- O senhor se
considera um bagual, seu Chico?
- Pois esta é uma
palavra que andei pesquisando a origem, visto a sua grande difusão pela mídia
globalizante, que adora quando um... digamos assim... cantor ou compositor aqui
dos pagos solta a sua bagualice - ou o seu bagualismo, como preferir – e
escreve letras ao mais das vezes tornando o gaúcho ridículo, grosseiro,
estúpido. E o senhor sabe que há uma grande oposição lá no Brasil pelo que andam
chamando de “gauchismo” – e até existe um Manifesto Contra o Tradicionalismo,
apoiado por muitos porto-alegrenses muito alegres e que, de início, afirma que
o Rio Grande é um estado da federação brasileira, o que já dá um indício do
tipo de manifesto e do tipo de gaúcho que o assina...
- Não é só em Porto
Alegre. Tem gente de Santa Maria, Pelotas...
- Não devemos
confundir as coisas: gente de Santa Maria, Pelotas e outras cidades, mas que
não refletem o pensamento da maioria. Apesar disso, muitos deles exercem
profissões ligadas ao governo, que é potencialmente desestruturador em relação
às nossas tradições. Intelectuais fisiológicos. Mas eu me referi a Porto Alegre
devido à sua história extremamente reacionária. Veja que o poder está
concentrado lá e os governadores são prepostos do governo brasileiro. Desde a
época da revolução farroupilha, em 1835, a coisa não mudou. E foi por isto que
os nossos bisavôs fizeram a revolução, que depois foi traída, como o senhor
sabe.
- Se bem que o
Canabarro não era de Porto Alegre, seu Chico. Nasceu em Santana do Livramento.
- A cidade não tem
culpa disso. Ele era muito ligado ao poder. O único a assinar o armistício.
Tecnicamente ainda estamos em guerra com o Brasil. Ou o Brasil está em guerra
conosco, desde aquele tempo. Agora a guerra é mais cultural, e não faltam os
"canabarros"...
- Não foi só na
revolução farroupilha, seu Chico. Também na revolução de 1893, contra Júlio de
Castilhos.
- Outra que foi
traída! E não quero aqui acusar o Joca Tavares, que lutou o tempo todo e foi
obrigado a assinar aquela paz ingrata, mas desconfio muito daqueles que depois
viraram estátua e que tramavam nos bastidores para deixar tudo como dantes no
quartel de Abrantes em troca de um cargo político. Não por acaso, a maioria das
tropas de Aparício Saraiva se internaram, junto com o seu chefe, no Uruguai,
não aceitando aquele tipo de paz submissa. E hoje Aparício Saraiva é um dos
grandes nomes revolucionários dos castelhanos.
- Em 1923 se
conseguiu alguma coisa...
- Veja o senhor que
foi necessária uma segunda revolução federalista para se conseguir alguma coisa
e não mais que alguma coisa. Mas nada para o povo que continuou sendo sangrado
pelos chimangos. O senhor sabe a origem da palavra chimango?
- Em 1923, os
chimangos eram governistas e usavam lenços brancos no pescoço, enquanto os maragatos
revolucionários usavam lenços vermelhos.
- Se o senhor me
permite, essa é a versão para vestibular. Não é tão simples assim. A origem da
palavra vem de uma ave de rapina – o Chimango –, ave oportunista que se
alimenta de carniça, assim como os governistas costumam fazer com o povo: usam
até deixar sem sangue e depois ainda comem o cadáver. E o que restou de bom
daquela revolução foi o livro “Antônio Chimango”, assinado por Amaro Juvenal e
que teria sido escrito por Ramiro Barcellos um correligionário do
chimango-chefe Borges de Medeiros, sucessor de Júlio de Castilhos na ditadura
sul-riograndense.
- E depois veio o
Getúlio, que era de uma família chimango, mas arrumou o Rio Grande a criou a maioria das leis trabalhistas do Brasil.
- E casou com dona
Darcy Sarmanho, de família maragata, ocasionando a conciliação política em São
Borja, que deveria ser a verdadeira capital gaúcha. Lá nasceram dois grandes
presidentes: Getúlio Vargas e João Goulart.
- Concordo com o
senhor, seu Chico. Quando estive em São Borja, em 2009, para jogar um torneio
de xadrez no Clube Comercial, fui recebido com muito cavalheirismo. É uma
cidade ímpar. Inclusive, visitei o túmulo do Getúlio, sempre com muitas flores.
- O senhor sabia que
São Borja foi a primeira cidade dos Sete Povos das Missões? Não é pouca coisa,
eu lhe garanto... Mas agora eu estava lembrando... O senhor me perguntou se eu
me considero um bagual...
- Foi uma pergunta
provocativa, seu Chico. É que eu vi o senhor baixar o volume do rádio quando
aquela música começou a tocar.
- O senhor sabe que
eu gosto muito da música gaúcha, da boa música gaúcha: uma milonga bem tocada,
uma vaneira, um chamamé... No entanto, me dou ao direito de não gostar de
certos ritmos, como o bugio e suas variações, como aquele terrível nhéc-nhéc ou
aquele outro ritmo choroso de espantar visitas. Por isto baixei o volume do
rádio.
