“Qual é o destino da gente?”, me perguntou Arnaldo Descuidista, ao acordar. Eu já estava acordado desde cedo, ou talvez não tivesse dormido, com toda aquela fome, que parece maior quando a gente não sabe como será o dia seguinte, nem a hora seguinte, às vezes nem o minuto seguinte, e a fome aumenta não por fome propriamente dita, mas pelo vício de comer, pelo vício de ter fome. Vocês já dormiram embaixo de viaduto? Não aconselho, é muito barulho, quente no verão e frio no inverno. Não tem ar condicionado e o teto costuma pingar quando chove. Mas é um teto, pois o importante é dormir embaixo de alguma coisa, porque dá uma sensação de resguardo e aquece a esperança. Esperança de que? Na falta de coisa melhor, esperança de ter esperança. Eu respondi para o Arnaldo que a gente vive para ter esperança. Ele me olhou com aquele olhar descrente que só o Arnaldo tem e disse: “Vamos tomar café?” Levantamos, pegamos as nossas coisas, colocamos nos sacos e saímos. Fomos de porta em porta, sempre escorraçados, e, quando já estávamos perdendo a esperança de ter esperança e a fome aumentava e os ouvidos zumbiam e nem o cigarro que encontramos perdido na calçada e que dividimos fumada por fumada nos alegrou um pouco e o Arnaldo já estava pensando em descuidar alguém, coisa que eu não sei fazer, porque as minhas mãos são pesadas e sem jeito - e por isso já fui preso algumas vezes e corrido da cadeia depois de uns tapas por não saber roubar direito - encontramos uma porta que se abriu e uma senhora nos disse: “Esperem um pouco, que eu tenho um restinho de comida”. Parecia um sonho. Esperamos, nos coçando de felizes e ela voltou com uma panela velha que nos deu dizendo que podíamos ficar com a panela e fechou a porta. Pensamos que ela ia chamar a polícia e saímos correndo. Quando cansamos, repartimos o que tinha dentro da panela e fomos lavar as mãos no chafariz daquela praça que fica ao lado da igreja. Lavamos as mãos e a panela. Nunca se sabe. “Aquela mulher é das que comem”, disse Arnaldo. Tem pessoas assim, pessoas que comem. A maioria se vira como pode, mas tem os que comem. Ficamos pensando. Daí, quando foi por volta do meio-dia e nós estávamos contando as moedas recebidas perto da igreja, Arnaldo lembrou da mulher da panela. Lembrou de ir lá pedir mais comida, mas eu disse pra ele que seria um exagero, um abuso, uma falta de vergonha e estávamos discutindo sobre isso quando vimos ela passar na outra calçada. Sozinha, curvada, baixinha, deveria ter mais de setenta anos. Todos a cumprimentavam e ela sorria para todos. Sem querer, a acompanhamos de longe e vimos quando entrou em um restaurante. Fomos chegando perto e paramos na outra calçada, espiando. Dava pra imaginar ela comendo. Às vezes nós ficamos imaginando, eu e o Arnaldo. Pensando nas coisas e imaginando. É bom. Quase tão bom como comer. Depois de um bom tempo, nos afastamos devagar e olhem só a surpresa! Ouvimos uma voz nas nossas costas que dizia: “Vocês dois aí!” Nos viramos e era ela, almoçada, satisfeita, talvez tivesse tomado um cafezinho depois do almoço... Estava risonha e nos falou que ia trocar cinquenta reais para nos dar quinze, porque percebia a nossa necessidade. Talvez tenha sido pela alegria de ter almoçado, nós nem tínhamos pedido nada. Logo depois ela voltou com os quinze reais na mão “Olhem, aqui tem quinze reais, mas peço que me devolvam daqui a dois dias, porque é o dinheiro da minha comida”. Ficamos olhando pra ela, apalermados. Depois o Arnaldo falou: “Minha senhora, não podemos ficar com o seu dinheiro, porque não queremos tirar a comida de ninguém”. E nos afastamos. Somos pobres, mas honestos. Às vezes comemos.
