sexta-feira, 16 de maio de 2014

A OUTRA RÚSSIA




Tem havido uma grande confusão sobre a Rússia, não só no Brasil e demais países, como também... na Rússia. Veículos de informação não muito credíveis devido às suas alianças ideológicas com Washington procuram passar a falsa idéia de que a Rússia atual é a mesma União Soviética rediviva 25 anos após a sua (auto?) dissolução e que Vladimir Putin, o presidente russo, é uma espécie de Stálin que a todos domina e impõe a sua vontade. E, sendo assim, a anexação da Criméia à Rússia, seguida da vitória nos novos referendos por independência em Lugansk e Donetsk faria parte de um maquiavélico plano do governo russo que visa reintegrar os antigos territórios da União Soviética. 

    Na Rússia, os canais oficiais de informação, como “Voz da Rússia” e “Diário da Rússia”, em conformidade com o seu governo, aproveitam para passar à população por tantos anos desacreditada e desiludida depois da desintegração da União Soviética, que, realmente, o antigo poderio soviético voltou, ou está voltando principalmente através das Forças Armadas que possuem aviões, navios e mísseis de última geração, além de um poderoso exército muito bem treinado e preparado para todas as situações. Afirmam esses meios de comunicação que a economia está sólida, apesar da inflação (controlada, visto o consumo não ter diminuído), que o nível de patriotismo do povo russo está cada vez maior e que a ciência e a educação da Rússia se desenvolvem com grande rapidez. 

    Sem dúvida, a Rússia é um país em crescimento acelerado em todos os setores. Domina a tecnologia espacial a ponto de tornar os Estados Unidos dependentes dos motores e foguetes lançadores russos e até 2020 quase dois trilhões de rublos já estão destinados para as atividades espaciais, com o objetivo de colocar 100 novos satélites em órbita, além da ambição de colonizar a Lua a partir daquele ano. Inclusive, na terça-feira, 13, a Rússia anunciou que, a partir de 2020, não permitirá mais a presença de astronautas dos Estados Unidos na Estação Espacial Internacional.  

    A respeito desse assunto, o vice-primeiro ministro russo, Dmitri Ragozin, afirmou que “o segmento russo pode existir independentemente do americano. Já o americano depende de nós”. E ainda: “É preocupante continuar desenvolvendo grandes projetos de alta tecnologia com um sócio tão pouco confiável como os Estados Unidos, que politizou tudo e todos”. Além disso, a partir de 1º de junho, as 11 estações GPS instaladas no território russo serão suspensas e substituídas pelo sistema Glonass, de fabricação russa – caso os Estados Unidos não aceitem a instalação de estações russas do sistema Glonass em seu território.   

    Muitas empresas estatais estão recebendo grandes aportes financeiros e a mão-de-obra especializada tem emprego garantido na Rússia, que pretende estar desenvolvendo uma vacina para a cura da AIDS, tem uma população satisfeita com o seu nível de vida - segundo as últimas pesquisas -, um dos melhores sistemas de ensino do mundo, baixo nível de criminalidade e o controle da economia. É um país que busca a independência econômica e financeira, e está tomando medidas reais para que isso se concretize. 

    A Rússia está reabilitando o que houve de melhor durante a União Soviética. Recentemente, a 9 de maio, festejou-se em 24 capitais, a vitória na II Guerra Mundial, dando-se especial ênfase à luta contra o fascismo, principalmente neste momento em que a Ucrânia – dominada por fascistas e neonazistas – está sendo usada por Estados Unidos e União Européia para provocar uma guerra que desestabilize o leste europeu e interrompa os planos de crescimento da Rússia.  

    Aproxima-se o governo russo da China e de alguns outros países que se pretendem socialistas, como Cuba, Nicarágua e Vietnã; reforça o apoio à CEI (Comunidade dos Estados Independentes), que já contou com onze países e agora tem a defecção da Geórgia e da Ucrânia e, tendo em vista a crescente influência do Ocidente na CEI, fundou a União Euroasiática, que inclui os países mais fiéis, como Bielorússia, Tajiquistão, Quirguistão e Cazaquistão.  

    Através do grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) salienta-se a liderança russa, que incentiva o intercâmbio científico e cultural entre os países membros, propõe a criação de um banco de reservas monetárias, para o qual estão sendo canalizados $100 milhões, e o desenvolvimento de uma grande base de dados para a troca de informações econômicas, visando a criação do seu próprio Banco de Desenvolvimento. O objetivo é descentralizar o sistema econômico mundial, que está concentrado nos Estados Unidos e na União Européia.   

    A Rússia atual está longe de ser a União Soviética, que se suicidou devido à estagnação política iniciada com Nikita Kruschev e à traição de dirigentes na era pós Brejnev, culminando com o entreguismo de Mikhail Gorbachev. É outra Rússia. É uma Rússia capitalista, que procura esconder a luta de classes e busca o caminho do reformismo e não da revolução. Em muitos lugares Lênin ainda é reverenciado como herói nacional, mas antigo herói de uma época que passou. A Rússia reformista adotou o capitalismo consumista, mesmo que não aceite os padrões estipulados pelos Estados Unidos e procure uma via própria de desenvolvimento. 

