segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A LENDA DA LAGOA DA MÚSICA




Confunde-se História com Lenda. História significa “pesquisa”, “conhecimento advindo da investigação”, e necessita não só de relatos orais, mas de vestígios e documentos que comprovem o fato histórico. Ao mais das vezes, a pesquisa histórica pede o apoio de outras ciências, como a Arqueologia, Paleontologia, Epigrafia, Numismática, Genealogia e Paleografia. Opiniões divergentes sobre determinado acontecimento deveriam levar à busca da verdade histórica através do apoio das ciências citadas acima e não a uma formal síntese dialética respaldando o que, muitas vezes, carece de base científica e leva ao erro em benefício de determinados grupos de poder que dele se beneficiam.

  Lenda é uma narrativa fantasiosa, fictícia, transmitida pela tradição oral. Não é improvável que lendas se transformem em fatos históricos, se o pesquisador dedicado buscar e encontrar a comprovação científica das narrativas. Por exemplo, a existência da cidade de Tróia era considerada lendária até que o arqueólogo Heinrich Schliemann, nos anos 1870, viajou para a Anatólia e fez escavações no sítio arqueológico de Hisarlik, revelando várias cidades construídas em sucessão. Uma delas, nomeada Tróia VII é identificada como a Tróia homérica, que passou de lenda a fato histórico.

    Um caso raro, quase único. Também pode ocorrer o contrário: fatos considerados “históricos” tomarem caráter lendário quando desmistificados. Mesmo assim, o poder das lendas no imaginário popular é tão grande que elas persistem em desfavor da História, esperando o surgimento de gerações não ligadas aos centros de poder e afeitas à investigação da veracidade dos acontecimentos para que os fatos históricos se imponham cientificamente.

    Um exemplo é a famosa batalha de Kadesh travada no ano de 1296 antes de Cristo, entre o faraó Ramsés II e o rei hitita Muwatalis. A ‘História oficial’ dá a vitória a Ramsés II, porque este, logo após a batalha, mandou gravar frisos comemorativos; além disso, odes foram escritas em favor do faraó. E os historiadores acreditaram sem um maior esforço comparativo, sem a necessária e isenta pesquisa. Tão grande foi o mito criado em torno de um Egito Antigo imbatível e com uma auréola mística que a ciência foi trocada pela lenda. Nos anos 1950, C. W. Ceram lançou o livro “O Segredo dos Hititas”, onde, com base em ampla pesquisa e amparado em vasta bibliografia, comprova que naquele evento histórico Ramsés II foi completamente derrotado e só não foi capturado porque conseguiu romper o cerco e fugir. Apesar disso, Ramsés II é conhecido até hoje, através dos livros didáticos e da ficção que não se afasta muito daqueles, como Ramsés, o Grande.

    Distinguir entre história e estória, entre verdade e irrealidade é um dos grandes desafios para o pesquisador livre de preconceitos. Expressões como “sabe-se, dizem, consta, afirma-se, comenta-se, relatam” não podem fazer parte do vocabulário de quem busca a comprovação da tradição oral sem que haja a necessária corroboração científica do que se diz ou se comenta. Por outro lado, o desmanchar de mitos, principalmente os que são considerados “históricos”, é avaliado como um ato de iconoclastia pelo povo e seus fiéis vigilantes interessados em preservar a lenda, a ficção, o engodo, a farsa, a mutilação dos fatos.

   O conceito de imaginário coletivo (conjunto de símbolos, imagens, memória e imaginação de um grupo social ou comunidade) ou representações da realidade que ultrapassam o mundo real, adquirindo características de mito, tende a justificar inverdades em relação a fatos que se tornam patrimônio comum, ícones de determinado momento histórico, reprocessados pelos meios de comunicação, replicados pela cultura popular – canções, contos, narrativas ficcionais – ao ponto de se transformarem em “verdades” intocáveis, posto que fixados, aderidos à cultura de determinadas comunidades como episódios incontestes.

