sexta-feira, 30 de julho de 2010

ENCONTRO COM FORO



Um ser cabeludo, deste tamanho assim, apareceu e disse: “Eu Sou Foro!”. E a sua voz tonitroante tonitroava, ameaçadora. Respondi: “Como vai, senhor Foro?”


      – “Como vai, não, ser impuro!” – trovejou o ser, deste tamanho assim, enquanto eriçava os cabelos, que eram muitos, e seguiu dizendo, a tonitroar: “Deves tremer ao me ouvir!” 

      Tremi, para não fazer desfeita, enquanto dizia – “Mas eu estou tremendo, senhor Foro” – e mostrei minhas mãos vermelho-pálidas que fingiam oscilar como se tremessem de verdade, enquanto ele continuava a tonitroar.

      - “Eu Sou Foro, Foro, Foro, o Senhor das Verdades escritas e por escrever, o Superior Poder de todos os poderes, o Sereníssimo, o Muito Augusto, Mestre Secreto, Perfeito, Íntimo, Preboste e Juiz; Sou o Grande Eleito Soberano, Ilustre e Perfeito, domino sobre a Acha, o Machado e o Arco Real; sobre a Serpente, a Águia e o Pelicano; Sou o Grande Inspetor Geral de todos os Mestres dos Mestres, Sublime em Tolerância e Compreensão, o que ouve e pondera e a quem todos se curvam quando fala e decide os destinos miseráveis dos seres profanos – eis o que Sou!” – falou de um só fôlego, enquanto seus cabelos, que eram muitos, eriçavam-se no ápice de Sua Suprema Pessoa, deste tamanho assim, a olhar-me com severo olhar como a esperar a confirmação de minha pequena pessoa para as suas exclamativas palavras.

      Eu, para não parecer mal educado, disse: “Que bonito! quanta coisa o senhor é...”

      E ele voltou a falar, com a voz mais alta do que antes, como se desejasse me deixar surdo.

      – “Como, que bonito?! Não percebeste ainda que Eu Sou Foro, Foro, Foro, o senhor de todos, o determinador e o exterminador, céus e terras estão cheios de Minha Glória, bendito Eu Sou nas alturas e planuras de onde observo todos os fatos e me enfastio a julgar e a decidir. Quando bato o meu martelo, universos são feitos e desfeitos!...”

      – “Momento, seu Foro” – eu disse, para interromper a falastronice que já me atordoava – “Que martelo?” - e ele, um ser deste tamanho assim, com os cabelos a baloiçar como se fossem uma peruca solta, olhou para as suas grandes mãos vazias, olhou para os lados, olhou para mim, agora com um grande olhar perplexo, suplicante, e gritou, tonitroante: - “Meu martelo!... Onde está o meu martelo?!”

      E eu comecei a rir, a rir e a gargalhar sem parar, enquanto aquele ser, deste tamanho assim, foi diminuindo, diminuindo e, com a voz cada vez mais débil, dizia, quase a chorar – “Meu martelo...” – e foi sumindo, diluindo seu poder e sublimidade a cada gargalhada minha.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

PATOS, GANSOS E OUTROS BICHOS





A convocação da seleção brasileira de futebol pelo técnico Mano Menezes obedeceu aos novos critérios da CBF, que, visando uma reformulação da seleção após o vexame na Copa da África do Sul, declarou, através do seu presidente Ricardo Teixeira, que a nova seleção deveria ser composta por jogadores com idade até 23 anos.

      Com uma ou outra exceção, assim foi feito pelo novo técnico. Mano Menezes parece ser uma pessoa flexível às ordens da CBF, maleável às circunstâncias e adequando-se ao novo ambiente de trabalho. Mas nem CBF – leia-se Ricardo Teixeira – nem Mano Menezes, que é um rapaz obediente, buscaram priorizar a qualidade e a técnica. Ficaram de fora alguns excelentes jogadores, que qualificariam a seleção.

      O mais óbvio e gritante é a nova não convocação de Ronaldinho Gaúcho. Dunga não o convocou porque, ao que se diz, não gostava dele, principalmente após determinado Gre-Nal em que Ronaldinho fez algumas coisas que não deveria fazer ao driblar Dunga – e perdeu a vaga na seleção. É o que se diz.

