sexta-feira, 30 de março de 2012

A LUZ DA VERDADE


Está havendo um grande equívoco e muita gente esta caindo nele. O que houve em abril de 1964 foi a derrubada de um governo constitucional, eleito livremente pelo povo. As Forças Armadas, por não concordarem com o governo, o derrubaram através de um golpe militar, sem qualquer apoio popular. Deram a sua versão do golpe, chamando-o de revolução, quando, na verdade, foi uma quartelada contra a qual não houve resistência porque o presidente João Goulart preferiu fugir do país e as forças populares ficaram órfãs de liderança. Os demais líderes políticos da época seguiram o caminho de Jango, fugindo como se fossem culpados, quando a sua única culpa foi a fuga.

     Sabia-se que a IV Frota dos Estados Unidos estava em mares brasileiros para apoiar o golpe, mas até os generais golpistas se surpreenderam com tanta facilidade, quando tomaram o poder. Esperavam resistência, porque Jango era um líder popular que já tinha sido golpeado em 1961, mas conseguira assumir o poder graças à resistência do povo gaúcho, que recebeu a adesão do III Exército.

     Foi um golpe anunciado.

     O governo Goulart defendia a reforma agrária e o nacionalismo, e os militares brasileiros da época eram a favor do domínio dos Estados Unidos nas Américas. Desde 1945, quando derrubaram Getúlio Vargas, percebeu-se uma nítida mudança de rumo na ideologia das Forças Armadas brasileiras. Estas, tinham ajudado as forças aliadas a vencer a guerra na Europa e seus líderes militares voltaram daquela guerra com a “cabeça feita” pelos ideólogos estadunidenses.

     Era época da Guerra Fria e eles acreditavam que o Grande Mal residia na União Soviética e que os Estados Unidos e governos aliados da Europa eram os defensores das forças do Bem. Acreditavam que tudo deveria ser dado para essas forças do Bem, inclusive o território dos seus países e as mentes dos seus habitantes. Sucederam-se os golpes militares na América do Sul e Central.

     Em nome do que os militares chamavam de democracia os governos eleitos democraticamente eram derrubados.; e maior era a opressão quando esses governos eram a favor do povo, como no Brasil, que tinha um governo claramente nacionalista. Os partidos comunistas existiam, mas eram minoria insignificante, que nada pesava no cenário político nacional.

     O grande medo era o nacionalismo.

     Mas foi em nome do combate ao comunismo que, em 1º de abril de 1964 o governo João Goulart foi derrubado. E Jango não era comunista.

     Sucederam-se as perseguições, as torturas e os assassinatos, não somente contra os nacionalistas, mas também contra os socialistas e comunistas, e isso provocou a resistência armada de diversas facções, em sua grande maioria da classe média, sem nenhum contato com o povo ou organizações populares.

     Fundaram-se partidos clandestinos, objetivando a luta armada contra o regime militar e alguns tentaram fazer a revolução urbana, outros a revolução rural, e todos esses grupos foram dizimados, falhos em organização e diminutos em número. Nunca se leu tanto Marx como nos anos ’70 e ’80. O golpe militar dava seus frutos contraditórios.

     No final dos anos 1980 a União Soviética ruía e no Brasil – assim como nos demais países militarizados das Américas – havia uma “abertura política”, porque um regime ditatorial não é bom para os negócios e os grandes empresários que tinham bancado aquela aventura necessitavam abocanhar um crescente mercado de jovens sem rumo.

     Tudo pelo Mercado. O cenário foi armado através de passeatas, shows de músicos da moda, todo o apoio da mesma mídia que apoiara o golpe militar, e a geração pós-revolucionária se viu engajada na “luta pela democracia”, que nada mais era que a volta do voto livre e direto com a certeza de que os eleitos seriam sempre os amigos do poder.

     Anos depois de Sarney, o Obediente, Collor, o deposto pela Globo, Itamar, o magro passivo e Fernando Henrique, que começou a entregar o Brasil para as multinacionais, foi eleito Lula, já manso e obediente, que continuou a política dos presidentes civis anteriores e acelerou a entrega do país. Dilma é Lula de saias, atrapalhada e gritona, talvez por ser atrapalhada. Guarda o trono para o seu grande amigo, enquanto os militares dão gargalhadas nas casernas.

     Mas pararam de rir quando foi instituída a Comissão da Verdade, para apurar as torturas e assassinatos da ditadura. Reclamam em altos brados. “Mas como! O trato não era esse! Vocês podem até votar e eleger os seus corruptos representantes, desde que não toquem no que nós fizemos enquanto éramosos seus incorruptíveis donos. Comissão da Verdade?! Estão brincando?! Olha que nós damos outro golpe...”