    Os povos necessitam não só de fatos históricos, mas também de lendas, de beleza, de poesia. De imaginação. Criamos o mito para nossa apropriação, transformando-o em algo transcendente, inalcançável pelos sentidos ou pelo raciocínio lógico tão detestável em sua demasiada pureza robótica. Um poema heróico, como a Ilíada, a Eneida ou Os Lusíadas é belo por si mesmo e não somente pelos fatos que narra. O aspecto formal e o conteúdo são complementos no fazer artístico e a arte é a conciliadora das emoções, a desbravadora de miragens, a grande aventureira do inconsciente. E é no inconsciente coletivo que certas imagens perduram, fatos inverossímeis se solidificam, mitos e lendas são criados desafiando a razão e a objetividade e negando a ciência.

    No entanto, a História – que se requer ciência – não pode negar-se às provas e evidências em favor da imaginação popular apenas para preservar a solução mais fácil, e os historiadores, os verdadeiros, não devem se deixar manipular preguiçosamente pelas verdades oficiais que costumam surgir após cada mudança histórica. Caso contrário, não serão historiadores, não estarão pesquisando, mas participando fisiologicamente das mentiras que os donos do poder costumam produzir através de todas as mídias na busca de perpetuação. Não cabe ao estudioso a confirmação de falsas evidências ou de fatos falhos de provas, ou estará negando a si mesmo.


O COMBATE DO RIO NEGRO

    Em 1893, durante a primeira revolução federalista, contra a ditadura de Floriano Peixoto e o governo do Presidente (Governador) do estado, Julio de Castilhos, e por ocasião do cerco da cidade de Bagé, aconteceu no Rio Grande do Sul o combate do Rio Negro entre as forças revolucionárias do general João Nunes da Silva Tavares – Joca Tavares – e a coluna do marechal governista Isidoro Fernandes de Oliveira, que comandava cerca de 1.200 homens de cavalaria e infantaria e rumava para Bagé com o intuito de fortalecer as forças castilhistas.

   O combate durou três dias – 26, 27 e 28 de novembro de 1893 – e, na manhã do dia 28, depois de ter a sua cavalaria dizimada, perder cerca de trezentos soldados e com grande número de feridos, o marechal Isidoro rendeu-se à discrição, com a promessa de garantia de vida para si e todos os oficiais do 28º de Infantaria, sendo os prisioneiros entregues na coluna do general David Martins.

    Importante salientar que as forças que bateram a coluna do marechal Isidoro Oliveira eram comandadas por três generais: Pina D’Albuquerque, David Martins e o Comandante em Chefe, general Honorário João Nunes da Silva Tavares. No dia 26, o general Pina D’Albuquerque levou de vencida a cavalaria do general Isidoro, obrigando-o a se refugiar com o 28º regimento de Infantaria em um reduto próximo à estação do Rio Negro. O general Tavares mandou estender a Brigada do coronel Ulisses Reverbel em linha de combate, tiroteando o inimigo. Na tarde do dia 26, o general Tavares ordenou que o coronel Zeca Tavares atacasse pela margem direita do Rio Negro, ao romper do dia, devendo a coluna do general Pina D’Albuquerque atacar pelo lado da estação e, pelo outro lado, a coluna do general David Martins, formando um semicírculo. Durante todo o dia as forças revolucionárias ficaram em suas posições, tiroteando o inimigo sitiado, que se negava a capitular.

     No dia 27, antes de clarear o dia, o general Tavares ordenou ao major Bento Xavier, comandante do Batalhão Antônio Vargas da Divisão de Santana, avançar e tomar importante ponto estratégico do inimigo, com a proteção de um piquete de cavalaria comandado pelo coronel Boaventura Pereira Leite e o tenente-coronel Pedro Machado Leal. Depois de árdua refrega, a posição foi tomada, cortando as linhas inimigas, causando-lhe muitas baixas e provocando a perda de um vagão de munições Comblain. Em seguida a esta vitória, o general Tavares mandou um parlamento dizer ao marechal Isidoro que chegava de desgraças e que se desejasse a rendição mandasse com quem pudesse tratar. Logo depois, um piquete comandado pelo coronel Maneco Pedroso, das forças governistas, levou a resposta, dizendo que o marechal Isidoro Fernandes avisava que enquanto tivesse um soldado do 28º de Infantaria não se renderia. O combate continuou até a noite, ficando as forças revolucionárias em suas posições.

