De longe, vi aquele homem alto,
que andava olhando para os lados e para trás, o que o fazia parecer um boneco
de molas. Caminhava devagar, mas, por momentos, dava breves e esquisitas
corridas em zigue-zague para depois parar, olhar pros lados e pra trás
novamente, e continuar contando os passos lentamente como se observasse o chão
onde pisava. Fiquei absorto a observá-lo. Nunca tinha visto algo parecido.
Estaria bêbado? Quando ele chegou perto, tentei desviar, mas um dos seus
movimentos bruscos tornou inevitável a colisão. Caí, mas me levantei rapidamente,
enquanto ouvia ele dizer: “Desculpe, desculpe, eu não queria, foi sem querer,
me desculpe, por favor, foi um acidente, não imaginei...”. Desculpei-o, e já ia
continuar o meu caminho quando ele fez questão de me convidar para entrar em um
café. Concordei e ele se apresentou.
- Muito prazer. Medo.
- Medo?
- Medo. Um nome como outro
qualquer. Há nomes os mais diversos. Já encontrei pessoas que se chamam Poeira,
Pedregulho, Areia...
- Claro. O meu nome é...
- Não diga! Prefiro não saber.
Há tantos perigos.
- Perigos?
- Na palavra. Já ouviu falar da
força da palavra? A palavra mata, dizem alguns ocultistas. Prefiro não
acreditar, mas nunca se sabe. Sempre é bom andar prevenido.
- Toma um café comigo?
- Tomo! Ou melhor, gostaria de
tomar, mas o senhor sabe do que é feito o café?
- Dos grãos do café.
- Isso é o que eles dizem.
Sabe-se lá o que misturam. Não me arrisco.
- Mas um cafezinho não mata
ninguém.
- Não mata, mas pode adoecer. Não imediatamente, eu sei, e
isso é o que é pior. Se desse para sentir os sintomas na hora, poderia ainda
evitar a insidiosa doença. Prefiro só sentir o aroma e adivinhar o sabor.
- Então beba um pouco d’água, coma alguma coisa.
- No meio da tarde? Não me alimento fora de hora. E a minha
comida eu mesmo faço. Mas aceito um pouco d’água. Bem pouquinho. É sem gás?
Hoje em dia não se pode beber água que não seja engarrafada. E assim mesmo...
- Não há razão para ter esse... como direi... receio das
coisas. A vida é para ser vivida. Nem tudo é perfeito, e, por isso mesmo,
devemos lutar contra o que está errado.
- Lutar? O senhor falou lutar? Quer dizer insurgir-se?
- É isso que quero dizer. Se o café, a água e outros
produtos estão adulterados, denuncie! O pior é ficar se queixando, não acha?
- Não acho. Desculpe-me se eu não acho o que o senhor acha –
falou constrangido. - Gostaria de achar, sinceramente. Detesto discussões,
conflitos. Mas insurreição é um pecado social! Não devemos, não se deve, é um
erro. Está tudo tão organizado e perfeito. Uma que outra coisa, talvez, não
esteja em acordo com essa perfeição: o café, a água, o ar. Pequenas coisas às
quais devemos estar atentos e procurar maneiras de fugir desses perigos. Como
eu faço. Insurreição jamais! O que seria da organização social se as pessoas
resolvessem se insurgir? Um verdadeiro caos!
- No entanto, a insurreição é um direito do cidadão quando
ele se sente lesado pelo Estado. Mesmo que seja a última atitude a ser tomada,
depois de todas as demandas judiciais, que todos sabemos protelatórias e
geralmente tendenciosas, principalmente quando envolve o Estado; se ainda
houver essa possibilidade deveremos utilizá-la. Já ouviu falar em desobediência
civil? Foi graças a ela que a Índia se libertou da Inglaterra, na época de
Gandhi. Um grande exemplo. E quando não funciona, então... Bom, em último caso,
como eu disse, às armas! As revoluções movem o mundo.
- Movem para destruir o que foi
organizado com tanto carinho. Cada um no seu lugar, sabendo o que deve fazer; o
povo obedecendo aos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário -,
eleições no devido tempo para que haja renovação dos nossos líderes a quem
devemos nos submeter com paciência. Isso sim é democracia, e não a insurreição,
a insurgência. E por algumas gotas de café, por água poluída!
- Eu falei em hipótese, caro
Medo. É claro que não deve haver qualquer insurgência por causa do café ou da
água, se estiverem adulterados. Queixar-se sim, procurar a Justiça. E se a
Justiça não funcionar?
- A Justiça sempre funciona.
Pode até demorar um pouco, são muitos processos, mas sempre tomará uma decisão
justa. Por isso é chamada de Justiça. Devemos obedecer aos magistrados. São
magistrados! Pessoas que podem tudo.
- E se essas pessoas que podem
tudo usarem o seu poder injustamente?
- Jamais! Seria uma
incongruência e isso é inadmissível. Como pode a Justiça ser injusta?
- Há momentos na vida de um
povo, quando as injustiças se acumulam e a tal de Justiça nada faz em que é
necessário...
- A resignação! Isso é que é
necessário. Um povo resignado só tem a ganhar. Quando as coisas não vão bem – e
nada é perfeito – o melhor a fazer é jogar suas esperanças na loteria, assistir
televisão, crer na Vontade Divina, acreditar que no dia seguinte tudo vai
melhorar; entrar no Facebook e ler aquelas mensagens de autoajuda, passear,
ouvir o canto dos passarinhos e ver as flores desabrochando. A vida é bela!
- Talvez seja bela para um
pequeno grupo, mas não para a grande maioria, que passa fome, carece de
educação, saúde, moradia; não têm bem-estar, lazer, sequer esperanças.
