Estava
encolhido na sacada, molhado, olhos imensos no escuro. Chovia bastante desde o
último apocalipse. Perguntei “quem és” e ele me respondeu, entre uma e outra
tosse, “sou o ladrão”.
- Qual deles?
- Aquele que assaltou esta casa na
semana passada.
- Qual deles?
- Eu.
A chuva aumentou, devoradora, e ele me
pediu “posso entrar, nem que seja só por um momento, acho que peguei uma gripe”.
Não era alto ou baixo, forte ou fraco, branco ou negro. Tinha olhos vermelhos e
tossia.
- Entrega a arma.
- Não estou armado.
- Como posso confiar?
- Não pode.
“Não se pode confiar em ninguém hoje em
dia”, confidenciou, enquanto pedia licença e entrava, pinga-pingando grandes
gotas da roupa molhada. Espirrou. Em voz pedinte, sugeriu: “quem sabe um café?
Se tiver uma aspirina...”
- E um agasalho?
- Pode ser. O problema da chuva é que
molha.
- As plantas não reclamam.
- Nem o deserto.
Um ladrão filosófico. Fiz o café e dei
o agasalho e a aspirina. Sério, muito sério, perguntei: “e as coisas que me
roubaste?” “Passei adiante.” Bebia o café com desespero. Continuou, gaguejando:
“esta é uma cidade de receptadores, receptores, replicadores...”
- Resmungadores também?
- Muitos resmungam o dia inteiro. Eu
assalto.
- E não tem vergonha?
- Costumo assaltar vestido. Desta vez a
roupa molhou.
Disse que não era pobre ou rico, remediado
ou assistido. Somente um ladrão entre tantos, ainda em fase de aprendizado. Não
era do PT ou do PSDB. Votava no candidato da moda, aquele que pagasse mais, e
admirava muito os políticos.
- Todos?
- Todos. Não escapa um. São
especialistas.
- Especialistas em...
- Exato. Admiráveis exemplos.
Pretendia seguir carreira na política,
quando estivesse cansado de tantos assaltos. “Não é uma questão de ideologia,
mas de pragmatismo”, afirmou. Nas horas vagas, fazia um curso on-line de
vendedor. Admitiu que necessitava muito de um pouco de teoria. Já não tossia ou
espirrava e exibia um olhar rapínico. Fiz algumas sugestões.
- Quem sabe uma empresa de marketing?
- Tenho pensado nisso, mas há muita
concorrência.
- Tesoureiro de partido político?
- É o meu grande sonho!
Estava refeito, os olhos brilhando.
Levantou-se e começou a olhar para os lados. Viu o relógio-cuco e disse: “deve
custar uma fortuna!” “É uma herança, tem valor estimativo. A chuva parou; deves
ir embora ou chamo a polícia.” “Polícia? Tenho alguns conhecidos.”
- Eu estou armado.
- Como posso ter certeza?
- Não pode. Sabe, hoje em dia...
- Não se pode confiar em ninguém!
Falei para ele que não estava gostando
das suas frases exclamativas. Preferia o cara molhado e gaguejante que se queixava
da chuva e que estava encolhido na sacada quando eu ouvi barulho e o encontrei.
“As coisas mudam”, replicou, “assim como a chuva precede e sucede o sol”.
Tentava me enrolar com a sua conversa de futuro vendedor. Ou político. Percebi,
e disse a ele que deveria sair imediatamente.
- Por onde? Portas e janelas estão
trancadas.
- Por onde entraste.
- Ainda está muito úmido.
- Logo estará seco. As coisas mudam.
Acompanhei-o até a sacada. Ao lado, mais
abaixo, havia o muro de uma construção. “Entraste por ali, não foi?” Mostrava-se
nervoso, quase não acreditando que eu o estava expulsando. Subiu na grade da
sacada e estava quase alcançando o muro, quando voltou e tentou me atacar.
Esquivei-me e mostrei a arma. Retrocedeu.
- Não vai atirar em mim. Seria um crime.
- Em legítima defesa.
- Isso é bobagem. Leis... Além disso,
matar é pecado.
- Pecado é a tua vocação para político
profissional.
Atirei.
Matéria filosófica. Tudo à ver com o que aconteceu conosco e muita gente por este mundo. Ladrão, política...
ResponderExcluirAchei bonito. Eu estou lutando contra gente assim. Visitem o dossiê e se possível ajude a divulgar. www.oberdanbarbosa.wordpress.com
ResponderExcluirOberdan