     No dia 28, ao romper do dia o combate recomeçou com mais intensidade até as 11 horas, quando o marechal Isidoro solicitou a rendição e foi atendido. As baixas governistas, segundo as partes, atingiram de 280 a 300 homens e as forças revolucionárias – de acordo com telegrama de Joca Tavares a Gaspar Silveira Martins, no dia 29 - foram “relativamente reduzidas”. Em um banhado próximo ao reduto governista, 15 homens de um piquete federalista que saiu em reconhecimento foram presos e degolados pelo conhecido assassino Cândido Garcia, que, por sua vez - junto com outros 22 conhecidos sicários a mando de Julio de Castilhos - foi passado pelas armas.

    Os prisioneiros foram entregues aos cuidados da coluna do general David Martins. Nas últimas horas do dia 28 e durante o dia 29 foi recolhido todo o material bélico encontrado no reduto governista e conduzidos os feridos, tanto das forças revolucionárias como das forças do governo, para o hospital de sangue que havia sido montado em uma casa próxima.


A GRANDE DEGOLA DA HISTÓRIA


     Em Bagé, todos “sabem” que o negro Adão Latorre degolou mais de 300 prisioneiros na Lagoa da Música, logo após o combate do Rio Negro. A partir de Bagé, esse “fato” foi espalhado por todo Brasil e hoje faz parte do que se entende como a “história da revolução de 1893”. No entanto, as bases em que se firma esse episódio são demasiado frágeis para que possa ser considerado verdadeiro, a não ser que seja feita uma verdadeira pesquisa de campo no local onde se localiza ou se localizou a Lagoa da Música e fique constatado que ali existe um ossário humano gigantesco datado da época do combate. Urge que as autoridades da cidade de Bagé e de Hulha Negra tomem providências a respeito para que todas as dúvidas sejam dirimidas. Além disso, é uma questão de piedade cristã o enterro desses ossos – caso existam – em campo santo para que não fiquem jogados como relíquias secretas de uma memória histórica que, talvez, tenha sido fabricada. Acredito que a Igreja Católica, na pessoa do Bispo Diocesano dom Gílio Felício, deveria tomar a frente e se manifestar a respeito exigindo o esclarecimento da verdade.

    Enquanto isso não acontece, algumas questões devem ser colocadas. A primeira delas diz respeito às fontes. Com o cerco apertando a cidade de Bagé, ainda não invadida, no dia 3 de dezembro chegou ao acampamento do general Tavares o Dr. Pedro Osório e o farmacêutico Amado Loureiro, vindos da cidade sitiada para oferecerem os seus serviços profissionais no hospital de sangue. Regressaram de tarde para a cidade. No dia 4, o Dr. Osório e Amado Loureiro, acompanhados pelo Dr. Viríssimo Dias de Castro, voltaram ao acampamento com um ofício do coronel Carlos Telles, comandante da cidade. Dizia o seguinte:

    “Comando da Guarnição e Fronteira de Bagé. Constando por declarações feitas por mulheres vindas do Rio Negro e dos acampamentos revolucionários, que estes cometeram a infâmia de degolarem todos os praças e oficiais prisioneiros rendidos no combate do Rio Negro, não escapando à degolação os míseros feridos, soldados do 28º de Infantaria e o seu distinto Comandante, Tenente-Coronel Donaciano de Araújo Pantoja. E sendo certo que o chefe dos revolucionários, em grande parte estrangeiros mercenários, tem por intermédio do Dr. Pedro Osório e do farmacêutico Amado Loureiro e outras pessoas, mandado declarar nesta cidade e à guarnição do meu comando que os prisioneiros rendidos do Exército Brasileiro estão com vidas garantidas e bem tratados. Intimo aos cidadãos Dr. Pedro Osório, Dr. Viríssimo Dias de Castro e Amado Loureiro, a irem imediatamente à charqueada buscar os feridos do 28º Batalhão para serem recolhidos ao hospital militar, e ao acampamento dos revolucionários donde devem trazer declaração escrita e assinada do Tenente-Coronel Pantoja de que está prisioneiro, a fim de que fique conhecida a verdade. Bagé 4 de dezembro 1893 (Assinado) Carlos Maria da Silva Telles – Coronel.

