segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A CONSOANTE MUDA E A PREGUIÇA





Observando as discussões sobre o Acordo Ortográfico, principalmente entre os portugueses, porque no Brasil nada se discute, tudo se aceita, surpreendo-me com o seguinte texto, de Pedro da Silva Coelho, no sítio www.pracadobocage.wordpress.com: “(...) Tal processo verifica-se também no Brasil, mas limitado praticamente a vogais átonas em última sílaba. Por esta razão, nunca passará pela cabeça dos brasileiros suprimir. e.g., os érres nas terminações da forma infinitiva dos verbos, érres esses que são «mudos» (diacríticos), nas pronúncias brasileiras mais representativas (aquelas que dominam a comunicação social, tendentes a levar à uniformização das outras). Repito: «andá» (andar), «comê» (comer) «ví» (vir), por exemplo. (...)”.

     Falamos tão mal a língua portuguesa, no Brasil, que os portugueses passaram a acreditar que palavras como “andar”, “comer”, “vir”, etc., aqui tem os erres mudos, ou diacríticos, e por esta razão nós, brasileiros, não os pronunciamos. É certo que os meios de comunicação social são os maiores responsáveis pela deturpação da língua e até pelo incentivo aos vícios de linguagem e corrupção do idioma pátrio, mas os principais responsáveis somos nós, o povo, talvez devido a uma herança de séculos de preguiça mental que se espraia no falar cotidiano e acabará – a continuar assim – por formar uma nova língua – o “idiotês”. Algumas pessoas que se consideram muito inteligentes já defendem o que intitulam de português vulgar como uma espécie de sub-língua sem qualquer normatização, que deve ser aceita ao lado do português que eles chamam de “culto”.

     O nosso problema é a preguiça crônica até no falar. Não se pronuncia “andar”, “comer”, “vir” por inércia verbal, falta de ânimo, assim como muitos pronunciam “nóis” em vez de “nós” e “mais” no lugar de “mas” não só por ignorância do idioma ou por sotaque cultivado nas ociosas malandrices, mas, principalmente, porque devem sentir prazer em deixar resvalar mais uma vogal, como bêbados que não conseguem evitar a voz arrastada.

    Talvez constatando as vadias características do povo do sudeste brasileiro, Mario de Andrade criou Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, que costumava dizer “Ai, que preguiça!” e Monteiro Lobato revelou o “Jeca Tatu”, tomando como referência o sertanejo que costuma pensar: “plantando nasce, mas não planto não”.

    E se temos a certeza que se fala melhor o português nos três estados do sul – Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul -, devemos deixar essa certeza de lado, levando-se em conta o que escreve Luiz César Saraiva Feijó (que mora em Balneário Camboriú, Santa Catarina), em seu blog “Professor Feijó”, matéria datada de 29 de julho de 2010, intitulada “O Português Vulgar” (professorfeijo.blogspot.com.br). Abaixo, alguns trechos.

      “(...) Mas voltando às observações sobre o falar inculto que se generaliza nas principais cidades do sul do país, tenho observado que não se dá mais importância ao falar escorreito, ao emprego do registro culto da língua portuguesa, mesmo em situações onde isso seria exigido. Nas salas de aula das universidades, principalmente as particulares; nas salas dos professores das escolas; nas Câmaras de Vereadores; nas reuniões dos Conselhos Tutelares e em muitos outros lugares e em inúmeras outras situações em que se exige o falar culto, a língua culta não é mais utilizada e os vícios de linguagem de todos os tipos grassam, desrespeitando as mais comezinhas regras gramaticais. (...)”

        “(...) Assim, é comum ouvir-se “Nós compremos isso muito barato”; “Nós falemos”; “Nós abusemos” etc., sem falar que o –S- da desinência número-pessoal, -mos- nunca é pronunciado. (...)”

       “(...) Há, também, a má conjugação dos verbos INTERVIR, HAVER impessoal, FAZER no sentido de passar o tempo ou no de indicar a temperatura, além do emprego da voz passiva pronominal, como no caso de ALUGA- CASAS em vez de ALUGAM-SE CASAS. (...)”

       “(...) Aliás, a gramática não é bem vista em quase todas as classes sociais da região, muito mais interessadas na praticidade da vida, alegando que a língua portuguesa é muito difícil e que a toda hora estão se realizando reformas ortográficas, que só servem para piorar tudo (...)”