      Mas acho que isso que se diz não deve ser inteiramente correto. Quem não gosta do Ronaldinho deve ser a própria CBF, e, é claro, os seus contratados. A outra razão, é que a CBF quer jogadores que tenham, no máximo, 23 anos, e Ronaldinho parece que passou da idade prevista. Outros que não foram convocados, contra todo o bom senso, foram, por exemplo, Rogério Ceni, Kaká, Juan, e principalmente Lúcio, que foi o melhor jogador do Brasil na recente Copa. Também não tem a idade requerida.

      Desta forma, temos, literalmente, uma seleção de novos, com patos, gansos e outros bichos que a mídia oficial tanto implorou fossem convocados. E Mano Menezes, um rapaz obediente, calmo e amistoso com os microfones, obedeceu.

      Claro que é uma convocação para enfrentar a seleção dos Estados Unidos em uma partida amistosa já prevista no calendário da CBF. E para jogar contra eles bastaria fardar com a camiseta canarinho o time do Avaí, por exemplo, e ganharíamos de goleada. Mas a idéia não é essa.

      A CBF, desmoralizada pelas suas péssimas escolhas nos últimos oito anos, precisa mostrar uma nova cara, e a escolhida foi a do Mano Menezes. Obviamente, Scolari foi preterido devido à sua forte personalidade e ao seu caráter não subserviente.

      Mas o mais triste de tudo isso, além do fato de Mano já começar “queimando” jogadores de excelente nível, como os citados acima, é a discriminação por idade. Acredito que deva estar previsto em algum artigo da nossa Constituição que isso é ilegal.

      Qualquer tipo de discriminação é ilegal, mesmo que não esteja escrito explicitamente: “Não se deverá discriminar por idade quando da convocação de jogadores para a Seleção Brasileira de Futebol”. Não está escrito, é claro. Não desta maneira. Mas, qualquer pessoa com um mínimo senso de ética deve saber que isso não deve ser feito. É feio, deseduca, atenta contra a moral e os bons costumes.

      Mas é a CBF que manda no futebol brasileiro, e quem manda faz as leis, segundo a nossa pobre idéia de civismo, neste Brasil tão pouco brasileiro. E é tão importante o futebol para o povo brasileiro que vitórias ou derrotas no futebol podem eleger ou derrotar candidatos à presidência da República. E as eleições estão aí. Como se sabe, eleições e ética não combinam. Aliás, política e ética atualmente são antônimos, no país dos mensalões.

      CBF é apenas uma sigla que esconde dirigentes de futebol que foram escolhidos pelo governo, que, supostamente, deveria governar. Então, ao se fazer discriminação de idade na seleção brasileira de futebol, quem faz essa discriminação é, de fato, o governo brasileiro, que se esconde atrás da sigla CBF.

      E pode o Governo - leia-se Lula (Hoje. Amanhã Dilma, Serra ou qualquer outro(a) que seja cúmplice do mesmo sistema) – ser a favor da discriminação, da falta de ética, do descaso com o bom senso e contra a educação moral do povo, escudado por siglas e por nomes, e escondido atrás da máscara parva da embriaguez moral?

quinta-feira, 22 de julho de 2010

QUAL É O TAMANHO DO SEU MEDO?




Há quem afirme que a vida nas cidades, a vida sedentária, faz com que tenhamos mais medo. A acomodação leva ao medo. Aqueles medos cotidianos. Medo de perder o emprego, o status, a vida conhecida e rotineira, a estabilidade.

      Mas, também os homens mais primitivos, morando no campo e não, necessariamente, em aglomerações, tinham medo. E o medo do desconhecido talvez tenha sido o sentimento mais forte a uni-los, na busca da auto-proteção e conforto. Mas essa união natural, à medida que as sociedades evoluíam e tornavam-se mais complexas em conhecimento e tecnologia - dividindo as pessoas em classes sociais e separando famintos de bem alimentados – deteriorou-se, fazendo com que o ser humano aumentasse os seus medos na mesma proporção em que se tornava mais antagônico em relação à natureza que o havia gerado e protegido.

      Os animais não tem medo, a não ser “o medo animal” de ser devorado pelo mais forte, de ter o seu habitat invadido, coisas assim... Agem naturalmente, em harmonia com a natureza. Os homens, predadores antinaturais, devastadores da natureza, poderosos em tecnologia e em saber, vivem com medo.