    “A fim de que fique conhecida a verdade”. O coronel Carlos Telles, veterano da Guerra do Paraguai e que, mais tarde, participou do massacre contra a população de Canudos, na Bahia, sob as ordens do general Savaget, quando foi gravemente ferido, desejava saber a verdade. Diante desse pedido, o general Silva Tavares determinou acompanhar a comissão, por parte do seu Estado-Maior, ao hospital de sangue. Em seguida, mandou trazer do acampamento do general David Martins o tenente-coronel Pantoja e todos os oficiais do 28º que se achavam prisioneiros. Perguntaram individualmente aos feridos governistas, na presença da comissão, se estavam sendo bem tratados e se desejavam ir para a cidade, ao que todos responderam negativamente, acrescentando que nada lhes faltava. Após, o comandante Pantoja reuniu os seus oficiais e redigiu uma declaração assinada por ele e pelos demais oficiais do 28º, dizendo que não tinham sido degolados e eram tratados conforme as circunstâncias e que os feridos não desejavam ir para o hospital de Bagé. Esta a fonte principal a respeito da suposta degola do Rio Negro.

    A outra fonte tida como verídica vem do livro de contos “Lagoa da Música”, do aclamado escritor e poeta bajeense Pedro Wayne. Cito.

    “(...) Sabem que numa tarde inteira e numa noite toda de noventa e três, a faca do negro Adão Latorre não parou um instante de cortar carótidas. Sabem que dos mil prisioneiros encerrados como animais na mangueira de pedra, ao lado da Lagoa, trezentos e muitos foram degolados. Houve os que eram laçados e arrastados até o chão do sacrifício, ali despidos das roupas antes de serem imolados. Outros, depois de desnudados mandados deitar para melhor ser procedida a chacina. E dizem os que escaparam que o negro Adão chamava um por um dos guerreiros presos e mandava-os pronunciar a letra jota. O que em vez de jota pronunciava rota era castelhano e recebia incontinenti o aço afiado que lhe abria o talho de orelha a orelha. (...)"

    Tenho um exemplar de “Lagoa da Música”, de Pedro Wayne, publicado em 1955 pela editora Globo, de Porto Alegre. Não sei se é uma primeira edição, na época não havia ficha catalográfica. Considerando, no entanto, que o livro tenha sido escrito e publicado nos anos 1950, os mais de 50 anos decorridos do combate do Rio Negro dão ao escritor todas as desculpas no caso de equívoco, principalmente se levarmos em conta que os castilhistas venceram aquela revolução – com a rendição de Silveira Martins, através de Joca Tavares, em 1895 - e fizeram todo o possível para denegrir os revolucionários. Além disso, o autor faz questão de frisar que escreveu um livro de causos, de ouvir falar e contar. Lagoa da Música é um dentre vários causos ou contos do livro.

     A lenda da degola na Lagoa da Música avolumou-se a tal ponto que se transformou em “história”, e atualmente, em Bagé, todos “sabem” que Adão Latorre, um negro do exército federalista, degolou mais de 300 prisioneiros durante uma tarde e toda uma noite de 1893 – apesar das declarações escritas do tenente-coronel Pantoja e de toda a oficialidade do 28º de Infantaria. Os jornais castilhistas “A Federação” e “A Gazetinha”, de Porto Alegre, reforçaram a lenda da degola do Rio Negro ao reproduzirem a desinformação com freqüência, de cada vez acrescentando mais detalhes –, ao mesmo tempo em que mentiam sobre os objetivos da revolução federalista, dizendo que os revolucionários eram bandidos e monarquistas. Assim, não se pode culpar Pedro Wayne por repetir como verdade as informações que recebeu a respeito desde criança. Mas cabem algumas observações sobre as fontes citadas.