      “(...) De tanto escrever vc no lugar de você, fica-se sem saber que as palavras oxítonas terminadas em –a-, -é-, -ê-, -ó-, -ô- são acentuadas, por exemplo. (...)”

      “(...) Programas como SOLETRANDO e alguns outros contemporizam a mediocridade, mas é muito pouco. Uma das funções da televisão – são cinco – é a de informar. Mas nunca deformar. (...)”

     “(...) Portanto, se, por um lado o lingüista encontra nesses acontecimentos um prato cheio para pesquisar, para descrever os fenômenos da língua enquanto “langue” e “parole”, por outro lado é entristecedor ver a nossa língua portuguesa ser aviltada, vilipendiada, estropiada, por pura falta de conhecimentos específicos e pela falta, principalmente, de uma política séria e objetiva para a cultura e para a educação. Mas, convenhamos, o que se poderia esperar desse país que teve durante oito anos um governo, cujo chefe foi o mais popular e representativo apedeuta nacional? (...)” 

         O professor Maurício Silva (USP), em seu artigo “Reforma Ortográfica e Nacionalismo Lingüístico no Brasil” – WWW.filologia.org.br – defende que as reformas ortográficas, assim como “a discussão em torno da ortografia da língua portuguesa – como, de resto, em torno da própria língua – redunda na tentativa de afirmação nacionalista de uma vertente brasileira do idioma, em franca oposição à vertente lusitana”. Na matéria, lembra o movimento modernista e os tempos de Getúlio Vargas. Segundo o professor, em parte “há um discurso nitidamente nacionalista, o qual acaba por transformar toda discussão lingüística num embate tipicamente político”, sendo utilizada a ortografia da língua “como instrumento de afirmação da nacionalidade brasileira”. 

       Essa tese é válida para a época do governo de Getúlio Vargas, principalmente o primeiro, devido ao nacionalismo então existente. Hoje em dia, é muito improvável, porque acontece exatamente o contrário. O governo está “vendido” às multinacionais, às oligarquias estaduais e ao latifúndio, enquanto o povo perdeu toda a noção do que seja nacionalismo, aceita a massificação e identifica-se a passos largos com a cultura norte-americana, faltando pouco para restar do Brasil apenas o território, caso este não seja também leiloado. Vivemos um momento de caos nacionalista, com a cultura dos Estados Unidos dominando em todos os setores. Inclusive a cultura da corrupção. 

        Os brasileiros não se dão conta disso porque não pensam; e não pensam porque a lavagem cerebral a que são submetidos diariamente não lhes permite usar o raciocínio. Chegaram ao ponto em que não interessa mais raciocinar, estão dispostos a aceitar as receitas de vida que o governo impuser. Embora muitos ainda saiam às ruas para protestar, esses protestos estão sendo criminalizados e o povo em geral não tem uma noção clara dos seus direitos, deixando-se seduzir pelo assistencialismo que encobre os interesses fascistas dos donos do poder. No Congresso Nacional, que deveria representar o povo, não há oposição, não porque seja fraca ou subornável. Também por isto, mas os partidos que se dizem de oposição adotam a mesma linha dos partidos situacionistas e as eleições são uma farsa apelidada de democracia. 

     Em vista disso, não é por uma questão nacionalista que o Brasil quer impor essa reforma ortográfica a Portugal. Razões políticas, muito provavelmente, mas não resultantes de nacionalismo. Ocorre que nos últimos vinte anos a educação tem sofrido uma destruição sistemática; todos passam de ano, mesmo que nada saibam; os heróicos professores do ensino básico e fundamental são pessoas remuneradas mediocremente, sem qualquer força contra alunos drogados, em sua maioria. Não passam de repetidores – como dizia Paulo Freire – de um currículo fraquíssimo para alunos absolutamente desinteressados em aprender qualquer coisa e que tem ojeriza pelo ensino do português. 

       Formam-se analfabetos funcionais que, junto aos clássicos, são mais de 75% da população brasileira. Massa moldável que serve ao Estado prescritor. Serve nos dois sentidos. Massa que é mimada pelos políticos com leis permissivas, estimulada à amoralidade e induzida a desejar apenas o prazer material através do consumismo desenfreado – incluindo as idéias prontas. Como conseqüência, é um povo que está criando a sua própria língua - mistura de gírias com expressões idiomáticas e vícios de linguagem. Uma língua fonética com ortografia própria que lembra vagamente o português. 

