quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A RUSSIA EM XEQUE




O ano novo começou com 47 decapitações na Arábia Saudita. Todos os assassinados eram xiitas, incluindo um dos principais líderes religiosos – o iraniano Nimr al-Nimr. O objetivo, que foi alcançado, é óbvio: provocar a ira dos xiitas, e principalmente dos iranianos, com a clara possibilidade de fomentar uma guerra contra o Irã, aumentar o ódio ancestral entre sunitas e xiitas, dividir ainda mais o Oriente Médio, enfraquecer os governos da Síria e do Iraque e evitar a derrota completa dos exércitos terroristas.

   É uma espécie de “Plano B” (ou C, ou D...), visando proteger e incentivar as ações terroristas contra Síria e Iraque e colocar os países vassalos da Arábia Saudita e dos Estados Unidos contra o Irã, tendo em vista destruir o país persa.

   Ao mesmo tempo, coloca a Rússia em xeque, quase um xeque-mate. Ou defende o aliado Irã ou retira a força aérea da Síria para se escudar novamente entre suas fronteiras cercadas pela OTAN. O caminho do meio é tentar a via diplomática, buscando apaziguar os ânimos entre Irã e Arábia Saudita, o que pode dar em nada – a guerra está a caminho e a Arábia Saudita não a estaria provocando se não tivesse a certeza do apoio dos Estados Unidos, Israel e demais aliados.

   Há indícios de que a Rússia está prestes a declarar que a sua missão na Síria terminou – com muito sucesso, graças a Deus e a Putin – e que chegou a hora de repatriar os seus heróicos guerreiros, antes que mais um avião ou helicóptero seja derrubado. Realmente, foi um grande sucesso: a indústria bélica russa está vendendo mais do que nunca. O objetivo foi alcançado e os líderes russos devem estar pensando em uma retirada estratégica, deixando que o exército sírio e seus verdadeiros aliados – o Hezbollah libanês e as milícias iranianas – terminem o serviço.

   Em nenhum momento a Rússia pensou realmente em intervir de fato na guerra contra os exércitos terroristas que pretendem destruir a Síria. Caso contrário, teria enviado o seu próprio exército e a guerra já teria acabado há muito tempo. O que a Rússia tem feito na Síria – além de bombardear rotineiramente os terroristas – é entabular negociações e acordos com as demais partes envolvidas no conflito, como Turquia, Jordânia, Israel e a própria Arábia Saudita. Não por acaso Vladimir Putin disse que tinha sido atraiçoado pela Turquia – “uma facada pelas costas” - quando o governo de Erdogan, respaldado pela OTAN, derrubou um avião caça russo. Somente somos atraiçoados por amigos. E até aquele momento a Rússia acreditava que a Turquia poderia ser um país parceiro.

   A Rússia busca aliados desde que começaram as sanções dos países da União Européia e dos Estados Unidos e Canadá devido à reintegração da Criméia ao território russo. Aproximou-se da China e da Índia, duas potências nucleares, mas China e Índia também são próximas dos Estados Unidos e da OTAN, mesmo que a China tenha algumas divergências com os Estados Unidos e Japão, principalmente no que se refere à demarcação de fronteiras marítimas. Nada que provoque uma guerra: seria ingenuidade. A China cresce economicamente e quer expandir-se na América Latina e na África, como todo país imperialista. Para isso precisa do apoio do império liderado pelos Estados Unidos, ainda que não renegue algumas alianças estratégicas com a Rússia. Uma questão de diplomacia.

   Sabedor disso, o governo russo foi buscar novas alianças no Oriente Médio. A título de defender o governo sírio, ameaçado pelos exércitos mercenários patrocinados pelos Estados Unidos e comparsas, enviou as suas Forças Aeroespaciais para bombardear os inimigos e, de quebra, para mostrar a sua força, mandou 20 mísseis de cruzeiro na cabeça dos militantes do Estado Islâmico. Também ajudou a rearmar o exército sírio, que estava tecnicamente derrotado, e aceitou o apoio de milícias do Hezbollah e do Irã.

   Ao mesmo tempo, e graças à atividade incessante do chanceler Sergei Lavrov, o governo russo conversa amigavelmente com os governos da Jordânia, de Israel, da Turquia e da Arábia Saudita; deseja que aqueles governos parem de treinar e financiar os exércitos de mercenários terroristas. Em troca, quem sabe a Síria de presente, devidamente repartida entre os interessados, com todos os seus imensos recursos minerais, após um período de transição que incluiria a necessária queda do governo de Assad? Melhor ainda: após Assad, um governo amigo, muito amigo e venial, na Síria, estilo Macri na Argentina, pronto a entregar para as multinacionais o petróleo sírio.

