domingo, 12 de janeiro de 2014

SEU CHICO E O BAGUAL ALIENADO




- O senhor se considera um bagual, seu Chico? 

- Pois esta é uma palavra que andei pesquisando a origem, visto a sua grande difusão pela mídia globalizante, que adora quando um... digamos assim... cantor ou compositor aqui dos pagos solta a sua bagualice - ou o seu bagualismo, como preferir – e escreve letras ao mais das vezes tornando o gaúcho ridículo, grosseiro, estúpido. E o senhor sabe que há uma grande oposição lá no Brasil pelo que andam chamando de “gauchismo” – e até existe um Manifesto Contra o Tradicionalismo, apoiado por muitos porto-alegrenses muito alegres e que, de início, afirma que o Rio Grande é um estado da federação brasileira, o que já dá um indício do tipo de manifesto e do tipo de gaúcho que o assina... 

- Não é só em Porto Alegre. Tem gente de Santa Maria, Pelotas... 

- Não devemos confundir as coisas: gente de Santa Maria, Pelotas e outras cidades, mas que não refletem o pensamento da maioria. Apesar disso, muitos deles exercem profissões ligadas ao governo, que é potencialmente desestruturador em relação às nossas tradições. Intelectuais fisiológicos. Mas eu me referi a Porto Alegre devido à sua história extremamente reacionária. Veja que o poder está concentrado lá e os governadores são prepostos do governo brasileiro. Desde a época da revolução farroupilha, em 1835, a coisa não mudou. E foi por isto que os nossos bisavôs fizeram a revolução, que depois foi traída, como o senhor sabe. 

- Se bem que o Canabarro não era de Porto Alegre, seu Chico. Nasceu em Santana do Livramento. 

- A cidade não tem culpa disso. Ele era muito ligado ao poder. O único a assinar o armistício. Tecnicamente ainda estamos em guerra com o Brasil. Ou o Brasil está em guerra conosco, desde aquele tempo. Agora a guerra é mais cultural, e não faltam os "canabarros"... 

- Não foi só na revolução farroupilha, seu Chico. Também na revolução de 1893, contra Júlio de Castilhos. 

- Outra que foi traída! E não quero aqui acusar o Joca Tavares, que lutou o tempo todo e foi obrigado a assinar aquela paz ingrata, mas desconfio muito daqueles que depois viraram estátua e que tramavam nos bastidores para deixar tudo como dantes no quartel de Abrantes em troca de um cargo político. Não por acaso, a maioria das tropas de Aparício Saraiva se internaram, junto com o seu chefe, no Uruguai, não aceitando aquele tipo de paz submissa. E hoje Aparício Saraiva é um dos grandes nomes revolucionários dos castelhanos. 

- Em 1923 se conseguiu alguma coisa... 

- Veja o senhor que foi necessária uma segunda revolução federalista para se conseguir alguma coisa e não mais que alguma coisa. Mas nada para o povo que continuou sendo sangrado pelos chimangos. O senhor sabe a origem da palavra chimango? 

- Em 1923, os chimangos eram governistas e usavam lenços brancos no pescoço, enquanto os maragatos revolucionários usavam lenços vermelhos. 

- Se o senhor me permite, essa é a versão para vestibular. Não é tão simples assim. A origem da palavra vem de uma ave de rapina – o Chimango –, ave oportunista que se alimenta de carniça, assim como os governistas costumam fazer com o povo: usam até deixar sem sangue e depois ainda comem o cadáver. E o que restou de bom daquela revolução foi o livro “Antônio Chimango”, assinado por Amaro Juvenal e que teria sido escrito por Ramiro Barcellos um correligionário do chimango-chefe Borges de Medeiros, sucessor de Júlio de Castilhos na ditadura sul-riograndense. 

- E depois veio o Getúlio, que era de uma família chimango, mas arrumou o Rio Grande a criou a maioria das leis trabalhistas do Brasil. 

- E casou com dona Darcy Sarmanho, de família maragata, ocasionando a conciliação política em São Borja, que deveria ser a verdadeira capital gaúcha. Lá nasceram dois grandes presidentes: Getúlio Vargas e João Goulart. 

- Concordo com o senhor, seu Chico. Quando estive em São Borja, em 2009, para jogar um torneio de xadrez no Clube Comercial, fui recebido com muito cavalheirismo. É uma cidade ímpar. Inclusive, visitei o túmulo do Getúlio, sempre com muitas flores. 

- O senhor sabia que São Borja foi a primeira cidade dos Sete Povos das Missões? Não é pouca coisa, eu lhe garanto... Mas agora eu estava lembrando... O senhor me perguntou se eu me considero um bagual... 

- Foi uma pergunta provocativa, seu Chico. É que eu vi o senhor baixar o volume do rádio quando aquela música começou a tocar. 

- O senhor sabe que eu gosto muito da música gaúcha, da boa música gaúcha: uma milonga bem tocada, uma vaneira, um chamamé... No entanto, me dou ao direito de não gostar de certos ritmos, como o bugio e suas variações, como aquele terrível nhéc-nhéc ou aquele outro ritmo choroso de espantar visitas. Por isto baixei o volume do rádio. 