      Há os medos que se avultam na nossa mente: perder o amor, as amizades, o carinho dos mais próximos – porque necessitamos desse aconchego para viver. E os medos drásticos: a guerra, a perda dos entes queridos, as catástrofes, o desconhecido que poderá, a qualquer momento, nos tirar a vida e tudo o que temos. E o medo cruel, que é o medo da solidão; ou o medo pânico provocado pela própria solidão, aliada à incompreensão dos demais. Este é um medo que pode levar a universos mentais demasiado introspectivos, a prisões e fugas internas.

      O medo das perdas é a principal razão de todos os medos. Porque perder tem o sentido negativo de “ser menos” e somos levados a acreditar que somos mais à medida que temos mais. Quando perdemos alguém muito próximo, alguém que é “nosso”, as nossas emoções são questionadas, desestabilizadas e o medo nos invade. Estamos sempre agarrados a coisas, situações ou pessoas que “temos”, que “adquirimos”. E qualquer perda nos provoca medo.

      Todos vivemos com medo. Aqueles que dizem que não tem medo, com certeza devem sentir medo da possibilidade do medo. Em sociedades consumistas, como a nossa, sociedades selvagens, perder também tem o significado de não conseguir alcançar determinada meta. E isto, sempre em relação ao outro, que poderá alcançá-la antes. Como se a vida consistisse em alcançar metas que levam a outras metas, indefinidamente. Nestas sociedades, onde o capital tornou-se o motor da vida, viver é sinônimo de competir. E competir passou a significar ser mais que o próximo, ultrapassá-lo, vencê-lo – e sempre de maneira cruel, desleal e predadora. E o medo de perder essa corrida iníqua é o que corrompe a alma. Um medo escalonado entre classes sociais e idades.

      As pessoas mais pobres tem medo de que a luta pela sobrevivência diária não seja o suficiente para sobreviverem. Na classe média, há o medo de não conseguir subir acima da média. E os burgueses lutam com seus medos de serem derrubados do seu pedestal, de não conseguirem suplantar o rival mais próximo, de não conseguirem, ao final, dominar a tudo e a todos.

      E todos tem medo da velhice. Inventaram até a expressão “terceira idade” para tornar a velhice menos feia e angustiante.

      Para os burgueses, a velhice parece não ser tão ruim, porque conseguem comprar todos os lazeres e prazeres; todas as bajulações. Aspiram ao supremo poder, mesmo quase às vésperas da morte, com o rosto repuxado por mil operações plásticas, quando já resolveram que o cérebro encarquilhado ficará em alguma urna de cristal. Sonham com a possibilidade de clonar-se – posto que a alma já está perdida - para preservar a sua mediocridade banhada a ouro; constroem gigantescos mausoléus para guardar seus ossos. Pensam-se deuses.

      Na classe média, a velhice torna-se mais asfixiante. É quando os remédios amontoam-se nas gavetas, junto com as queixas diárias; quando são remoídas as ilusões perdidas e as possibilidades não alcançadas; quando a última esperança está nos filhos e netos, que poderão um dia, quem sabe, vir a ser burgueses – e ter uma velhice mais ilusória.

      Nas classes pobres, a velhice é um desafogo da vida escrava e martirizada. Transforma-se na ante-sala da morte, na possibilidade de – “além” – todos os sonhos se tornarem realidade.

      Independente da classe social e além de todos os medos cotidianos, das torturas mentais a que nos submetemos, todos temos medo da morte. É quando pensamos em ser, e no Ser. Um medo enraizado, atávico, que passa de geração para geração, porque o homem é o único animal que, mesmo sabendo que morrerá algum dia, não acredita nisso até o último instante. Os animais irracionais, ao contrário, vivem em harmonia com a natureza e a morte pertence à natureza. Mas nós usamos o raciocínio. Usar o raciocínio nos traz a dúvida e a dúvida leva ao medo.

      Por isso, os cultos humanos, em sua grande maioria, reverenciam a morte e todas as religiões devem a sua existência a essa realidade que não conhecemos. E da qual temos medo e esperança ao mesmo tempo.


segunda-feira, 19 de julho de 2010

PRANA



Silêncio...

     Respiração...

          Prana...



Olhos ardidos fechados...
Olhos agudos penetram...
Olhos...

Dentro o Universo ressuscita...
Dentro universos renascem...
Dentro...

Eus conspiradores murmuram...
Eus latentes germinam...
Eus...


Silêncio...

     Respiração...