   O incansável Lavrov reúne-se seguidamente com John Kerry, secretário de Estado dos Estados Unidos para, juntos, encontrarem a equação que possibilitará mudanças no governo sírio. Isso é essencial para que os dois países – Estados Unidos e Rússia – possam fortalecer a sua amizade, participar de exercícios militares conjuntos, festas, declarações sobre a paz mundial... Provavelmente, se tudo der certo, Putin será convidado para o Clube Bilderberg. No mínimo, para o Clube de Roma e outras maçonarias. Nas conversas com Lavrov, Kerry e Obama marcaram a data para a saída de Assad: março de 2017, no máximo maio.

   Afinal, com seus bombardeios, a Rússia está fazendo o trabalho pesado, ajudando a limpar a Síria do Estado Islâmico e da Frente al-Nusra, exércitos de mercenários que já não servem aos objetivos finais do império, tornaram-se demasiado sectários e fugiram ao controle dos seus criadores. Os outros exércitos mercenários, como o Exército Livre da Síria, poderão ser usados politicamente num futuro não muito distante.

   No entanto, na sua ânsia de se mostrar amiga, muito amiga dos demais países capitalistas, desejando somente algumas fatias do bolo mundial (em troca, a Síria?) a Rússia corre o perigo de se tornar suspeita de fazer um jogo duplo. Aliás, jogo duplo faz parte do treinamento de espiões e Vladimir Putin foi coronel da KGB soviética. 

   Logo após a instalação dos mísseis defensivos S-400, que, segundo os russos, cobrem todo o território da Síria, aviões de Israel invadiram o espaço aéreo sírio e tranquilamente bombardearam um prédio onde havia uma reunião do Hezbollah, na capital Damasco, matando o líder libanês Samir Kantar. Ficaram duas perguntas, ainda não respondidas seriamente: 1. Qual o serviço de inteligência que indicou que Samir Kantar estaria naquele prédio exatamente na hora do bombardeio - o Mossad israelense ou o FSB russo? 2. Por que os S-400 russos não protegeram o espaço aéreo sírio?

   Outras questões se colocam. Somente após a derrubada do Su-24 russo por aviões provindos da Turquia é que a Rússia “descobriu” que a Turquia não só treina mercenários como recebe o petróleo roubado da Síria pelo Estado Islâmico. Para demonstrar a sua indignação, a Rússia enviou alguns aviões Tupolev para bombardear a rota do tráfico de petróleo que leva à Turquia. Por alguns dias. Depois, os Tupolev voltaram para a Rússia. São aviões muito bonitos e caros e não devem ficar expostos em campo de batalha sem grande necessidade. O tráfico de petróleo roubado não acabou e não se sabe se a Rússia faz como a força aérea norte-americana, que lança folhetos avisando que vai bombardear determinado local dentro de 45 minutos, pedindo aos terroristas que se protejam.

   Aliado ou não, o Irã já não confia na Rússia, ou confia desconfiando. Desde 2007 que a venda de cinco divisões de antimísseis S-300 foi acordada e foi necessária uma ação do Irá contra a Rússia, na Corte Internacional de Arbitragem, para que a Rússia anunciasse, em novembro de 2014, que começaria a entregar os 40 lançadores ao Irã, sob protestos do governo de Israel, que deseja bombardear o Irã facilmente. O governo russo é muito amigo do governo de Israel. Em 2015, Vladimir Putin chegou a enviar de presente para Benjamin Netanyahu uma foto de Ben Gurion. Se e quando os S-300 começarem a chegar ao país persa, convém que o governo do Irã faça alguns testes com os lançadores para ter a certeza de que estão funcionando bem.

    A Rússia é um país capitalista, ou seja, um país sem outra ideologia que não seja o lucro. Mesmo que pareça, por vezes, que a antiga União Soviética voltou, não se deve cair nessa armadilha midiatizada. Neste momento, o governo russo está tentando achar maneiras de sair da armadilha que o coloca em xeque – apesar da indubitável habilidade de Vladimir Putin. Se houver uma guerra entre Arábia Saudita e Irã, como se comportará a Rússia?

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