    O trato não era esse. A anistia combinada pelos sarneys, tancredos, simons, ulisses e outros menos votados era uma anistia ampla, geral e irrestrita, incluindo os torturadores e assassinos militares. Os anistiados da oposição poderiam sair da cadeia ou voltar para o Brasil – e os que voltaram estavam devidamente aculturados, mansos e quietos, sedentos pela democracia suíça, mas o que fazer? Aqui é Brasil e era necessário dar tempo ao tempo ou tempo à mídia.

     Os tempos mudaram, apesar de Lula, de Dilma e dos demais acumpliciados com o poder fardado e ao poder de farda era dado o Haiti para invadir e as favelas do Rio para fingirem de guerra.

     Estava indo tudo muito bem, e até Copa do Mundo e Olimpíadas teremos para celebrar a paz dos guettos e a vitória da hipocrisia; todos os dias é descoberto um novo(?) corrupto e a imprensa de Dilma diz que este é um governo quase sem inflação e com um PIB gigantesco e todos ficam felizes quando assistem novelas, futebol e BBB, além de outras digestivas cassetas que servem para amainar a triste visão da nudez do Rei (ou da Rainha) quando, súbito!

     Súbito, os massacrados, os torturados de verdade e os assassinados pela ditadura militar saem dos túmulos, esbravejam nas desconhecidas covas onde foram escondidos, gritam, insepultos, nos papéis secretos dos órgãos de inteligência e exigem justiça.

     E os militares se unem novamente e dizem: “Não pode! Justiça não! Aquilo foi uma guerra, onde houveram mortos e feridos de ambas as partes e se nós matamos e ferimos mais é porque estávamos mais bem armados! Silêncio ao silêncio! Quede-se muda a Comissão da Verdade por mais cinquenta ou cem anos, até que todos esqueçam definitivamente aqueles anos que foram de muito chumbo, sim, e daí?”

     Daí que a memória não aceita a mentira. Não foi uma guerra. Foi um período ditatorial de opressão, de torturas e de assassinatos até hoje impunes. Não foi uma revolução, mas um período de retrocesso político; foi a Idade Média do Brasil, onde os suseranos moravam nos Estados Unidos e os vassalos fardados obedeciam as suas ordens.

     Os que resistiram, muitas vezes de armas nas mãos, exerceram um direito e, se hoje temos um governo destinado a passar para a História como subserviente e omisso aos donos do poder mundial, nem todo o povo brasileiro é formado por acomodados zumbis.

     Por isso é necessário que a verdade histórica apareça, até para salvaguardar a honra das Forças Armadas. Urge que os responsáveis pelas três armas reconheçam que naquele momento de loucura da nossa história foram cometidos crimes que não podem ser aceitos como naturais, ou a corrupção moral também aparecerá dentro das Forças Armadas e o povo consciente acreditará que as Forças Armadas da época da ditadura militar são as mesmas Forças Armadas de agora. Só mudaram os chefes. Não se pode ter medo de fantasmas, se realmente são fantasmas; mas pode-se exorcizá-los com a luz da verdade.

sábado, 24 de março de 2012

A CULPA É DA VÍTIMA

(obra  de Portinari)

A culpa é da vítima. Principalmente se a vítima for pobre e desconhecida e tiver o desplante de pedalar em ruas que deveriam ser reservadas apenas para os carros, um símbolo de poder neste Brasil tão aculturado que até programa de culinária é temperado com música estrangeira.

     A nossa cultura deve ficar escondida embaixo do tapete, porque somos brasileirinhos e não brasileiros. De vez em quando alguns vão até a Disneylândia bater o ponto, outros vão ao Canadá aprender inglês ou são assassinados nas ruas européias. Outros, mais brasileirinhos ainda, pensam que o país é de todos e escolhem erguer casebres em lugares de onde serão expulsos a tiros e cacetadas, e depois assistem ao discurso da Grande Mãe que afirma que vai acabar com a miséria no país. Faz parte da nossa cultura ser expulso pela polícia a pauladas.

     A culpa é da vítima. Principalmente se a vítima não concordar com a cultura importada e preferir usar bicicleta nas ruas deste Brasil tão grande. Acreditar que o Brasil é nosso também faz parte da nossa cultura. Nunca aprendemos que o Brasil é, em primeiro lugar, daqueles que tem muito poder e dinheiro. Depois é que vem os outros, em gradual escala decrescente, de acordo com o poder aquisitivo de cada um. Este é um país que vai pra frente.