     É claro que ainda existe um partido comunista na Rússia, provavelmente muito parecido com o PCdoB brasileiro ou, mesmo, com o burocrático PCB. Um partido estagnado em memórias das glórias passadas, que abdicou da revolução e conserva muito pouco de marxismo. Assim como a China recuou, passando do socialismo ao capitalismo de Estado, a Rússia tenta avançar, desejando ultrapassar o capitalismo monopolista das grandes empresas - onde o Estado é apenas um gerente, como nos Estados Unidos – para chegar ao capitalismo de Estado. 

   Isso assusta muito o Ocidente, liderado por Estados Unidos e Inglaterra, que ainda defende – e pratica – o capitalismo selvagem multimídia, formador de grandes massas populacionais absolutamente passivas, onde dominam os bancos e grandes corporações multinacionais e o lucro torna-se a única ideologia. Esse medo ocidental traduz-se na suscitação de guerras e golpes de Estado, principalmente em países muito próximos à Rússia, visando um cerco militar, visto que sanções econômicas costumam não surtir qualquer efeito decisivo. 

    Em 2008, a Rússia viu-se obrigada a defender a Ossétia do Sul, invadida pela Geórgia, com o apoio dos Estados Unidos e armas e munições compradas da Hungria, Sérvia, Grécia, Letônia, Lituânia, Turquia, França, República Tcheca, Estônia, Israel, Bósnia-Herzegovina, Estados Unidos e Ucrânia. Os países da OTAN puseram à disposição da Geórgia cerca de 300 tanques e carros de combate. A Geórgia recebeu 67 peças de artilharia e morteiros, 150 equipes de mísseis anti-tanques e 200 sistemas de defesa antiaérea, além de navios, helicópteros, aviões de guerra e seis lanchas torpedeiras. Somente a Ucrânia entregou à Geórgia 90 tanques e carros de combate, 10 aviões EL-29, 4 helicópteros e 10 sistemas de mísseis antiaéreos Aktsiya. Mercenários foram contratados para auxiliar o exército da Geórgia. 

  Preparava-se a operação “Campo Limpo”, antecedida por manobras conjuntas com os Estados Unidos, intituladas “Resposta Imediata”. Objetivo: invadir a Ossétia do Sul e colocar tropas da OTAN na fronteira com a Rússia. Para isso – acreditavam os georgianos e seus assessores dos Estados Unidos – seria necessário “limpar o campo”. Na madrugada de 8 de agosto de 2008 começou o massacre. Cidades e aldeias foram destruídas na Ossétia do Sul, centenas de civis assassinados, entre os quais muitos cidadãos russos. A Rússia reagiu e em cinco dias derrotou a Geórgia e os Estados Unidos. No mesmo dia 08 de agosto de 2008 iniciavam-se as olimpíadas de Pequim e, no Ocidente, ficou-se sabendo vagamente que havia uma guerra na distante Geórgia, por culpa da invasão da Rússia. 

   A verdade histórica costuma ser adulterada com muita facilidade, mas é curiosa a semelhança entre a guerra da Geórgia e a atual crise na Ucrânia, onde Estados Unidos e aliados tentaram novamente criar um país obediente que faz fronteira com a Rússia. Perderam a Criméia, o acesso à fronteira russa e estão lutando contra uma rebelião no leste da Ucrânia. À semelhança da Geórgia, enviaram armas, assistentes militares e mercenários da famosa organização militar privada Greystone Academi. Assim como na Geórgia, quando iniciaram o ataque contra a Ossétia do Sul, apelidaram a repressão ao leste da Ucrânia de “operação antiterrorista”. E, igualzinho ao que se passou na Geórgia, já começaram os assassinatos de civis. 

  No entanto, desta vez, a Rússia não reagiu imediatamente. Limitou-se a colocar o seu exército de prontidão, mas nada fez. Inclusive, os militantes de Odessa (onde houve aquele terrível massacre patrocinado por fascistas), da região de Lugansk, da região de Donetsk e de outros lugares que se revoltaram contra o governo fantoche da Ucrânia estão estranhando muito a inércia do governo russo em relação ao que se passa na Ucrânia. Talvez confundam a Rússia de hoje com a União Soviética, que se fazia respeitar sempre que necessário. 

    Hoje há outra Rússia, uma Rússia que só ataca quando é atacada, como aconteceu na Ossétia do Sul e na Criméia, uma Rússia que não tem como objetivo destruir o capitalismo, sistema do qual ela faz parte, por opção ou por estratégia, mas do qual depende economicamente para o seu desenvolvimento. A Rússia de hoje é conservadora, mesmo buscando novos caminhos, o que pode parecer contraditório, mas são caminhos estritamente dentro do capitalismo; caminhos que poderão ser chamados de progressistas, na melhor das hipóteses, e que não descuidam daquilo que já foi conquistado a duras penas nesses últimos vinte e cinco anos. Por isso não se expõe, e mesmo recua quando entende necessário. 

    E por isso faz acordos com os países que a agridem – como o reconhecimento das eleições na Ucrânia em 25 de maio e o não reconhecimento das recém proclamadas repúblicas de Lugansk e Donetsk. Se fosse a União Soviética a agir assim, seria chamada de traidora. Mas não se deve confundir: esta é outra Rússia.

Um comentário:

  1. Uma Rússia que eu desconhecia. Obrigada pelas informações e análises. Parabéns!.

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