   Essa grande massa de analfabetos ou semi-analfabetos, ratos de laboratório a participar inconscientemente de uma grande experiência sociológica, recebeu o poder de votar e de escolher representantes à sua imagem e semelhança, ao mais das vezes; viciou no brinquedo da troca de favores e deseja a liberdade de exercer a sua grande preguiça, incluindo a preguiça de falar e de escrever. E é a língua fonética que já está sendo aceita tacitamente dentro do território brasileiro que o Brasil deseja oficializar através do Acordo Ortográfico que, se vingar, será apenas o início da total deterioração da língua portuguesa. 

      Penso que deveríamos voltar a falar e escrever português. Comove-me a preocupação de muitos portugueses com o futuro (e o presente) da língua portuguesa. Exatamente o oposto da quase total inação dos brasileiros, acostumados a sempre concordar com regras e decretos. Voltar a falar e escrever português significa jogar fora as gírias, os vícios de linguagem, a malandragem, a corrupção, o “jeitinho” e, basicamente, a estonteante e deformante preguiça nacional. Concordo que será um gigantesco esforço, mas não custa tentar. Há séculos é dito que o Brasil é o país do futuro... Acredito que já é tempo de transformar esse futuro em presente. Para isto será necessário um povo dinâmico e com senso crítico, que não será encontrado, certamente, nos estádios de futebol ou nas festas de carnaval. 

        Com o fim das consoantes mudas, ou diacríticas, poderemos ler frases assim: “Enfim, o brado retumbante da inorância venceu, e quem paga o pato do pato ortográfico?” Mas é mais provável que o grande G da palavra "ignorância" continue impávido e colosso, imune a todos os pactos.

9 comentários:

  1. Excelente matéria! Tudo que se relaciona ao nosso idioma hoje já tão deturpado, me interessa. Aprendi com o Blogueiro a ter curiosidade.

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  2. Excelente texto Fausto! Felicito-o pelo tema escolhido e pela utilização da grafia correcta do português do Brasil! Adorei a palavra "idiotês"! Uma fan aqui de Portugal que vai seguir com muito interesse o seu blogue!

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  3. Excelente texto Fausto! Felicito-o pelo tema escolhido e pela utilização da correcta grafia do português do Brasil! Adorei a palavra "idiotês"! Continuarei a seguir o seu blogue com muito interesse, aqui de Portugal. Felicidades!

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    Respostas
    1. É muito legal saber que uma portuguesa aprova a variante do português falado no Brasil, mas falado corretamente/correctamente (esta última é só para dar um ar de sofisticação à escrita).

      Obrigado, Ana pela gentil resposta.

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  4. Caro Fausto,

    Como português e opositor veemente do Acordo Ortográfico de 1990 saúdo-o pelo seu texto. Ficas perceptível o que nós por cá sabemos: que há razões de natureza política no Brasil em impor o AO90. Mas agora, com o trabalho dos Profs. Ernani Pimentel e Pasquale Cipro Neto no âmbito do Grupo de Trabalho Técnico da Comissão de Educação, Cultura e Esporte, nota-se que o Brasil, via Senado, quer pôr em causa o AO90, embora em nome de outra coisa pior, mais facilistista.
    Bem-haja pela sua simpatia e respeito para com os Portugueses. Tenho a mesma simpatia e respeito pelos Brasileiros. Por isso, deixem-se ficar as variantes linguísticas (deixámos cair o trema há muito, vós não, e bem) como estão, bem estabelecidas e fixas.
    Nada acicatou mais ódios recalcados e freudeanos entre Portugueses e Brasileiros como este AO90. Temos a sensação de havido cedências de alguns dos nossos à variante brasileira, e outros assassinatos piores, como "receção", "conceção", "expetativa", "espetador" (por "recepção", "concepção", "expectativa", "espectador").
    E asseguro-lhe, meu caro, que o mau domínio da língua é por cá também corrente, embora a iliteracia brasileira seja muito pior do que a nossa. Também por cá, mesmo em provas de avaliação e trabalhos escolares, estudantes usam escrita sms / chat… Vc existe por cá… E o "o" átono reduzido a "u", todas as sibilantes surdas reduzidas a "X". Por exemplo, "assessor" como "axexor", xperienxia, etc., o k…