          Prana...

quinta-feira, 15 de julho de 2010

APARTAMENTO 105


Não, não acreditei quando vi pela segunda vez aquele rosto largo me cumprimentando. Palavra que não acreditei. Ou, por outra, tinha que acreditar: ali estava ele, sorridente, olhos azuis enormes, irônicos...

     Pensei primeiro: vou virar o rosto, fingir que não vejo. Mas em seguida me dei conta do absurdo de tal atitude. Talvez fosse justamente o sinal que esperava. Era inevitável que o olhasse, cumprimentasse, tomasse meu café e fosse embora. Era inevitável que, enquanto tomava meu café, ele ficasse me olhando e eu a ele - como dois cavaleiros prestes a quebrar lanças. Era inevitável que eu derramasse café no balcão - pois não se pode, ao mesmo tempo, cuidar o inimigo, tentar acender um cigarro e beber o café. E ele ali, impávido, não tão colosso assim, mas, enfim, impávido, esperando a falha, o descuido, e sempre sorridente: “não quer usar meu lenço, amigo?”.

     Não quis, é claro que não quis.

     Já desde ontem eu sinto que não é apenas ele, o homem do café, que me olha como quem diz “eu sei, te conheço...”. Não foi por acaso que vieram me entregar a roupa da lavanderia. Aliás, um sujeito também sorridente, também de olhos azuis, dizendo com aquele característico tom servil: “a sua roupa, senhor”. E eu espantado com a minha roupa - um smoking e duas camisas sociais de seda - quase a recebendo, quase dando gorjeta ao entregador, quase agradecendo pela entrega. Eu, que nunca tive um smoking, jamais uma camisa de seda, ali, espantado. “Mas este não é o apartamento 105, senhor?”.

     Parece que todos estão sabendo onde moro. E de meus hábitos, vícios e costumes.

     Hoje de manhã resolvi dar uma volta por um bairro até então desconhecido para mim, e, ao entrar num bar para comprar cigarros, o caixa foi logo me entregando um maço - antes mesmo que eu o pedisse. O ato foi tão espontâneo que não me surpreendi. Somente agora, ao unir os fatos, ao remoer tudo o que tenho feito nestes últimos três dias, é que me dei conta que o caixa do bar também tinha rosto largo, olhos azuis e sorriso irônico.

     Quando decidi tirar tudo isso a limpo - pois não sou homem de deixar acontecer - percebi que eles estavam me esperando. Que sabiam que eu ia sair e o momento de minha saída. Desde o primeiro passo fora de minha porta senti estar sendo vigiado.

     Primeiro foi aquele garotinho que brincava de skate no corredor do edifício. Um garotinho de cara larga, olhos azuis e óbvio sorriso irônico, que me cumprimentou: “oi, tio!”. De onde teria saído? Foi o suficiente para que eu me resolvesse abordar a vizinha da frente, obrigando-a a contar tudo. Até ela parecia que sabia que eu iria bater na porta da sua casa: por mais que eu batesse, não apareceu ninguém - embora eu não precisasse chegar muito perto para perceber as risadas abafadas do outro lado da porta.

     Resolvi, então, que no café ou no bar deveria encontrar a solução, ou, pelo menos, uma explicação satisfatória. Mas não pude nem sair do edifício. No térreo, um porteiro novo - cara larga, olhos azuis, sorriso irônico - me preveniu: “parece que vai chover, senhor”.

     Ignorando-o, tentei sair à rua e lá estavam eles. Nunca poderia imaginar que eram tantos.

     Uma multidão que aparentava apenas tratar de seus próprios assuntos. Roupas as mais diversas, andares os mais estranhos - mas com a mesma expressão nos olhos azuis e no sorriso irônico estampado em todos aquelas caras largas, que, aos poucos, foram-se transformando em uma única e compacta cara larga, em um único e petrificado sorriso irônico, em dois imensos olhos azuis que me empurraram de volta escada acima, escada acima.

     Senti que queriam me atropelar, me esmagar de vez, e foi o quanto deu para entrar no meu apartamento, resfolegando. Fiquei por muito tempo com o rosto colado em minha porta, como se quisesse ouvir meus próprios segredos... Esperando. Quando ouvi os primeiros passos no corredor comecei a recuar instintivamente, mas os primeiros passos passaram.

