sábado, 25 de julho de 2015

TROPICÁLIA COMBINA COM APARTHEID?



Caetano Veloso e Gilberto Gil estão fazendo uma turnê mundial, que inclui um show em Israel, no dia 28 de julho. Por curiosa coincidência, o dia 28 de julho foi o dia em que Israel promoveu um massacre na Faixa de Gaza, em 2014. Não se sabe ao certo se a dupla vai tocar em Israel justamente naquele dia para comemorar o massacre ou devido à sua característica ingenuidade que beira à alienação. Ao contrário deles, pessoas engajadas com a causa palestina, notadamente artistas, recusam-se a incluir Israel nos seus roteiros de viagens. Uma dessas pessoas, Roger Waters (Pink Floyd) escreveu duas cartas a Caetano e Gil pedindo que eles desistissem de tocar em Israel. Abaixo, alguns trechos da segunda carta. 

   “(...) A data coincide com o aniversário de um ano dos ataques de Israel a Gaza, nos quais mais de duas mil palestinas e palestinos foram mortos, incluindo mais de 500 crianças. (...)” 

   “(...) Tocar em Israel é endossar políticas e práticas racistas, coloniais e de apartheid – ilegais sob o direito internacional. Ademais, o governo israelense apresenta os shows em Israel como sinal de aprovação a suas políticas. (...)” 

   “(...) Nosso pedido faz coro ao chamado de artistas e da sociedade civil palestina para que artistas não se apresentem em Israel. Entre aqueles que responderam a esse chamado, cancelando seus shows no país, estão Lauren Hill, Roger Waters (Pink Floyd), Snoop Dog, Carlos Santana, Cold Play, Lenny Kravitz e Elvis Costello. (...)” 

   “(...) Não ignorem esse chamado. Tropicália não combina com apartheid!” 

   A primeira carta, datada de 22 de maio, foi encaminhada aos músicos brasileiros pelo BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), um movimento global com estratégias para pressionar Israel visando o fim da ocupação dos territórios palestinos. A carta também é assinada por Roger Waters. Destaco dois trechos. 

   “(...) Como vocês sabem, artistas internacionais preocupados com direitos humanos na África do Sul do apartheid se recusaram a atravessar a linha de piquete para tocar em Sun City. Naqueles dias, Little Steven, Bruce Springsteen e cinqüenta ou mais músicos protestaram contra a opressão cruel e racista dos nativos da África do Sul. Aqueles artistas ajudaram a ganhar aquela batalha, e nós, no movimento não-violento de Boicote, Desinvestimentos e Sanções (BDS) pela liberdade, justiça e igualdade dos palestinos, vamos ganhar esta contra as políticas similarmente racistas e colonialistas do governo de ocupação de Israel. (...)” 

   “(...) Caros Gilberto e Caetano, os aprisionados e os mortos estendem as mãos. Por favor, unam-se a nós cancelando seu show em Israel. (...)” 

   Gilberto Gil leu as duas cartas e disse que não respondeu e não responderá. Caetano Veloso foi mais educado. Escreveu uma carta onde entre outras coisas, comunica que cantou nos Estados Unidos quando O presidente era George Bush e o Iraque estava sendo invadido. Foi incisivo: “Eu me lembro que Israel foi um lugar de esperança. Sartre e Simone de Beauvoir morreram pró-Israel”. 

   É verdade, mas não se pode culpá-los por isso. Sartre e Simone pertenceram àquela geração de intelectuais franceses que ficaram de joelhos ante os Estados Unidos, que apelidaram de “América”. Acreditavam terem sido salvos do nazismo pelos estadunidenses e cultivavam uma imensa raiva da União Soviética, o país que realmente venceu a Segunda Guerra. Sartre chegou a participar de um grupo que se autodenominava “maoísta” e que era radicalmente contra os comunistas pró-soviéticos. 

   É certo que Sartre e Simone propunham-se um engajamento que poderia ser chamado de liberal-esquerdista, uma vez que denunciavam a ocupação francesa na Argélia e na Indochina e, ao contrário de Koestler e de Camus, não praticaram um anticomunismo histérico. Procuravam um caminho que unisse liberdade e socialismo e mesmo nos piores momentos da guerra fria não se deixaram envolver pela propaganda fascista. 

   Antes de tudo, Sartre julgava necessário participar dos combates do seu tempo. Ser e Fazer são verbos que, para o pensamento de Sartre, se interpenetram, mesmo sabendo que existe a liberdade de Não-Ser e de Não-Fazer. Para Sartre, era impossível não se comprometer, e isso significava ser o sujeito da sua história e da própria História. O contrário seria agir como um alienado moral, tratando as demais pessoas sem reflexão, sem questionamentos sobre justiça, igualdade, semelhanças e diferenças.  

   Sartre tentou ser coerente com o seu pensamento e acredito que não apoiaria Israel se tivesse acesso a maiores e melhores fontes de informações sobre a questão palestina. Durante e após a Guerra dos Seis Dias Israel posou como vítima de anti-semitismo na falta de argumentos por ter invadido a terra dos palestinos. Defender Israel era uma imposição da mídia que fabricava pessoas massificadas, uniformizadas em um pensamento que julgavam livre de estereótipos, até entre a intelligentsia européia. 

