Época da máxima
hipocrisia. Finges felicidade porque é Natal e todos os males devem ser
esquecidos – vamos às compras! É necessário gastar, diz o Papai Noel criado
pela Coca-Cola no país do ateísmo oficial, e não olharás os lírios do campo que
não semeiam nem fiam, mas te preocuparás muito com o que comes e com o que
vestes, mesmo porque não há mais lírios no campo, mas bois e vacas prontos para
o abate e grãos geneticamente modificados e um grande deserto verde onde
ziguezagueiam tristes rios poluídos espelhando o teu submisso coração.
Não há salvação para
a tua alma já subornada pelas campanhas publicitárias, em protesto pela
natureza devastada não pedirás que, na curva do rio, enterrem o teu coração,
porque este – agora sabes – é somente uma válvula que te permite viver um
determinado espaço de tempo neste mundo dominado por maníacos e és mais um na
torcida, dividindo a mesma solidão e o mesmo desamparo, ansiando pelo orgasmo
do gol que te fará entusiasmado por alguns minutos e depois, quando as luzes
apagarem e o sol se esconder, na tua desvalida noite desejarás comprar o amor,
comprar a amizade, comprar o prazer, porque assim te foi ordenado pelos
robóticos deuses da matéria.
Obedecerás. Não
amarás o menino nascido em uma manjedoura, porque pensar na pobreza traz azar e
a tua mente está nas riquezas e o teu deus é o dourado ídolo Mamom ou que nome
tenha: poderá ser Demiurgo ou Manu ou Javé ou qualquer outro que te prometa a
vida eterna nas riquezas do mundo, a sorte na loteria, a perfeita corrupção,
pois não acreditas no reino do Pai ou na sua justiça, e sim no prazer que os
sentidos te podem ofertar e por isso te absorves a visitar lojas e a olhar
vitrines e a buscar festas e embriaguez, e o teu coração que ainda não foi
enterrado ou transplantado ou jogado no lixo e aprendeu que deve ser o relógio
mecânico da tua automática vida te avisa que este é o tempo de comprar e
receber presentes, porque entendes que o amor é uma útil troca física e virtude
é sinônimo de benefícios e proveitos.
Momento de absoluta
divisão de classes. Os pobres, os infelizes, os desassistidos, os que têm um
mau carma, ou: os que são roubados, ultrajados, usados e jogados fora,
considerados objetos de uso, massa moldável, recebem esmolas e ficam felizes,
porque é o grande dia dos mendigos e de catar lixo comestível.
Participaste da
caixinha para os aflitos e falaste muito bem dos indigentes, separaste roupas e
brinquedos para as associações de caridade e rezaste para não ser assaltado
pelos miseráveis. Suspiras aliviado entre as grades da tua casa, Deus é bom e
protege os homens de bens – acreditas – que irão para o céu da prosperidade se
forem altruístas e condescendentes para os infelizes que terão um céu bem mais improdutivo
– coitados! –, caso não se revoltem com a sua situação vexatória, perseverando
na obediência dos despojados, na subserviência dos extorquidos, na inação dos
acomodados, na crônica insensibilidade dos mortos em vida.
E te regozijarás
intimamente quando vires a imensa fila dos esbulhados a esperar o consolo da
tua gorda mão filantrópica e dirás a eles que são os escolhidos para o reino
das beatitudes e tu – pobre de ti que tens o coração guardado num cofre -, assoberbado pelo peso das
responsabilidades sociais ainda sofrerás muito para aliviar tu grosseira condição
mundana, mas o teu deus é o amparo e fortaleza das tentações e apetites e
saberá alimentar tua cobiça e volúpia, e o que mais resta é desejar intimamente
um feliz Natal e muito próspero e particular ano novo.
Muito boa matéria sobre o Natal. Realista como a sociedade mundial (com raras exceções) bem sabe ser.
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