segunda-feira, 21 de outubro de 2013

GARGALHADAS




Estridentes gargalhadas me acordaram da sesta. Levantei e fiquei ouvindo. Na tarde de domingo em Três Estrelinhas, dia em que não se ouve nem cachorro latir, vizinha arengar, adolescente dizer palavrão ou criança malcriada gritar, no máximo um que outro carro passando sonolento, estupendas gargalhadas rivalizavam com o lindo cantar dos sabiás e bem-te-vis. Esta é uma cidade em que as pessoas, quando sorriem, cobrem a boca. Por educação.

     Passei uma água no rosto, me vesti e saí de casa, guiado pelo barulho inédito. Os passarinhos me cumprimentaram, e eu a eles. Algumas pombas vieram ciscar aos meus pés. Na esquina, garotos com olhos semicerrados fumavam maconha e balbuciavam, uns para os outros, grandes teses filosóficas que terminavam, invariavelmente, com as palavras “Pô, cara!”. Discretos traficantes de crack vendiam a sua droga para enorme fila de pessoas ansiosas, sob o olhar atento, cauteloso e cívico de policiais civis. Mais adiante, algumas prostitutas tentavam se prostituir candidamente, sem grande sucesso. Quase tropecei em dois ou três casais de gays e lésbicas que praticavam calmos, elaborados e castos contorcionismos sexuais na calçada. Fazia calor, era domingo e tudo transcorria normalmente. Apenas o gargalhar gigantesco, repetido, incansável, atroador, desvairado, aturdia aquela tarde quieta, singela, ingênua, cansada, sonolenta, preguiçosa.
   
     “Uma tarde solitária”, pensei, enquanto entrava em um posto de gasolina para tomar um cafezinho. “Uma tarde solitária desejando, talvez, um definitivo pôr-do-sol”. No comes e bebes do posto de gasolina, as pessoas, olhos grudados no televisor, mais bebiam que comiam. Cerveja. Imaginei que estariam esperando a partida de futebol das 4h e depois a das 6h, a das 7h... Bebendo. Há uma lei municipal contra ingerir bebidas alcoólicas no interior de postos de gasolina, mas, como outras leis, é ignorada. As leis não funcionam se não existe fiscalização e todos sabem que este não é um país sério. Todos debocham da Justiça, que debocha de si mesma: vejam o caso do Mensalão. As gargalhadas, não muito longe, aumentaram. Perguntei ao atendente se ele estava escutando as risadas e ele respondeu “Pois é...”, e me deu o troco.
    
      Esta é uma cidade onde as pessoas em geral falam muito pouco. Preferem ouvir: rádio, televisão, todos os enlatados audiovisuais. Quando falam, é sobre dinheiro. Invariavelmente. A não ser que estejam embriagados ou coisa parecida. Aconteça o que acontecer, ninguém comenta nada, com exceção das reações induzidas, como os jogos de futebol, notícias filtradas, novelas... As teses filosóficas estão reservadas para quem fuma maconha, bebe ou usa outras drogas que mexem com os neurônios. Mas começam e terminam enquanto dura o efeito. Dormem, acordam, repetem as atividades do dia anterior com ligeiras variações, dormem, acordam... Nesta cidade todos são muito previsíveis.
         
     Menos o seu Chico, que eu saiba. Encontrei-o quase sufocado de tanto rir, sentado em um dos bancos da praça devastada de grama e quase totalmente despida de árvores e bancos, depois de sofrer a última revitalização do que chamam por aqui de “poder público” – que não tem nada a ver com o povo, mas é uma maneira de apelidar os donos da cidade. Nas poucas árvores, caturritas que tinham expulsado os passarinhos gritavam. A cidade está sendo gradualmente tomada pelas caturritas. Começaram a invasão instalando-se nas árvores que restam em torno do Quartel-General. Fizeram ali os seus enormes ninhos. Quando as vi naquele local, considerei que havia lógica: caturritas são verdes. Depois, a lógica sumiu, quando as caturritas tomaram conta das praças e das últimas grandes árvores. Preocupado, comentei com várias pessoas a respeito. Mudavam de assunto. Nesta cidade, o que acontece ou deixa de acontecer logo ali acima dos que caminham pelas calçadas ou trafegam pelas ruas não faz a menor diferença. Ninguém se importa, preferem escrever pias mensagens comportamentais no Facebook.
         