- Porém, não era um bugio, seu Chico. 

- Não era, e assim fosse!, que eu até ouvia com todo o respeito. O senhor percebeu que aquilo parece uma lambada? Agora deram para importar ritmos grosseiros do Brasil para misturar com a nossa música, e tudo devido a essa onda da Tchê Música – uma tristeza! Até nos CTGs esses grupos estão tocando e, a continuar assim, não será preciso mais nenhum manifesto para acabar com a tradição gaúcha. 

- Então, o senhor não se considera um bagual? 

- Como lhe disse antes, andei pesquisando a origem da palavra e descobri que é tupi-guarani e significa “de o que é mortal”. Havia um cacique lá na Argentina com o nome de Bagual, que sempre conseguiu fugir da escravidão e acabou assassinado. Isso foi em 1582, quando a Argentina fazia parte do império espanhol. Era um homem indômito e não demorou muito para que os cavalos não domados, ariscos, fossem chamados de baguais, ou “baguales”. Por extensão, o gaúcho, que se destaca pela liberdade e autoconfiança passou a usar a expressão para dizer que é independente e bravo. Depois é que o sentido da palavra foi adulterado. 

- Já sei. Mistificaram a palavra, que passou a ter o falso significado de “homem macho”. Não é assim? 

- Mistificaram e mudaram o sentido. Um homem certamente é macho, com as exceções que comprovam a regra. Foi pior que isso. “Bagual” passou a ser entendido como pessoa ríspida, sem educação, bruto, estúpido, grosso e por aí vai... E passaram para o homem rude do campo, principalmente para o peão de estância sem qualquer educação, que ser grosso e mal-educado é bonito e sinônimo de macheza. E veja o senhor que essa inversão de valores através da mudança do significado das palavras é parte da manipulação cultural própria das elites e das oligarquias, que desejam o povo submisso, quieto e de cabeça baixa. Um povo manietado até no pensamento. E para isso usam de todos os truques, como fazer o povo acreditar que ser grosso e estúpido é bonito e até, como nos últimos tempos, e em grande parte devido à indústria musical que vem incentivando esse tipo de coisa, querem dar a entender que a grossura e a ignorância são “virtudes” do gaúcho. 

- Assim como criaram a figura do “malandro” em outros estados, que faz samba em caixinha de fósforos e se acha muito esperto, sempre desejando passar a perna nos outros, e depois os corruptos se queixam dos juízes quando vão presos, como a dizer: “foi só uma malandragem a mais”. 

- E outras figuras, como o bom negro, a quem fizeram acreditar que a escravidão foi necessária para ajudar no progresso do país, ou a mulata que é “exportada” como objeto de consumo. Agora o senhor está pegando a coisa! E aqui no sul inventaram o “índio grosso barbaridade”, o que é tido como um elogio pelos néscios. E tudo isso para quê? Me diga o senhor. 

- Para tentar perpetuar a ignorância, a desinformação e promover a alienação e a massificação cultural, seu Chico. Um povo alienado é um povo domado. 

- E porque “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”, como diz a letra do nosso hino. E a pior escravidão é a escravidão mental, o senhor há de convir. Estão promovendo o termo “bagual” em sua versão deturpada como, em anos atrás, tentaram promover a expressão “morocha”, aviltando a mulher. E olhe que aquela foi uma música que ganhou prêmio em festival... Como eu disse antes: temos muitos “canabarros” infiltrados na cultura gaúcha, manchando e infamando a reputação do gaúcho, para felicidade daqueles que abominam os gaúchos. 

- Mas seu Chico, na música “Veterano”, interpretada pelo Leopoldo Rassier, tem um verso que diz assim: “Sou bagual que não se entrega assim no mais”. 

- Com a diferença que aquela música, composta por Antonio Augusto Ferreira e Ewerton Ferreira, se não estou enganado, é muito linda e mereceu vencer a 10ª Califórnia da Canção Nativa. Além disso, o termo “bagual” é empregado no seu verdadeiro sentido - independência e força - e não pejorativamente, como está se usando agora, com a música como veículo de desinformação que diminui a nação rio-grandense, amesquinha o nosso povo e influencia os mais humildes a acreditar na falsa interpretação de “bagual”: grosseiro, deseducado. Implicitamente, dá a entender que estupidez e burrice têm a ver com valentia e hombridade. 

- E a todas essas, seu Chico, o povo passa a acreditar que ser guapo é o mesmo que ser bagual e que bagual é até uma distinção. 

- É claro que as lides do campo tornam os homens rudes e ásperos – isso não se pode negar -, mas daí a aliar a natural rudeza com a necessidade de falta de educação vai uma diferença muito grande. 

- Talvez seja necessária uma nova revolução, seu Chico. 

- Tenho pensado nisso...

Um comentário:

  1. Muito boa e esclarecedora matéria. Estão deturpando cada vez mais a cultura gaúcha. Valeu!

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