TAGS
ACORDO DE ELITES
ALIENAÇÃO
AMAZÔNIA
ASSANGE
ASSISTENCIALISMO
AÉCIO
BELO MONTE
CAPITALISMO
CELSO DANIEL
CONGRESSO
CONTO
CORRUPÇÃO
CÂMARA
DEMAGOGIA
DESIGUALDADE
DESMATAMENTO
DILMA
DITADURA
DROGAS
EDUCAÇÃO
ERENICE
FARSA
FASCISMO
FORÇAS ARMADAS
GETÚLIO VARGAS
GILBERTO CARVALHO
IBAMA
ILLUMINATI
INTELECTUAIS
JESUS
JOSÉ EDUARDO DUTRA
LULA
MAQUIAVELISMO
MARINA
MAUÁ
MAÇONARIA
MENSALÃO
MISÉRIA
NACIONALISMO
NORDESTINOS
NÃO SER
OLIGARQUIAS
OTAN
PAULO FREIRE
PENTÁGONO
POBREZA
POESIA
POVO
PT
PT/FALSA/ESQUERDA
PV/PT
REFORMA AGRÁRIA
ROTSCHILD
SALÁRIO MÍNIMO
SERRA
STF
SÉRGIO CABRAL
TIRIRICA
TORRES GÊMEAS
TRANSGÊNICOS
TSE
VIA CAMPESINA
WIKILEAKS
XINGU
ZÉ PADILHA
Assinar:
Postar comentários (Atom)
CONTOS DE FAUSTO BRIGNOL
- PRISMAS E APARÊNCIAS
- GERMAN. ALBION.
- CAMINHANTE DA GALILÉIA
- NA NOITE PASSADA...
- brasileiríadas - GETÚLIO E JANDIRA (1)
- brasileiríadas - GUSTAVO ADOLFO E DRICA DE BENFICA (1)
- brasileiríadas - GUSTAVO ADOLFO E DRICA DE BENFICA (2)
- brasileiríadas - GETÚLIO E JANDIRA (2)
- BRAZIL CORPORATION E O FIM DO MUNDO
- brasileiríadas - O PREFEITO E O CAMPEONATO DE PETECA
- brasileiríadas - GUSTAVO ADOLFO E DRICA DE BENFICA (3)
- APARTAMENTO 105
- ENCONTRO COM FORO
- A CAPIVARA
- brasileiríadas - GETÚLIO E JANDIRA: O VOTO NULO DO SISTEMA
- brasileiríadas - GUSTAVO ADOLFO E DRICA DE BENFICA(4): "ELEIÇÕES E NEGÓCIOS"
- CONSIDERAÇÕES DE DONA JOANINHA
- O UMBRAL
- A CONSPIRAÇÃO BÚLGARA
- O FEMININO DE HOMBRIDADE
- MAS NÃO FOI PÊNALTI?
- SUJEITO OCULTO
- A BUSCA DO GRAAL E HERMETO PASCOAL
- SOMENTE UM SONHO
- O NINHO DE JOÃO -DE-BARRO
- A ROSA
- OS PRONUNCIADOS OLHOS DO BRASIL
- SEU JUCA
- O DIA DOS BOBOS NA VERSÃO DOS LOBOS
- ENTREVISTA DEPOIS DO JOGO
- O PREFEITO E AS ÁGUAS PÚBLICAS
POESIAS DE FAUSTO BRIGNOL
- O TEMPO
- GATOS
- ILHA
- ÚLTIMO PENSAMENTO DE ÍCARO
- ECOS
- EM RITMO BÚDICO DE BLUES
- A ÚNICA CERTEZA
- ADORNO
- AMA BROOKS
- DESERTOS
- TAMBÉM O CISNE
- QUANDO A NOITE...
- XANTIPA
- CONSERVAR O SONHO
- TRENODIA
- EUS
- LOUVEMOS AS MÃES DE TODOS OS MAIOS
- MAGA ESTRADA
- QUANDO EM SONHO
- CANTIGA D'AMICO
- PRANA
- SAUDADE DESSA ÁGUA...
- CIO
- ATORES
- LUARES
- HÚMUS
- A ERA DA MEGERA
- DESIGUAL COR E ESCURIDÃO
- A POSSIBILIDADE DE RESPIRAR
- ENCOBRINDO OSSOS E CAVEIRAS
- NO CORAÇÃO DA TERRA
- TALVEZ SEREIAS
- BLUES
- CINZAS DA TERRA
- CHUVA PEQUENA
- AO LONGE,TÃO AQUI
- NARCISOIARA
Muito bom o conto. Até me lembrou uma história real em certas passagens. O quadro pintado pelos que comem e os que não, está ótimo. Parabéns!
ResponderExcluirLidia.