     Tranquei tudo. Estou trancado e retrancado. Jamais sairei daqui. Resolvi tomar meu último café, fumar meu último cigarro. Depois, não sei o que acontecerá. Só tenho uma certeza: eles virão. Mais cedo ou mais tarde. Não sei se poderei encará-los novamente. Eles conseguiram todos os trunfos, mas esta última vitória eu não lhes darei: a de verem minha bela, única e perfeita cara, larga, pois tenho testa larga; olhos azuis únicos e um sorriso que alguns dizem irônico, mas que eu sei que é meu. Somente meu.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

DE COMO O ESTADO MATA OS SEUS CIDADÃOS


Há várias maneiras, sendo a mais conhecida as guerras. Nessas ocasiões, por “razões de estado”, os cidadãos fardados são enviados para morrer nas frentes de batalha. E todos sabemos que quem vence as batalhas são os generais e quem as perde são os soldados.

     Mas há maneiras mais sutis, embora cotidianas. A pior é a exploração da força de trabalho dos cidadãos, que somente serão considerados como cidadãos enquanto se mostrarem produtivos. Após o período de produtividade, o trabalhador é aposentado, já velho, com bem menos do que recebia enquanto era tido como uma pessoa inteira. Mas, até lá, se tiver a sorte de conseguir um emprego, será explorado durante toda a vida, com breves períodos de descanso, chamados de “férias”, que servem justamente para que o trabalhador recobre suas energias de alguma maneira para, depois, voltar a ser explorado com mais força ainda. 

     O explorado trabalhador não tem o direito de adoecer. Quando isso acontece – o que é muito comum entre os mortais – ele continuará a ser explorado até a sua morte, mesmo doente, porque o todo poderoso Estado – essa entidade intocável, que pertence a poucos – não permite a doença ao explorado trabalhador doente. Para isso, o inefável Estado dos muito poucos exploradores, que usufrui da força de trabalho da multidão dos explorados trabalhadores, usa de vários artifícios. Um deles – talvez o principal - é a perícia médica.


A PERÍCIA MÉDICA

     A perícia médica é um artifício utilizado pelo Estado para dizer ao cidadão doente que ele não está doente. Teoricamente, a perícia médica deveria averiguar qual a doença da pessoa - através dos sintomas apresentados e de exames clínicos e laboratoriais -, a gravidade dessa doença e, após tudo isso, diagnosticar as suas reais condições de trabalho. Caso o aposentado não tenha condições de trabalhar, deve ser recomendada a sua aposentadoria. Isto, teoricamente.

     Mas sei de casos escabrosos. Acredito que todos saibam que, atualmente, médico é uma pessoa que faz um curso de Medicina com o principal objetivo de ganhar muito dinheiro, depois de formado. Raros são os médicos que realmente tem vocação, que gostariam de ver os seus pacientes curados. Mesmo porque, salvo exceções, médico não cura, passa receitas. Não fossem os laboratórios e a indústria química e farmacêutica, a profissão de médico estaria acabando. Salvar-se-iam os cirurgiões, para casos de extrema gravidade. Por outro lado, a profissão de enfermeiro estaria bem mais valorizada.

    E os peritos são os médicos. Quando um trabalhador explorado vai a uma perícia médica, com o objetivo de requerer aposentadoria ou algum outro benefício, é porque está doente. Há casos de malandragem, mas são as pouquíssimas exceções. Ocorre que os peritos médicos tratam a todos os periciados como se fossem malandros e mentirosos. Talvez sejam orientados para isso: o Estado não quer pagar pelo que não recebe; e o que o Estado recebe de cada cidadão é, além dos inúmeros impostos, a sua força de trabalho. Quando algum trabalhador fica doente e é aposentado o Estado o trata como um cidadão de segunda classe, como um peso, um estorvo.

     Sei de um caso terrível. O trabalhador perdeu uma perna e foi periciado por um traumatologista. Requeria a sua aposentadoria. O médico disse a ele que poderia trabalhar com a outra perna e auxílio de uma muleta. O trabalhador voltou para a sua casa, pegou uma arma e voltou para atirar no médico. Queria atirar nas pernas do médico. Gritava: “agora tu vai ver o que é trabalhar só com uma perna!” Não conseguiu o seu intento e, ao que eu saiba, continua trabalhando com a sua única perna.

    Sei de uma pessoa que sofre do coração e hipertensão e poderá cair morta a qualquer momento – mas a perícia médica negou a sua aposentadoria e ela continua trabalhando. Sei de outro caso, de uma pessoa que faz serviços gerais em uma escola e que ficou incapacitada de trabalhar com um dos braços. A resposta do perito foi: “a senhora poderá trabalhar com o outro braço e com o auxílio de uma bengala”.