   O que não se entende é como uma pessoa inteligente, como Sartre confundiu anti-semitismo com anti-sionismo, mesmo porque a expressão “anti-semita” não se restringe unicamente ao povo judeu. O termo “semita” designa o conjunto composto por uma família de vários povos que possuem as mesmas raízes culturais e lingüísticas. A família semítica abrange o acadiano, ugarítico, fenício, hebraico, aramaico, árabe, etíope, egípcio, copta-gala, afar-saho, assírio e caldeu – palestinos, sírios, líbios, afegãos, iraquianos, egípcios e os povos árabes em geral. O termo “semita” define todos os povos do Oriente Médio. Tampouco Judaísmo é sinônimo de semitismo. Judaísmo é uma religião, assim como Cristianismo ou Islamismo – e não designa um povo, uma raça, uma etnia ou uma nacionalidade. 

   Sionismo, por seu lado, é uma ideologia racista composta predominantemente por uma minoria de judeus que detêm os principais meios de comunicação mundiais, bancos, empresas multinacionais e, atualmente, dominam o Estado de Israel. O seu objetivo primeiro é restaurar os limites históricos e bíblicos da Terra de Israel ou Grande Israel (em hebraico: Eretz Yisrael Hahslemah). Os sionistas israelenses utilizam esse conceito para justificar as guerras árabe-israelenses e a ocupação da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Colinas de Golam. Theodore Herzl, fundador do sionismo, defendia que a Grande Israel é um estado judeu alongado desde o rio Nilo, no Egito, até o Eufrates, no Iraque, incluindo partes da Síria e do Líbano. 

   E, no entanto, Sartre defendeu o sionismo. Em 1975, a ONU adotou a Resolução 3379, considerando o sionismo equivalente a racismo, com 72 votos a favor, 35 contra e 32 abstenções. A Resolução 3379 afirmava que “o sionismo é uma forma de racismo e discriminação racial” e “o regime racista na Palestina ocupada e o regime racista no Zimbabwe e na África do Sul têm uma origem imperialista comum, formando um todo e tendo a mesma estrutura racista e sendo organicamente ligados na sua política destinada à repressão da dignidade e integridade do ser humano”. 

    Sartre, Simone de Beauvoir, Bernard Henry-Levy, Raymond Aron e outros intelectuais protestaram contra a Resolução 3379. Em 1976, Sartre recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Jerusalém. Em 1991, sob pressão de George Bush, a Assembléia Geral da ONU revogou a Resolução 3379.  
   A mesma ONU, a partir da Resolução 181 da sua Assembléia Geral, tinha criado artificialmente o Estado de Israel, em novembro de 1947, dentro do território palestino. A criação de Israel provocou a imediata expulsão de mais de 750.000 palestinos do seu território por um exército muito bem armado de colonos judeus oriundos da Europa devastada pela 2ª Guerra. Em 1949, ao final dos combates, Israel havia expandido as suas fronteiras, passando a ocupar 78% da Palestina histórica. 

   Era apenas desinformação de Sartre ou o fato de estar cercado por pessoas como Aron, Lanzmann, Levy e reacionários afins que, muitas vezes, passavam por pacíficos revolucionários, influenciaram o seu pensamento? O pacifismo que se diz revolucionário foi uma das piores pragas geradas durante a segunda metade do século XX, porque previa o quietismo, a sonolência, a contemplação e a passividade. O pacifismo que se diz revolucionário participou do Maio de ‘68, mas não chegou a junho, mês em que se recolheu ao escritório para escrever belas teses que defendiam a sua inação. O pacifismo que se diz revolucionário deixou como herança uma geração de acadêmicos apaixonados pela própria inteligência e que desejam, em primeiro lugar, ficar em paz com os opressores e donos do mundo. 

   Em maio deste ano, a Rússia, em resposta às sanções européias publicou uma lista com 89 personalidades proibidas de entrar no território russo. Entre elas, Bernard-Henry Levy e Daniel Cohn-Bendit. Assim como Sartre, ambos de origem judia e, ao contrário de Sartre, ambos defensores do capitalismo selvagem. Cohn-Bendit passou-se por anarquista no Maio de ’68 e hoje é um líder direitista da Aliança Livre Européia. Bernard-Henry Levy é um empresário francês que escreveu vários livros antimarxistas e participa de revistas pseudo-esquerdistas. Defendeu o boicote dos Jogos Olímpicos de 1980, na União Soviética, e atualmente é a favor da invasão da França na Síria. 

   A jornalista portuguesa Ana Navarro Pedro, correspondente do jornal “Público”, escreveu uma matéria muito lúcida intitulada “Sartre Revisitado”, a respeito do livro de Bernard-Henry Levy “O Século de Sartre” (http://www.publico.pt/culturaipsilon/jornal/sartre-revisitado-139057). Recomendo a leitura e destaco a frase final. 

    “Compreende-se assim melhor que, ao cabo de 650 páginas de escrita ligeira como a espuma do melhor champanhe, não se saiba o que resta de Sartre hoje em dia: se as suas teses têm ou não alguma actualidade, se o autor de “As Palavras” ou de “O Ser E O Nada”, é ainda lisível. Ou se houve, ou não, impostura intelectual.”

   A direita também tem os seus defensores travestidos de intelectuais que se dizem de “esquerda”, uma nova esquerda que sempre pende para a direita carregando consigo medrosos pensadores de todos os lugares, que preferem pensar o estabelecido na tentativa de dar-lhe novas cores. Não é de estranhar que Caetano e Gil se apóiem em Sartre e Simone para defender o Estado fascista de Israel. Nem Caetano nem Gil são conhecidos como pensadores, ou filósofos, mas em muitas de suas letras influenciaram gerações entontecidas entre a ditadura militar e a falsa democracia civilista. 

   Gil e Caetano sentem uma certa náusea em falar em política e talvez não saibam que, inevitavelmente, todos os seus atos são referências políticas para os seus fãs. Tocar em Tel-Aviv será uma tomada de posição a favor do sionismo, o que fará com que Tropicália passe a combinar com apartheid.

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