     A degola, se de fato aconteceu, é atribuída a uma única pessoa: Adão Latorre, que era negro. Até hoje, em relatos e canções que aumentam a ficção, a cor da pele de Adão Latorre é salientada como fator subliminar que reforça o preconceito de cor, como se o fato de ser negro fizesse do degolador uma pessoa extremamente má. Não se diz: “Adão Latorre degolou”, mas “o negro Adão Latorre degolou”.

  Aqui há uma falácia. É impossível que a responsabilidade da degola – se existiu – seja atribuída a somente uma pessoa, um simples major de um exército revolucionário. Seria o mesmo que dizer-se que o pelotão que fuzila é o responsável direto pela morte do condenado. Se houve uma degola no Rio Negro, em novembro de 1893, o responsável principal teria sido o general Silva Tavares, Comandante em Chefe das forças revolucionárias. Em segundo lugar, o general David Martins, responsável pelos prisioneiros, e, em escala decrescente, todos os oficiais da coluna de David Martins, sendo que Adão Latorre teria sido o executor.

  Subentende-se que se deseja tirar toda a responsabilidade dos verdadeiros mandantes – caso a degola tivesse sido verdadeira. Principalmente, porque os oficiais responsáveis pela suposta degola eram pessoas reconhecidamente honradas que lutavam por uma causa que consideravam justa e legítima. Não poderiam jamais ordenar a degola de mais de trezentos soldados aprisionados. Então, elegeu-se Adão Latorre, que era negro e não gostava de castelhanos. A “razão” é encontrada no conto de Pedro Wayne.

     “(...) Negro Adão, bronco como era, trazia no peito ferida braba recém-aberta que não lhe dava trégua ao sofrimento, é que não fazia muito, gente daquela força que ali estava rendida degolara um filho seu. (...)”

    Uma explicação que nada explica e que chegou ao escritor como verdadeira e assim ele transpôs para o seu conto. Adão Latorre, por mais que desejasse vingança não possuía autonomia para decidir, sozinho e por motivos pessoais, o assassinato de mais de trezentos prisioneiros. Mesmo que fosse apenas um a ser assassinado, Adão Latorre não poderia fazê-lo. Era um soldado e obedecia ordens superiores. O exército revolucionário estava perfeitamente organizado em colunas com seus respectivos comandantes e demais oficiais. Havia hierarquia em forma de pirâmide militar e era exigida disciplina. Se houve uma grande degola – o que ainda está para ser provado – a responsabilidade desse crime recai nos oficiais superiores a Adão Latorre.

    Pedro Wayne salienta que o degolador escolhia as suas vítimas, matando, de preferência, os castelhanos. Ora, não é crível que o exército brasileiro, mesmo em 1893, tivesse em suas fileiras soldados, ou mercenários, uruguaios. Ao contrário, o exército federalista era acusado de conter mercenários castelhanos e não as forças governistas. Quando o coronel Carlos Telles escreveu para Joca Tavares sobre os boatos de degola, exigindo que fosse verificada a verdade dos fatos pela comissão de dois médicos e um farmacêutico por ele enviada ao acampamento revolucionário, há a seguinte observação: “(...) E sendo certo que o chefe dos revolucionários, em grande parte estrangeiros mercenários (...)”.

     Ao próprio exército federalista era dado o apodo de maragato, porque os exilados que em 1893 entraram no Brasil na tentativa de derrubar Julio de Castilhos estavam confinados em uma região do Uruguai colonizada por pessoas originárias da Maragateria, na Espanha, província de Leão. Os maragatos colonizaram não só San José de Mayo, no Uruguai, como a região de Viedma, na Argentina. Por extensão, os revolucionários eram chamados de maragatos e por erro ou desconhecimento até hoje se afirma que os federalistas foram apelidados de maragatos porque usavam lenços vermelhos no pescoço(!). Na verdade, também usavam lenços brancos e de outras cores durante a revolução que iniciou em 1893. Na segunda revolução federalista, em 1923, os lenços colorados distinguiram maragatos de chimangos (governistas), que usavam lenços brancos. Mas não se deve confundir a primeira revolução federalista (1893), que tem características muito próprias, com a segunda, a de 1923, mesmo que os dois movimentos revolucionários tenham sido alcunhados de maragatos.