- É por isso mesmo! Gente sem
educação é mal-educada; a falta de saúde provoca neuroses, fazendo com que
pensem que a culpa é do Estado. E esse modo distorcido de pensar leva essas
pessoas a perder as esperanças, a não desfrutar da vida.
- Como pode desfrutar da vida
quem nada tem? – indaguei.
- Quem nada tem não tem nada a
perder – sentenciou. - Essa deve ser a verdadeira liberdade: viver ao ar livre
sem preocupações, como crianças, deixando-se levar pelas mãos afáveis da
verdadeira sociedade que a todos ampara de uma ou de outra maneira, muitas
vezes sem precisar pagar impostos, dormindo um dia aqui, outro dia ali, como
eternos turistas, apreciando a natureza, como diz aquela música sobre quem mora
nos morros em barracões com teto esburacado onde a Lua filtra a sua luz...
- E os que não têm nem um
barracão? Os sem teto, os sem terra? – perguntei.
- Não me fale nessa gente!
Vivem protestando! Mas o que é isso, meu Deus, o que é isso! Aonde vamos parar?
Querem terra, querem teto, querem isto, querem aquilo... E vivem invadindo as
terras dos outros, os terrenos dos outros, dos legítimos cidadãos, daqueles que
pagam imposto, pessoas responsáveis que produzem e ganham justamente o seu
dinheiro, sem precisar pedir a ninguém e, de repente, se veem esbulhados por
esses miseráveis.
- Esses miseráveis, como diz, é
gente que passa todo o tipo de dificuldade e que o Estado ampara minimamente,
ou não ampara, ao contrário do que reza a Constituição. Não estariam assim se
esta fosse uma sociedade justa e igualitária.
- Igualitária! Como pode uma
sociedade ser justa se for igualitária? A pirâmide social – e por isto é
chamada de pirâmide – é necessária para que haja a verdadeira justiça. Embaixo
o povo que trabalha – e até os que não trabalham – emprestando a sua força para
as tarefas mais árduas; no centro, a classe média lutando pela vida, uns subindo,
outros descendo; e lá no pico os mais preparados para exercer o papel de
governantes. Existe sistema mais perfeito?
- Ou mais imperfeito – corrigi.
Como pode ser perfeito um sistema onde um pequeno grupo é beneficiado em
detrimento dos demais? Onde existe uma grande massa de pessoas desesperançadas
e induzidas a acreditar que vivem numa democracia porque votam a cada dois anos
em eleições geralmente corruptas que nada mudam? As sociedades somente evoluem
através de mudanças sociais e, se necessário, de transformações mais drásticas,
revoluções.
- Mudanças, transformações,
revolução... Isso é um absurdo! Como diz o ditado: “Quando a carroça anda é que
as melancias se ajeitam”. Deixemos a carroça andar. Talvez não estejamos
percebendo, mas ela anda o necessário para ajeitar as melancias.
- Esse é um dos ditados para
pessoas acomodadas – observei. Assim como aquele: “Deixa estar para ver como é
que fica” ou “Devagar e sempre”. O que faz a maioria das pessoas acreditar que
elas não precisam fazer nada, basta ficar esperando para as coisas melhorarem.
E isso é uma falácia. As mudanças acontecem quando há consciência e vontade. E,
com medo disso, o Estado procura eliminar essa vontade e evitar essa
consciência.
- O Estado o Estado, o Estado! –
esbravejou. - Porque não diz o Governo, ou os governos? Há governos e governos.
Alguns procuram fazer com que a carroça ande rápido demais, e isso provoca
solavancos, o que não é nada bom para a paz social, e o que necessitamos é de
paz e não de mudanças abruptas. Já temos tantos problemas, como a violência.
Essa gente nas ruas protestando, nos obrigando a viver entre grades e com guarda-costas.
O que precisamos é de um governo forte, que imponha a paz através das armas.
- Não é uma contradição impor a
paz através da violência?
- Uma ditadura militar... Nada
como uma ditadura militar! Quando o povo começa a por as asinhas de fora só uma
mão forte para refrear os excessos.
- Isso seria um retrocesso e
não um avanço social – protestei. – Seria o máximo de reacionarismo.
Mas ele não me ouvia e
continuava a falar.
- Há os que me chamam de
reacionário, mas esta é uma palavra antiga, em desuso, que nada mais significa.
Se o povo quer melhorias deve confiar em seus governantes e eleger um
Presidente que faça essas melhorias, mas sem badernas, sem invasões de terra,
sem protestos! O povo deve obedecer aos seus governantes. Obedecer e nada mais
que obedecer.
- Mas isso é fascismo!
- Outra palavra em desuso.
- Não é a palavra, mas o que
ela significa: opressão, alienação, despotismo.
- Palavras, nada mais que
palavras...
- Percebo que já não teme as
palavras – constatei.
- Depende. Algumas eu
glorifico, outras eu detesto. Devemos ser seletivos, cautelosos. Agora eu devo
ir. São horas. Preciso estar em casa para preparar meu jantar, assistir à
novela, ao jornal...
- Não gosta de ler?
- Às vezes. Há coisas estranhas
nos livros.
- Palavras?
- Pensamentos. Pensamentos
perturbadores. Procuro evitá-los.
Cumprimentou, levantou-se e
saiu. Fiquei olhando. Caminhava devagar, observando o chão que pisava. Por
vezes, dava pequenas corridas, como se fugisse de baratas.
Felicito-o por este texto contundente e lúcido, que devia ser lido também por todos aqueles que impedem a mudança, que não abdicam das suas ideias fixas, e que vegetam, de braços cruzados, perante a sua própria destruição.
ResponderExcluirExcelente texto! Ótimos toques sobre o medo que paraliza boa parte do nosso mundo. Parabéns!
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