    E sei de um caso tão terrível quanto os anteriores, mas que tem requintes de crueldade (se me permitem o clichê).

    Uma trabalhadora explorada do Estado está sendo ameaçada de exoneração por não poder trabalhar. Inclusive, o Estado já entrou com processo contra ela. É secretária de escola e tem vinte anos de serviço. Diversos exames clínicos e laboratoriais constataram que ela tem LER (Lesão por Esforço Repetitivo) no pulso direito, osteoporose e artrite reumatóide, que é uma doença auto-imune e incapacitante. As dores são cruciais e migram de uma parte para outra parte do corpo. Inclusive, por várias vezes já foi parar no Pronto-Socorro, e até chegou a tomar morfina para diminuir as dores. Toma bateladas de remédios para minimizar essas dores, que são agravadas por constantes crises de estresse e de ansiedade. E o Estado quer exonerá-la.

     É sabido que a artrite reumatóide pode provocar danos e lesões em órgãos internos. Órgãos vitais. É uma doença que pode levar à morte. E esta pessoa esta sendo processada pelo Estado por abandono das suas funções, abandono do cargo.

     E a perícia a trata, sempre a tratou, com desprezo e agressividade. Aliás, essa atitude de menosprezo com os periciados já é clássica nos médicos peritos. 

    Apesar dos quilos de exames que constatam a sua doença, e mesmo os médicos peritos sabendo da gravidade dessa doença... Mesmo assim, os médicos peritos – pasmem! – dizem que ela não tem nada e que está apta para trabalhar.

    De tanto tomar remédios, os efeitos colaterais se fazem sentir: começou a perder os cabelos, a inchar o rosto devido à cortisona – que é um dos remédios que a faz sentir menos dores, mas que provoca depressão - a ficar com os dedos das mãos tortos, devido às lesões provocadas pela artrite; com perigo de problemas renais sérios, problemas no coração ou em outros órgãos vitais... E o Estado quer exonerá-la, porque não produz mais, não pode ser mais explorada e de tanto que foi explorada por esse Estado cruel e predador, ficou muito doente, incapacitada para o trabalho, com pouca força de vida, em constante estresse e crises emocionais.

    E tudo o que o Estado quer dar a ela é a exoneração. É uma maneira de matar. O Estado, quando não consegue mais explorar os seus trabalhadores, procura matá-los. Essa morte poderá ser lenta e demorar alguns anos, mas virá. É um assassinato silencioso, que não consta nos Códigos Penais. Mas que acontece diariamente.

    Se esta pessoa que eu citei – e que resguardo o nome – tiver sérios problemas em órgãos internos, o Estado não se importará com isso. Se ela falecer, o Estado apenas se sentirá aliviado.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

CANTIGA D'AMICO


(“...a Renascença tinha tardes assim
quando era abril...”)

"RETRATO EM TRÍPTICO DE VICTORIA EM ABRIL"

(OSSOS DO VENTO - ERNESTO WAYNE)




Sentiam saudades de mim em abril.
Os lunáticos poetas de sacadas e bandolins,
As moças francesas com seu perfume legítimo
E os menestréis, dedilhando minha história
Em devaneios de cravo bem temperado.

Em meu castelo de Victoria havia Van Goghs
E Waynes - famosos por seus trípticos -,
E floretes forjados em Florença
E encapuzados versos algozes do ritmo
Das naturezas-mortas em plena renascença.

Assim, quando era abril, em minhas tardes,
Pensava-me herdeiro de pensares...
Os quadros e os brasões a assinalarem
Passagens de meus pares, que, ao passarem,
Deixavam-me seus sonhos e alardes.

Havia em mim, talvez, um quedo medo;
O medo do talvez imponderável...
Saudade do saudável dormir cedo,
Yoga, mantra, tantra alvorecendo
Nos dias de bom vento.

Então, quando era abril, havia tardes
De casta sobriedade em meus prazeres:
O silencioso cilício da saudade
Vinha buscar sua herança, seus haveres...
E me encontrava só e deserdado,
Sempre tomando o mesmo mate-amargo.
Solidário, fingia-se amigo,
Respeitando meu silêncio de galpão...

Depois, com seu sorriso de mendigo,
Cobrava breve quinhão de minha idade,
Chorava meu chorar, compadecido,
E ia-se comigo.