    Depois que Silveira Martins se retirou para Buenos Aires e lá ficou, desde o início de agosto de 1894, até a falsa paz, cerca de um ano depois, em 1895, entregando a condução política da revolução a um comitê liderado pelo almirante Saldanha da Gama, este mandou confeccionar divisas para o exército federalista nas cores verde e amarela. Em carta ao general João Nunes da Silva Tavares, datada de 27 de dezembro de 1894, Saldanha da Gama acrescenta: “Vão inclusos os primeiros exemplares da nossa única e primeira divisa. Queira Vossa Excelência aceitá-las para si. São feitas por senhoras brasileiras. Em breve remeterei quantidade bastante para distribuir pelos chefes e mais companheiros. Gama”. O general Silva Tavares imediatamente comunicou os demais chefes revolucionários sobre as cores da nova divisa. Ao coronel Mateus Colares, explicita: “Breve enviarei uma nova divisa que o diretório central resolveu usar. É verde e amarela, cores do nosso pendão. Representa a harmonia geral e acaba a má prática dos distintivos branco e vermelho que nada exprimem”.


MEMÓRIAS DA BÍBLIA


  Naquele dezembro de 1894 as forças revolucionárias se reagrupavam, Aparício Saraiva invadia com uma nova coluna, Prestes Guimarães levantava o Alto Uruguai, na região de Passo Fundo, com vitórias seguidas sobre os governistas e não se imaginava que a revolução teria tão trágico desfecho, quase oito meses depois, em seguida à morte de Saldanha da Gama, massacrado com os seus 220 homens contra mais de 1.400 soldados de João Francisco Pereira de Souza e coronel Antonio Cândido de Azambuja. Os cadáveres foram mutilados e ficaram irreconhecíveis.

    Sobre esses fatos, manifestou-se o general Silva Tavares na ordem do dia de 30 de junho de 1895: “(...) A mutilação do seu cadáver é a desonra das forças legais contra os libertadores da nossa terra natal asselvajada por uma horda de fanáticos, pela ditadura positivista. A nossa causa continua a ser a causa da liberdade e da humanidade, e quanto mais bárbaro e selvático for o procedimento dos nossos adversários, mais justificado perante a História o nosso procedimento, a nossa tenacidade na luta. Chamaram-nos assassinos do Rio Negro onde aprisionamos o Marechal Isidoro Fernandes de Oliveira, Coronel Pantoja e toda a oficialidade do 28º Batalhão de Infantaria, que hoje gozam plena liberdade; e eles, os puros, os imaculados, mutilam cadáveres e nunca fizeram um só prisioneiro! (...)”.

    É quase certo que havia soldados uruguaios no exército federalista, ao qual Adão Latorre pertencia, e não no exército governista. Da mesma forma, descontente com a paz forjada em 1895 que ultrajava a revolução, Aparício Saraiva internou-se no Uruguai com mais de 2.000 soldados. Lá, combatendo pelo Partido Blanco (nacionalista) ficou conhecido como “Águila Blanca”, impondo sucessivas derrotas aos governistas. Finda a revolução com a vitória dos nacionalistas, retira-se para sua fazenda, El Cordobez, onde recebe sucessivas visitas de jornalistas e é reconhecido como o primeiro grande guerrilheiro latino-americano. Morreu lutando em posterior revolução uruguaia.

    A de 1893, no Rio Grande do Sul, foi uma revolução que não deixou saudades, mas muitas indagações que a história oficial insiste em apagar, tentando recriar os fatos ao gosto dos donos do poder.

