Em “Redoble Por Rancas” (transliterado para “Bom
Dia Para Os Defuntos”, no Brasil), o escritor peruano Manuel Scorza narra o
massacre de uma população andina que ousou se rebelar contra a “Cerro de Pasco
Corporation” – empresa norte-americana de extração de cobre e interesses
fundiários. No romance, o primeiro de uma saga composta por cinco livros que o
autor intitulou de Cantares e retrata
a luta do povo peruano contra o poder corrupto, uma das principais personagens
é o juiz Montenegro, retrato da vileza, defensor dos fortes e opressores.
Das seis às
sete horas da noite o juiz Montenegro dava exatamente vinte voltas em torno à
praça de Yanahuanca. Naquele horário, a praça se esvaziava. Um dia, deixou cair
uma moeda, um sol. Escreve Manuel Scorza:
“(...) Os
arruaceiros, os namorados e os bêbados se desgrudaram das primeiras escuridões
para admirá-la. – É o sol do doutor! – sussurravam exaltados. No dia seguinte,
cedo, os comerciantes da praça desgastaram-na com olhares temerosos – É o sol do
doutor – diziam emocionados. Gravemente instruídos pelo Diretor da Escola – ‘Espero
que nenhuma imprudência leve os seus pais à cadeia!’ – os escolares
admiraram-na ao meio-dia: a moeda tomava sol sobre as mesmas descoloridas
folhas de eucalipto. Por volta das quatro, um garotinho de oito anos se atreveu
a cutucá-la com uma varinha: nessa fronteira estacou a coragem da província (...)”
“(...)
A moeda passou a ser uma atração. O povo acostumou-se a sair de casa para
admirá-la. Os namorados marcavam encontro em torno das suas fulgurações (...)”
“(...)
Às quatro, a praça fervilhava, às cinco ainda é um logradouro público, mas às
seis é um deserto. Nenhuma lei proíbe passear nela a essa hora, mas seja porque
o cansaço se apodera dos passeantes, seja porque os estômagos reclamam o
jantar, às seis a praça fica despovoada. A metade de um corpo de um homem
atarracado, pançudo, de pequenos olhos deslocados num rosto citrino, emerge às
cinco na sacada de um sobradão de três andares com as janelas sempre embaçadas
por espesso nevoeiro de cortinas. Durate sessenta minutos, esse cavalheiro
quase desprovido de lábios contempla, absolutamente imóvel, o cair do sol. Que
comarcas percorre a sua imaginação? Enumera as suas propriedades? Reconta os seus
rebanhos? Prepara severas condenações? Visita os seus inimigos? Quem sabe!
Cinqüenta e nove minutos depois de iniciada a sua entrevista solar, o
Magistrado autoria o seu olho direito a consultar o Longines, desce a escada,
atravessa o portão azul e gravemente se dirige para a praça. Já está
despovoada. Até os cachorros sabem que das seis às sete ali não se late (...)”
“(...)
Na véspera do Dia de Santa Rosa, padroeira da Polícia, descobridora de
mistérios, quase na mesma hora em que, um ano antes, a perdera, os olhos de
camundongo do Dr. Montenegro deram com uma moeda. O terno preto parou diante do
celebérrimo degrau. Um murmúrio arrepiou a praça. O terno preto recolheu a
moeda e afastou-se. Nessa noite, contente com a sua boa sorte, anunciou no
clube: ‘Senhores, achei um sol na praça!’. A província suspirou (...)”
Manuel
Scorza faleceu aos 55 anos, devido a um acidente de avião, e por muitos é
considerado o verdadeiro pai do que foi apelidado de “realismo fantástico” pela
crítica especializada, embora Gabriel García Márquez atribua ao escritor
mexicano Juan Rulfo, autor de Pedro
Páramo, a verdadeira paternidade do realismo fantástico, ou mágico.
Época
das obscenas ditaduras explícitas na América Latina, os anos ‘60 e ’70 foram
prolíficos em excelentes autores e ótima literatura que, acredito, não deveria
ser rotulada. Em Scorza, ao contrário dos outros dois autores citados, o
realismo ultrapassa a magia, ou o fantástico, fixando-se em pessoas, lugares e acontecimentos
- como o massacre das populações andinas do Peru –, aos poucos, apagados da
memória contemporânea pelos maquiladores da História, que a fazem parecer
bonita, justa e necessária, mesmo quando encobrem os maiores crimes.
Naqueles
anos, escritores contavam fantásticas estórias para desvelar verdades
escondidas confiando na inteligência do grande e exigente público leitor que
então existia. O grande risco dessa literatura encabeçada por Juan Rulfo e
continuada por Jorge Luiz Borges, Vargas Llosa e outros menos realistas e mais
fantásticos é o hermetismo literário, motivador de castas, grupos seletos de
admiradores que realimentam a ficção pela ficção, a arte pela arte, perdendo o
sentido da realidade.
Autores
como Manuel Scorza - cada vez mais raros neste momento da indústria do entretenimento
pelo entretenimento, do deboche pelo deboche, do esvaziamento da cultura,
substituída por fetiches e máscaras de todos os tipos de carnavais –, conseguem
resgatar de sua prisão a verdade histórica, mesmo que sob o apelido de ficção.
Em um
pequeno trecho, como o transcrito acima, o leitor é sacudido de sua calma e
romântica monotonia para uma realidade que talvez não ousasse pensar. A
embaraçosa moeda do juiz Montenegro traz consigo a truculência, a tirania, a
opressão e impõe a sujeição, o constrangimento, a angústia dos oprimidos e os
desafia a – quem sabe um dia – transformar a vergonha em coragem e a coragem em
ação.
Muito boa postagem com análises sobres escritores como Manuel Scorza e Juan Rulfo, entre outros, que vou procurar ler.
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