     Ajudei o seu Chico a se recuperar da última gargalhada e perguntei a razão de toda aquela alegria.
          
- Mas não tem lido as notícias, vivente? – perguntou, com cara de alarme.
         
 - Ora, seu Chico, o senhor sabe que as notícias...
         
 - Eu sei, eu sei. Eles só publicam o que interessa aos patrões dos jornais. Além do quê, mesmo que desejassem publicar o resto, não haveria leitores. Quem se interessa pelo quê? Aqui, jornal só vende se tiver coluna social e comentários sobre as novelas. Mas fora daqui, logo ali passando a porteira e indo mais além, depois do campo desertificado por produtos agrícolas e pelos transgênicos e seguindo em frente... E deu outra gargalhada. Recuperou-se, aos poucos, e falou: - Sabe a última da dona Dilma?
         
 - Qual delas?
         
 - Qual delas? – essa é ótima! Têm tantas... Me refiro à reação da chefe do Poder Executivo contra a espionagem. Limitou-se às mensagens pela Internet. Depois que soube que não é só os Estados Unidos, mas todos os irmãos de língua inglesa – Nova Zelândia, Canadá, Inglaterra, Austrália – que estão vigiando o seu governo para ver se ela se comporta bem, conforme o agendado, e não só a ela, como a todos os brasileiros e não brasileiros que desejarem, sabe o que a dona Dilma fez?
         
 - O quê?
          
- Nada! O amigo não se deu conta que as notícias sobre espionagem sumiram do noticiário?
         
- Na verdade, eu não tenho acompanhado muito.
          
- E como acompanhar, se não há o que acompanhar?
         
- Mas então, a última dela não é a última. Não fez nada...
     
- Fez! O pior é que fez! Não fez nada a nosso favor, não fez nada para defender os cidadãos da invasão eletrônica, da espionagem telefônica, do roubo de senhas, da investigação dos e-mails.
       
- Então, ela fez o quê, seu Chico?
         
- Ela encontrou lá uma maneira de proteger os seus próprios e-mails e os dos seus ministros e mais achegados, e ficou tudo por isso mesmo. E o pedido de desculpas que foi exigido dos Estados Unidos e do Canadá? Nem ligaram pra ela. Não é uma total desmoralização? Só rindo. Às vezes eu penso em cruzar a fronteira e ir pro Uruguai, respirar um pouco de dignidade. E o último leilão do nosso petróleo? Pois não está na Constituição que as riquezas do subsolo pertencem ao Estado? E agora estão vendendo...
          
- Mas quem está leiloando é o Governo, seu Chico.
          
- O Governo não é o Estado, mas apenas uma das suas instituições, assim como as escolas, o exército e outras tantas instituições que compõem o Estado. Não se pode confundir Governo com Estado. E nenhum governo pode ir contra a Constituição.
         
- Eu sei que existem muitas ações contra esse leilão.
         
- E sabe no que vão dar? Em nada.
         
- O pior é isso. Se ninguém defende o Estado, a nação fica desamparada. 

- Desamparada e relegada a...
         
     Naquele momento, ouviu-se uma gritaria, foguetes e buzinas. A cidade acordava exultante. Seu Chico me olhou, irônico.
         
- Deve ter sido um gol, seu Chico.
    
- Pois era o que eu estava dizendo: a nação ficou relegada a gritos de gol. Não dá vontade de rir?

Um comentário:

  1. Um bom recado para D.Dilma e asseclas. Às vezes dá vontade de acompanhar S.Chico e rir. Rir muito.

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