Estridentes gargalhadas
me acordaram da sesta. Levantei e fiquei ouvindo. Na tarde de domingo em Três
Estrelinhas, dia em que não se ouve nem cachorro latir, vizinha arengar,
adolescente dizer palavrão ou criança malcriada gritar, no máximo um que outro carro
passando sonolento, estupendas gargalhadas rivalizavam com o lindo cantar dos
sabiás e bem-te-vis. Esta é uma cidade em que as pessoas, quando sorriem,
cobrem a boca. Por educação.
Passei uma água no rosto, me vesti e
saí de casa, guiado pelo barulho inédito. Os passarinhos me cumprimentaram, e
eu a eles. Algumas pombas vieram ciscar aos meus pés. Na esquina, garotos com
olhos semicerrados fumavam maconha e balbuciavam, uns para os outros, grandes
teses filosóficas que terminavam, invariavelmente, com as palavras “Pô, cara!”.
Discretos traficantes de crack vendiam a sua droga para enorme fila de pessoas
ansiosas, sob o olhar atento, cauteloso e cívico de policiais civis. Mais
adiante, algumas prostitutas tentavam se prostituir candidamente, sem grande
sucesso. Quase tropecei em dois ou três casais de gays e lésbicas que
praticavam calmos, elaborados e castos contorcionismos sexuais na calçada.
Fazia calor, era domingo e tudo transcorria normalmente. Apenas o gargalhar
gigantesco, repetido, incansável, atroador, desvairado, aturdia aquela tarde
quieta, singela, ingênua, cansada, sonolenta, preguiçosa.
“Uma tarde solitária”, pensei, enquanto
entrava em um posto de gasolina para tomar um cafezinho. “Uma tarde
solitária desejando, talvez, um definitivo pôr-do-sol”. No comes e bebes do posto
de gasolina, as pessoas, olhos grudados no televisor, mais bebiam que comiam.
Cerveja. Imaginei que estariam esperando a partida de futebol das 4h e depois a
das 6h, a das 7h... Bebendo. Há uma lei municipal contra ingerir bebidas
alcoólicas no interior de postos de gasolina, mas, como outras leis, é
ignorada. As leis não funcionam se não existe fiscalização e todos sabem que
este não é um país sério. Todos debocham da Justiça, que debocha de si mesma:
vejam o caso do Mensalão. As gargalhadas, não muito longe, aumentaram. Perguntei
ao atendente se ele estava escutando as risadas e ele respondeu “Pois é...”, e
me deu o troco.
Esta é uma cidade onde as pessoas em
geral falam muito pouco. Preferem ouvir: rádio, televisão, todos os enlatados
audiovisuais. Quando falam, é sobre dinheiro. Invariavelmente. A não ser que estejam
embriagados ou coisa parecida. Aconteça o que acontecer, ninguém comenta nada,
com exceção das reações induzidas, como os jogos de futebol, notícias
filtradas, novelas... As teses filosóficas estão reservadas para quem fuma
maconha, bebe ou usa outras drogas que mexem com os neurônios. Mas começam e
terminam enquanto dura o efeito. Dormem, acordam, repetem as atividades do dia
anterior com ligeiras variações, dormem, acordam... Nesta cidade todos são
muito previsíveis.
Menos o seu Chico, que eu saiba.
Encontrei-o quase sufocado de tanto rir, sentado em um dos bancos da praça
devastada de grama e quase totalmente despida de árvores e bancos, depois de
sofrer a última revitalização do que chamam por aqui de “poder público” – que não
tem nada a ver com o povo, mas é uma maneira de apelidar os donos da cidade.