Era abril, com certeza, e era Florença,
Pois meus Waynes sorriam com descrença
Da calma cor daquelas tardes presas,
Do meu silêncio tenso de represa.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

ALMA GAÚCHA, ALMA CASTELLANA

(foto capturada na Internet).

O Uruguai já ganhou a sua Copa do Mundo. Tudo o que fizer, doravante, será lucro e se perder a semifinal sairá aplaudido, ao contrário do time dos amigos do Dunga que, por sorte, perdeu apenas por 2 a 1 para a Holanda.

     Agora, a mídia futeboleira quer achar um vilão para a previsível derrota e já estão culpando o Felipe Melo. É sempre assim: criou-se o mito de que o Brasil é imbatível no futebol e, quando perde, tem que haver um único culpado. Os midiáticos futebolísticos sobrevivem em sua profissão através desses mitos. Sabem que o povo brasileiro é facilmente influenciável, e, como aqui continua sendo o “país do futuro”, eles querem que o Brasil seja o eterno país do presente apenas no futebol. Fabricaram esse mito e o povo acreditou.

     Pobre povo brasileiro! Favelizado, marginalizado, aculturado, acreditando sempre que poderá acertar na próxima mega-sena, enganado pelos políticos que o manipulam, pagando impostos até pelo ar que respira, pensando que o voto quadrienal é sempre salvador, submisso às mensagens midiáticas, assistindo com fervor religioso cada capítulo da sua novelinha das oito, torcendo pelo fulaninho ou pela fulaninha do BBB, aceitando as esmolas do Sílvio Santos e do Jô Soares, fazendo milagres para que o dinheiro do dia 1º de cada mês dure até o dia 10 – escravizado mental e materialmente pela burguesia que lucra com o seu trabalho e que depois vai passear na Copa do Mundo da África do Sul, enquanto os escravos ficam aqui, acreditando no mito do futebol, torcendo pelos milionários jogadores que formam uma seleção medíocre, que acaba perdendo para outra seleção um pouquinho menos medíocre.

     Alguns dirão: “o povo merece ser enganado, porque é submisso demais.” Nenhum povo merece ser enganado por nenhum motivo. Menos ainda pela sua ingenuidade, o que é o mesmo que enganar crianças. É certo que submissão e ingenuidade podem se transformar em indignidade e subserviência. Mas ainda mais indignos e subservientes são aqueles que manipulam o povo - usando de todas as malícias para torná-lo em massa moldável aos seus interesses -, porque são os servos do capital, promotores da invasão da cultura estrangeira e que excluíram do seu vocabulário a palavra “nacionalismo”, negando o seu sentido.

     O Uruguai recentemente se reergueu, depois de décadas de luta contra os inimigos internos e externos. É um país que tem um povo corajoso e – o que é mais importante – consciente de sua realidade. Ali não se criam mais mitos, recria-se uma nação. Uma nação com verdadeira alma gaúcha, alma castellana. Vale dizer: dignidade e força. Aquele povo muito irmão conserva sempre a cabeça erguida e não vive de ilusões, mas sabe dos seus limites e luta para ultrapassá-los. Ainda resta muito para que isso aconteça, para que a luta diária torne-se revolucionária e provoque uma verdadeira transformação social que irá beneficiar a todos. Mas, a cada passo, cada passo...

     A partida épica contra Gana revelou, mais uma vez, essa alma gaúcha. Não somente pela vitória. Se a seleção uruguaia tivesse perdido aquela partida, não deixaria de ser uma seleção vencedora, porque é composta por lutadores. Igualmente seria aplaudida.

     A força e a consciência de uma nação refletem-se nas atitudes dos seus integrantes. E o Uruguai, assim como outros países da nossa América Latina, tem revelado essa força interna.

     É um exemplo que nós, brasileiros, devemos seguir. Está-se tornando urgente reconstruir a alma brasileira. Mas não através do futebol ou de quaisquer outros mitos. Devemos tratar o esporte como esporte, não como uma guerra de vida ou morte. O Brasil precisa de brasilidade. Nós, brasileiros, precisamos recuperar a nossa identidade que está cada vez mais diluída ante o assédio pernicioso da cultura anglófila. Não só a nossa identidade cultural e social, mas também a nossa identidade como povo latino-americano. Já está durando demais esse vírus maléfico da subcultura estadunidense que faz dos brasileiros bonecos de mola. Precisamos resgatar nossa alma.

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