minha horta.
     - Mas o senhor não temeu, seu Juca, que pudesse ser uma armadilha... Que aquela fosse uma casa de bandidos.
     - Olha, esse menino, na hora em que eu vi a magreza do Tomás eu pressenti a coisa. E ladrão de verdade não rouba alfaces. Mas deixe eu lhe contar o resto, antes que o Tomás apareça. Hoje, ele foi dar umas voltas pra mim e depois assistir a mãe dele. Volta de tardezinha.
     - Pois conte, seu Juca, estou muito curioso.

     “Como eu tinha dito pra ela que o Tomás tinha ido procurar trabalho, insisti no mesmo assunto – se ela permitia. Disse que sim, que o Tomás era um bom rapaz e que era o único que poderia ajudar no sustento da casa. Combinei com ela – dona Ondina – que o Tomás trabalharia metade da semana aqui na chácara, comigo, e na outra metade ajudaria ela nos afazeres domésticos. Que eu ensinaria pra ele muitas coisas e ajudaria na sua educação.
     “Nesse meio tempo, Tomás e Diamante apareceram. Parecia que já estavam ficando amigos. Contei pra ele o combinado e os seus olhos brilharam. Trazia tudo o que eu havia dito para ele pegar. Nada mais. Dona Ondina vibrava com o saco cheio de alimentos e foi logo preparando uma comida. Chamei Tomás de lado e falei alto: “Mas você esqueceu de pegar o sal e o açúcar! Vamos até lá”. Ele nem falava. No caminho contei pra ele o que tinha combinado com a sua mãe e se ele concordava. Só faltou beijar as minhas mãos. Repetia: “mas eu não sou ladrão, seu José”. Disse pra ele esquecer aquilo. Chegamos aqui, dei um pouco de sal, açúcar, café, bolachas para as crianças e mais uma ou outra coisinha. Voltou correndo. No dia seguinte, bem cedinho, estava aqui, pronto para trabalhar."

     - Mas só o senhor, seu Juca! Qualquer outro teria entregado o guri pra polícia.
     - E deixar ele apanhar lá naquelas cadeias? E depois se transformar num viciado, num drogado, num imprestável marcado pra toda vida? Não, esse menino; na ausência do Estado temos que ajudar uns aos outros.
     - Na ausência do Estado?
     - Pois meu amigo, esse novo Estado que aí está, pós-ditadura militar, é tudo menos democrata – se usarmos a palavra democracia no seu verdadeiro sentido: governo do povo para o povo. O povo não governa nada, apenas aceita como verdadeiro o discurso dos governantes. Os mais pobres, como essa coitada da dona Ondina, recebem uma mesada que mal dá para os primeiros dias do mês – e ainda agradecem de mãos postas para o “bom governo”. Na época das eleições o “bom governo” vem cobrar em votos o que deu em dinheiro. Corrupção pura!
     - É verdade, seu Juca. E educação zero e saúde péssima. Para eles, povo pobre é povo que não paga impostos e povo que não paga impostos é como se não existisse. Mas eu pensava que o PT tinha melhorado alguma coisa.
     - É tudo a mesma coisa, esse menino. O que o PT fez foi enganar direitinho a massa dos desencantados, daqueles que não conseguem raciocinar direito e que quando recebem alguma coisa do governo consideram que foi uma dádiva e não sabem que é um direito. O PT está mais pra UDN do que pra PTB.
     - UDN, seu Juca?
     - O PT até se fingiu de socialista pra ter uma base eleitoral daquele pessoal que não lê e pensa que é de esquerda sem saber exatamente o que é esquerda e o que é direita. Mas o grande interesse deles e a união com os grandes empresários, com os militares, com as multinacionais. Igualzinho à UDN, na época do Getúlio.
     - Mas me conte como era a UDN e como era o PTB naquela época, seu Juca. O que eu sei a respeito é muito pouco e, à medida que o tempo passa, a gente vai esquecendo a nossa História.
     - Pior que isso, esse menino. À medida que o tempo passa, os donos do poder vão manipulando a História para que pareça ao povo desinformado que eles são os verdadeiros heróis de uma História que estão fabricando agora.
     - Isso dá o que pensar, seu Juca.
     - Sem dúvida. Mas podemos continuar essa história sobre a História no serão, porque faço questão que o amigo pose hoje comigo para podermos conversar com mais vagar. E hoje é dia do Tomás ficar com a mãe dele. Poderemos conversar mais tarde, ou até antes, pois quero que prove um carreteiro da ponta da orelha que eu preparei.
     - Mas seu Juca, eu nem avisei lá em casa...
     - Pois avise. Telefone é que não falta.

     O dia já estava esmaecendo, perdendo as cores. Era aquela hora difusa em que os bichos vão se recolhendo e os homens vão ficando mais serenos, como que obedecendo à natureza. Era uma boa idéia passar um bom serão com o seu Juca.

     Me dirigi para dentro da casa, em busca do telefone para avisar que ia dormir, naquela noite, ouvindo o cantar dos grilos, depois de uma boa conversa com o seu Juca.

     E foi um serão e tanto! Numa próxima vez eu conto.

Um comentário:

  1. Beleza de conto caipira! Adoro as estórias do S.Juca, pois além de serem interessantes e engraçadas dão também suas cutucadas político-sociais. Parabéns!
    Lidia.

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