Nas poucas árvores, caturritas que tinham expulsado os passarinhos gritavam. A
cidade está sendo gradualmente tomada pelas caturritas. Começaram a invasão instalando-se
nas árvores que restam em torno do Quartel-General. Fizeram ali os seus enormes
ninhos. Quando as vi naquele local, considerei que havia lógica: caturritas são
verdes. Depois, a lógica sumiu, quando as caturritas tomaram conta das praças e
das últimas grandes árvores. Preocupado, comentei com várias pessoas a
respeito. Mudavam de assunto. Nesta cidade, o que acontece ou deixa de
acontecer logo ali acima dos que caminham pelas calçadas ou trafegam pelas ruas
não faz a menor diferença. Ninguém se importa, preferem escrever pias mensagens
comportamentais no Facebook.
Ajudei o seu Chico a se recuperar da
última gargalhada e perguntei a razão de toda aquela alegria.
- Mas não tem lido as notícias,
vivente? – perguntou, com cara de alarme.
- Ora, seu Chico, o senhor sabe que as
notícias...
- Eu sei, eu sei. Eles só publicam o
que interessa aos patrões dos jornais. Além do quê, mesmo que desejassem
publicar o resto, não haveria leitores. Quem se interessa pelo quê? Aqui,
jornal só vende se tiver coluna social e comentários sobre as novelas. Mas fora
daqui, logo ali passando a porteira e indo mais além, depois do campo desertificado
por produtos agrícolas e pelos transgênicos e seguindo em frente... E deu outra
gargalhada. Recuperou-se, aos poucos, e falou: - Sabe a última da dona Dilma?
- Qual delas?
- Qual delas? – essa é ótima! Têm
tantas... Me refiro à reação da chefe do Poder Executivo contra a espionagem.
Limitou-se às mensagens pela Internet. Depois que soube que não é só os Estados
Unidos, mas todos os irmãos de língua inglesa – Nova Zelândia, Canadá,
Inglaterra, Austrália – que estão vigiando o seu governo para ver se ela se
comporta bem, conforme o agendado, e não só a ela, como a todos os brasileiros
e não brasileiros que desejarem, sabe o que a dona Dilma fez?
- O quê?
- Nada! O amigo não se deu conta que as
notícias sobre espionagem sumiram do noticiário?
- Na verdade, eu não tenho acompanhado
muito.
- E como acompanhar, se não há o que
acompanhar?
- Mas então, a última dela não é a
última. Não fez nada...
- Fez! O pior é que fez! Não fez nada a
nosso favor, não fez nada para defender os cidadãos da invasão eletrônica, da
espionagem telefônica, do roubo de senhas, da investigação dos e-mails.
- Então, ela fez o quê, seu Chico?
- Ela encontrou lá uma maneira de
proteger os seus próprios e-mails e os dos seus ministros e mais achegados, e
ficou tudo por isso mesmo. E o pedido de desculpas que foi exigido dos Estados
Unidos e do Canadá? Nem ligaram pra ela. Não é uma total desmoralização? Só rindo.
Às vezes eu penso em cruzar a fronteira e ir pro Uruguai, respirar um pouco de
dignidade. E o último leilão do nosso petróleo? Pois não está na Constituição
que as riquezas do subsolo pertencem ao Estado? E agora estão vendendo...
- Mas quem está leiloando é o Governo,
seu Chico.
- O Governo não é o Estado, mas apenas
uma das suas instituições, assim como as escolas, o exército e outras tantas
instituições que compõem o Estado. Não se pode confundir Governo com Estado. E
nenhum governo pode ir contra a Constituição.
- Eu sei que existem muitas ações
contra esse leilão.
- E sabe no que vão dar? Em nada.
- O pior é isso. Se ninguém defende o
Estado, a nação fica desamparada.
-
Desamparada e relegada a...
Naquele momento, ouviu-se uma gritaria,
foguetes e buzinas. A cidade acordava exultante. Seu Chico me olhou, irônico.
- Deve ter sido um gol, seu Chico.
- Pois era o que eu estava dizendo: a
nação ficou relegada a gritos de gol. Não dá vontade de rir?
Um bom recado para D.Dilma e asseclas. Às vezes dá vontade de acompanhar S.Chico e rir. Rir muito.
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