   Adão Latorre não poderia matar sem ordem superior. Tampouco escolher soldados uruguaios para assassinar, porque a coluna do marechal Isidoro era composta por brasileiros. Ainda mais estranha a versão colhida por Pedro Wayne e transcrita no seu livro “Lagoa da Música”: “(...) E dizem os que escaparam que o negro Adão chamava um por um dos guerreiros presos e mandava-os pronunciar a letra jota. O que em vez de jota pronunciava rota era castelhano (...)”.

    Uma história (ou estória?) que tem mais de seis mil anos e é encontrado no Velho Testamento. Também ‘dizem’ que a História se repete, mas não tanto e com tamanha semelhança. Em Juízes, 12, versículos 5 e 6, sobre uma das guerras civis entre tribos judias, no caso, Gilead e Efraim, reproduzo literalmente o que se lê a seguir:

    “Os Gileaditas apoderaram-se dos vãos do Jordão contra os Efraimitas; quando algum dos fugitivos de Efraim dizia: Deixai-me passar, perguntavam os homens de Gilead: És tu Efraimita? Se ele respondia: Não; replicavam-lhe eles: Dize Shibboleth. Se ele respondia Sibboleth, não conseguindo pronunciar bem, pegavam dele, e o degolavam aos vãos do Jordão. De Efraim caíram naquele tempo quarenta e dois mil homens.”

     A Lenda da Lagoa da Música transformou-se, com o passar do tempo, na lenda da grande degola do Rio Negro levada a cabo pelo negro Adão Latorre. Muitos viram. Não se sabe quem exatamente. Mas há quem diga que avós souberam através de pessoas que teriam assistido à degola durante toda uma tarde e toda uma noite que foram mais de trezentos os degolados e que o último a ser degolado foi o clarim, conforme narra Pedro Wayne.

    “Cabeça erguida, voz firme e insultante, ordenou ao preto carrasco:
    “- Degola negro malévolo, que um gaúcho não se achica!
    “Na fita branca de seu chapéu de abas largas, tinha a legenda atrevida: ‘Não peço nem dou vantagens!’
   “Seu corpo deformado afundou nas águas da Lagoa, encerrando aquele trágico episódio.
   “Desde aquele dia, sabem os moradores do Rio Negro, que na mesma hora em que, no combate feroz e prolongado, foi dada a ordem de rendição, a alma do jovem combatente vem do fundo da Lagoa, subindo lentamente, enquanto o seu clarim repete as mesmas notas do toque de ‘cessar fogo’.”

    No livro “Diários da Revolução de 1893”, tomo II, página 72, há uma nota de rodapé, atribuída ao general Joca Tavares, que diz o seguinte:

    “Muito se falou na matança do Rio Negro, não foi como exploraram, contaram como assassinados todos os corpos que encontraram no campo e reduto (...). No Rio Negro, foram passados pelas armas somente os ladrões e assassinos de maior nomeada, já denunciados em documento público e oficial pelo General João B. da Silva Tavares, e em número de 23, cujos indivíduos, em virtude das ordens que tinham do governador do Estado, e sabendo com isso serem agradáveis ao seu chefe Castilhos, matavam a todos os adversários que encontravam, e quando a vítima era de posição social, ou influência política, trucidavam o cadáver, mandando as orelhas de presente ao seu chefe.”

     Com a palavra os representantes das prefeituras das cidades de Hulha Negra (onde hoje fica a Lagoa da Música) e de Bagé, para que a verdade seja desvendada em pesquisa no sítio onde se localiza a Lagoa da Música. Talvez prefiram o silêncio.



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Fontes:

“Lagoa da Música”, de Pedro R. Wayne.

“Diários da Revolução de 1893”, tomo II, organizados por Coralio Bragança Pardo Cabeda, Gunter Axt e Ricardo Vaz Seelig.

Bíblia Sagrada.

2 comentários:

  1. Excelente matéria sobre lendas e História (fatos históricos ), estando muito bem embasada através do conhecimento a diferença entre ambas. Parabéns! Muito aprendi. Como sempre.

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  2. Excelente matéria sobre lendas e História (fatos históricos ), estando muito bem embasada através do conhecimento a diferença entre ambas. Parabéns! Muito aprendi. Como sempre.

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