- Porém, não era um
bugio, seu Chico.
- Não era, e assim
fosse!, que eu até ouvia com todo o respeito. O senhor percebeu que aquilo
parece uma lambada? Agora deram para importar ritmos grosseiros do Brasil para
misturar com a nossa música, e tudo devido a essa onda da Tchê Música – uma
tristeza! Até nos CTGs esses grupos estão tocando e, a continuar assim, não
será preciso mais nenhum manifesto para acabar com a tradição gaúcha.
- Então, o senhor não
se considera um bagual?
- Como lhe disse antes, andei pesquisando a origem da
palavra e descobri que é tupi-guarani e significa “de o que é mortal”. Havia um
cacique lá na Argentina com o nome de Bagual, que sempre conseguiu fugir da
escravidão e acabou assassinado. Isso foi em 1582, quando a Argentina fazia
parte do império espanhol. Era um homem indômito e não demorou muito para que
os cavalos não domados, ariscos, fossem chamados de baguais, ou “baguales”. Por
extensão, o gaúcho, que se destaca pela liberdade e autoconfiança passou a usar
a expressão para dizer que é independente e bravo. Depois é que o sentido da
palavra foi adulterado.
- Já sei. Mistificaram
a palavra, que passou a ter o falso significado de “homem macho”. Não é assim?
- Mistificaram e
mudaram o sentido. Um homem certamente é macho, com as exceções que comprovam a
regra. Foi pior que isso. “Bagual” passou a ser entendido como pessoa ríspida,
sem educação, bruto, estúpido, grosso e por aí vai... E passaram para o homem
rude do campo, principalmente para o peão de estância sem qualquer educação, que
ser grosso e mal-educado é bonito e sinônimo de macheza. E veja o senhor que
essa inversão de valores através da mudança do significado das palavras é parte
da manipulação cultural própria das elites e das oligarquias, que desejam o
povo submisso, quieto e de cabeça baixa. Um povo manietado até no pensamento. E
para isso usam de todos os truques, como fazer o povo acreditar que ser grosso
e estúpido é bonito e até, como nos últimos tempos, e em grande parte devido à
indústria musical que vem incentivando esse tipo de coisa, querem dar a entender
que a grossura e a ignorância são “virtudes” do gaúcho.
- Assim como criaram
a figura do “malandro” em outros estados, que faz samba em caixinha de fósforos
e se acha muito esperto, sempre desejando passar a perna nos outros, e depois
os corruptos se queixam dos juízes quando vão presos, como a dizer: “foi só uma
malandragem a mais”.
- E outras figuras,
como o bom negro, a quem fizeram acreditar que a escravidão foi necessária para
ajudar no progresso do país, ou a mulata que é “exportada” como objeto de
consumo. Agora o senhor está pegando a coisa! E aqui no sul inventaram o “índio
grosso barbaridade”, o que é tido como um elogio pelos néscios. E tudo isso
para quê? Me diga o senhor.
- Para tentar
perpetuar a ignorância, a desinformação e promover a alienação e a massificação
cultural, seu Chico. Um povo alienado é um povo domado.
- E porque “povo que
não tem virtude acaba por ser escravo”, como diz a letra do nosso hino. E a
pior escravidão é a escravidão mental, o senhor há de convir. Estão promovendo
o termo “bagual” em sua versão deturpada como, em anos atrás, tentaram promover
a expressão “morocha”, aviltando a mulher. E olhe que aquela foi uma música que
ganhou prêmio em festival... Como eu disse antes: temos muitos “canabarros”
infiltrados na cultura gaúcha, manchando e infamando a reputação do gaúcho,
para felicidade daqueles que abominam os gaúchos.
- Mas seu Chico, na
música “Veterano”, interpretada pelo Leopoldo Rassier, tem um verso que diz
assim: “Sou bagual que não se entrega assim no mais”.
- Com a diferença que
aquela música, composta por Antonio Augusto Ferreira e Ewerton Ferreira, se não
estou enganado, é muito linda e mereceu vencer a 10ª Califórnia da Canção
Nativa. Além disso, o termo “bagual” é empregado no seu verdadeiro sentido - independência
e força - e não pejorativamente, como está se usando agora, com a música como
veículo de desinformação que diminui a nação rio-grandense, amesquinha o nosso
povo e influencia os mais humildes a acreditar na falsa interpretação de “bagual”:
grosseiro, deseducado. Implicitamente, dá a entender que estupidez e burrice têm
a ver com valentia e hombridade.
- E a todas essas,
seu Chico, o povo passa a acreditar que ser guapo é o mesmo que ser bagual e
que bagual é até uma distinção.
- É claro que as
lides do campo tornam os homens rudes e ásperos – isso não se pode negar -, mas
daí a aliar a natural rudeza com a necessidade de falta de educação vai uma
diferença muito grande.
- Talvez seja
necessária uma nova revolução, seu Chico.
- Tenho pensado
nisso...
Muito boa e esclarecedora matéria. Estão deturpando cada vez mais a cultura gaúcha. Valeu!
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