    E não rebaixe tanto a vossa forma de falar, ao escrever: "Falamos tão mal a língua portuguesa, no Brasil, que os portugueses passaram a acreditar que palavras como “andar”, “comer”, “vir”, etc., aqui tem os erres mudos, ou diacríticos, e por esta razão nós, brasileiros, não os pronunciamos. "
    São pronúncias regionais. O pior é quando se torna escrito. Como "mal" advérbio escrito "mau". Os "mais" por "mas", claro.
    Também temos as nossas pronúncias. Os "b" pelos "v" no Norte e certas áreas do Centro. Típico do Porto. No Alentejo, no Sul, os "r" finais têm um ligeiro "i" epentético: "corrêri".

    Abraço

    Rui Miguel Duarte

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  5. Ah, já me esquecia, ao escrever “Enfim, o brado retumbante da inorância venceu, e quem paga o pato do pato ortográfico?” não está a fazer ficção. Tornou-se banal por cá.
    Formas vossas em vez das nossas:
    contato e contatar por contacto e contactar (as nossas formas)
    fato por facto (a nossa forma).
    E puras invencionices
    pato por pacto
    impato por impacto
    intato por intacto
    compato por compacto
    adeto por adepto
    reto por… repto (cf. recto)
    etc.
    Efeitos secundários da aplicação, pelo mecanismo da analogia, da imagem de marca do AO90, que é a Base IV, que afecta as consoantes ditas "mudas", mas que têm valor diacrítico (além de etimológico). Dada a natureza do nosso vocalismo átono (vogais átonas enfraquecem ao ponto de se fecharem e até mesmo chegarem a elidir na pronúncia, é umas das características mais marcantes de uma certa dureza da nossa fonética, mas também da nossa riqueza de timbres), e essas consoantes mantêm essas vogais abertas. Donde,
    em "recepção" não pronunciamos o "p", mas abrimos o "e". Ao ser-nos retirado, está demonstrado (já fiz a experiência) que um brasileiro "receção" se lê como se fosse "recessão". E mesmo por cá já se confundiu, em notícias de jornal.
    Bem, dizia, o mecanismo da analogia leva a, intuitivamente, em casos análogos ("p" ou "c" antes de outra consoante, mas articulado) deixe de ser grafado e mesmo pronunciado, quando o era… Donde, os "patos" (uma edição para as escolas do romances Caim de José Saramago repete a expressão "pato com o diabo"!).
    O AO90, com o critério da pronúncia, abriu uma caixa de Pandora para todos os tipos de asneira…

    E acredite, lutamos contra a imbecilidade dos acordistas, que recorrem ao insulto, recusam o contraditório, vão pelo argumento do "porque sim" e da "língua oficial da ONU" (quem pagaria essa fantasia?) e asseveram que está tudo bem e que nós é que inventamos os caso de mau uso… Lutamos contra a imbecilidade dos nosso políticos, de todos os partidos, que já ouviram tudo mas ainda crêem em quimeras.
    Foi preciso terem vindo cá dois professores estrangeiros, do vosso país tropical, para perceberem que um órgão de soberania põe o processo em questão e quer outra coisa, ainda pior… Mas mesmo assim não sei se acordarão do Acordo. Creia, os nossos boçais, maçons e carneiros políticos, que só prestam conta ao chefe e estão mais interessados nos negócios pessoais (os políticos dos partidos que se alternam no executivo) que não se apercebem que não mudaram desde os tempos do Eça de Queiroz. Os nacionais já disseram tudo, não quiseram saber. Talvez com a intervenção de Ernani Pimentel e Pasquale Cipro Neto acordem…

    Já agora, queira ouvir, com transcrições:
    http://www.youtube.com/watch?v=xIO0JHBH36Y
    e
    http://www.youtube.com/watch?v=LtUY93KqBgc

    Falta o vídeo 3.

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  6. Elizabeth Pereira Gabas12 de fevereiro de 2014 às 17:29

    Bravíssimo Fausto Brignol pelo texto!!! Parabéns Rui Miguel Duarte pelos comentários!!!

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  7. Elizabeth Pereira Gabas12 de fevereiro de 2014 às 17:32

    Bravíssimo Fausto Brignol pelo brilhantismo do texto!!! Parabéns Rui Miguel Duarte pelos não menos brilhantes comentários!!!

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