Quarenta anos depois
eles estavam velhos. Velhos assustados, daqueles que se acomodam com os frutos
recebidos durante o que consideram uma vida já vivida, que rezam antes de
dormir pedindo a Deus a graça de não morrer dormindo e por mais um dia, por
favor. Velhos que diluem as suas esperanças de prazer em grupos de internautas
costurando intermináveis diálogos sobre como se comportar melhor em sociedade,
evitar a depressão, tratar doenças, cuidar de netos, amparando-se em bengalas
metafísicas ou em fingido agnosticismo; contando bravatas da juventude, época
em que enlouqueceram sadiamente, se fosse agora não teriam feito umas tantas
coisas, causas de alguns achaques crônicos, não esperariam tanto tempo para
envelhecer, seriam mais cordatos, afáveis, prestimosos, e, principalmente,
cuidadosos com a saúde, evitariam excessos, nada como a sabedoria da
maturidade, plastificada em fotografias de família, engessada na lerdice dos encontros
saudosos, nos intocáveis muros da saudade.
Estavam velhos.
Definitivamente velhos. Velhos como aqueles que assumem a induzida expressão
“terceira idade”, iludindo-se que é a melhor idade. Velhos compassivos que
aceitaram perder o dinamismo e se conformaram com os espelhos e as lembranças. Velhos
que carregam claudicantes e desconfortáveis corpos, incômodos corpos que os
fazem pensar, por vezes, que a vida não é feita somente de pão ou de momentos
de êxtase, também do marasmo sonolento nos entardeceres sempre iguais. Velhos
quase agradecendo o descanso da velhice entediada sem a esperança do futuro que
já chegou e se postou na porta de entrada a esperar o momento próprio do
convite derradeiro.
Águas paradas.
Desertos. Estavam velhos como os que acreditam na velhice. Quarenta anos
depois. O que são quarenta anos? Velhos. Infinitamente velhos. Onde estavam os
olhares fervorosos, as palavras revolucionárias, as atitudes indignadas, os
momentos de paixão? Em olhos fundos e submissos, em palavras mansas, atitudes
serenas. Remanso e desistência.
É claro que muitos
dentre eles alcançaram grandes sucessos nisso ou naquilo, aqui ou acolá, mas o
que faziam quarenta anos depois era lembrar do passado e acalentar o letargo
presente que já era um futuro adormecido em mornos sonhos sem imagens. Há
velhos com vinte anos de idade, com trinta, com quarenta. Existem velhos com
cinqüenta anos – imaginem! Com míseros cinqüenta anos, olham-se no espelho e
dizem “Pronto, estou velho!” e escolhem uma poltrona para esperar, sentados, o
que chamam de morte.
Têm as exceções.
Pessoas com mais de cem anos, como o Niemeyer, não envelhecem, entusiasmam-se
com a vida e, provavelmente, não morrem. Embora digam, afirmem, jurem que o
Niemeyer morreu em 2012, há divergências. Pessoas assim não morrem: arquitetam
novos viveres. A morte é uma ficção dos desiludidos, uma invenção das pessoas
burocratizadas e extenuadas por agendas e horários, uma lenda urbana dos aficionados
pelo Facebook e Orkut.
Como todos sabem,
morrer é coisa que acontece com os outros. Por acidente, descuido ou engano. E,
mesmo assim, há dúvidas. A morte talvez seja um golpe midiático para enriquecer
agências funerárias e religiões. No máximo, a morte faz parte dos fatos da vida.
Não pode ser considerada com um ponto final após uma crônica apressada ou um
conto que pede para ser terminado. A morte simplesmente não é. E, não sendo,
como pode existir? Desconfiemos dos velórios, dos féretros, dos túmulos. Suspeitemos
da impavidez dos mortos em seus caixões. Estarão realmente mortos ou provando a
nossa sensibilidade? Afinal, morrer ou não morrer não é a questão. Nunca foi. O Não-Ser não é.
Triste é a ausência
de vida da acomodada velhice. Foi o que percebi neles, quarenta anos depois,
quando nos reencontramos. Um convite para participar de um grupo de memórias e
elogios ao passado. Também algumas lembranças do presente e a constatação da
ausência do futuro, exceto no comemorado além-túmulo. Estavam velhos,
terrivelmente velhos, cansativamente velhos. Queixavam-se do corpo: já não
conseguiam subir montanhas, correr, fazer amor com desesperada volúpia, tomar
banho de cachoeira, viajar a pé com uma pequena mochila nas costas... Já não
conseguiam fazer.
- E daí? – perguntei.
– É o mais importante?
Quase todos disseram
que sim. Alguns estavam cansados demais para responder. O corpo, o corpo, a
matéria. Como é bela a matéria, disse um deles, e os demais concordaram
soturnamente. Estavam desesperadamente velhos, constatei. Insisti: - Há mais
que isso, pessoal, há os sonhos, a força interna que deve ser constantemente
alimentada. Lembrem-se de Dom Quixote, que tinha mais de sessenta anos quando
saiu a cavalo para defender os pobres e oprimidos. É claro que o chamaram de
louco, mas o que importa? Um deles respondeu: - É por isso que quixotesco é
sinônimo de loucura.
E deram uma cansada
risada virtual. Estavam decididamente velhos, apalermadamente velhos. Nem a
loucura cultivavam mais. Afastei-me para não pegar a febre. Desliguei o
computador e eles desapareceram. Estava cansado, triste, abatido. As costas
doíam, o corpo se queixava. No espelho, a barriga apareceu primeiro, ostentosa.
“Preciso fazer exercícios. Todos eles” - lembrei. Sorri para a barriga que me
respondeu com um piscar do seu inquieto olho umbilical. A noite avançava,
prometendo travessuras e novas e desafiantes personagens a pedir vida, muita
vida.
É verdade que o peso dos anos às vezes se faz sentir, e a tal da terceira idade nos é incutida diariamente quase como uma vida alheia do melhor que a mesma nos oferece. O corpo pode adoecer sim, mas somos "corpo e mente" e a última comanda a vida. Parabéns pela reflexão!
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