     Pra frente dos carros, dos ônibus, dos caminhões, de todos os veículos automotores dirigidos por pessoas com licença para matar principalmente pedestres e ciclistas – porque a culpa sempre será da vítima.

     Além dos pedestres – o que já se tornou corriqueiro e nem mais é considerado notícia – a moda agora é matar ciclistas. Ciclocídio no Brasil mambembe.

     Somente neste mês de março de 2012, de acordo com o blog VITÓRIA SUSTENTÁVEL –http://vitoria sustentável.blogspot.com.br – foram atropelados e mortos 50 ciclistas. Remeto o leitor àquele blog para ver a lista.

     Alguns dos assassinados, digo, dos acidentados, foram notícia, como a ciclista Juliane Ingrid Dias, atropelada por um ônibus, em São Paulo, a jornalista Márcia Shoo, que fazia uma trilha em Maceió e foi atropelada por um caminhão, ou o servente de pedreiro Misael Severino dos Santos, atropelado por um Chevette na região metropolitana do Recife, PE.

     Mas o mais famoso acidente foi o que envolveu Thor Batista, filho do milionário Eike Batista e que resultou na morte do ajudante de caminhão Wanderson Pereira dos Santos, de 30 anos.

     Thor afirma que a culpa é da vítima.

     A escritora catarinense Urda Alice Klueger, autora de diversos livros, em um trecho de sua recente matéria intitulada “MORREU NA CONTRAMÃO ATRAPALHANDO O TRÁFEGO”, escreve:

     “A verdade que se tenta encobrir com as versões de Eike e a omissão de seu até aqui mudo filho mais velho, visa resultar na transformação do ajudante de caminhoneiro de vítima fatal em principal culpado de sua própria morte. Uma manobra com requintes de crueldade. Com a mesma determinação demonstrada por Thor e os dois homens que o acompanhavam no carro de, até aqui, não abrir a boca sobre o que de fato aconteceu, Eike aninhou-se no twitter para pilotar pessoalmente a sua versão sobre o fato. Ele já determinou que o ciclista foi colhido quando pedalava pela segunda pista, a de ultrapassagem, em lugar do acostamento, como sustenta a família. Também disse que, apesar da falta de confirmação da perícia, ela foi sim feita pela polícia, apesar de o carrão ter sido liberado logo após a morte de Wanderson."

     E começa a sua matéria dizendo:

     “A sabedoria popular já traçou o desfecho do caso: "não vai dar em nada, vai ficar tudo por isso mesmo”."

     Óbvio. Qual o juiz que vai condenar o filho de Eike Batista?

     Eu moro em uma cidade onde não existem ciclovias, as calçadas são estreitas e os motoristas, ao mais das vezes, não são confiáveis. Dia desses, ouvi um motorista indignado dizer que os canteiros deveriam ser retirados para que as ruas sejam aumentadas. Já começaram a cortar as árvores. Em vez de árvores, agora temos florzinhas nos canteiros. O governo municipal chama isso de “revitalização”. Valentim Casali, ex-vereador, ano passado, amarrou-se com correntes em uma das poucas árvores restantes para evitar que fosse derrubada. Esta é uma cidade muito perigosa. O governo daqui é motorizado.

     Ainda sobre o acidente que matou Wandersson, Urda diz, no seu artigo:

     “Sua vida era, como a de tantos, uma repetição. Em muito parecida com a descrita por Chico Buarque em Construção, de 1971. Wanderson devia atravessar “a rua com seu passo tímido” e agradecer a Deus por lhe deixar “respirar”, por lhe deixar “existir”. Sabe-se que era humilde, respeitador das regras sociais, atento à família. No mesmo paralelo do operário que “ergueu no patamar quatro paredes sólidas”, ele também vivia do trabalho braçal, trocando pesados pneus, sujando-se de graxa e poeira. Como o personagem de 41 anos atrás, agora mais que presente, também Wanderson “morreu na contramão atrapalhando o sábado”. O sábado da elite. Thor teria ao chegar o desfrute de uma festa que estava sendo dada por seu irmão Olin, para 150 pessoas.”

     É muito perigoso atrapalhar o tráfego, o trânsito e até o tráfico. Principalmente se você for pedestre ou ciclista. Nos sábados à noite nem pensar! As pessoas tem o hábito de correr nesses dias. Geralmente embriagadas ou sob o efeito de outra droga. Mas estamos no Brasil, onde drogar-se é uma questão de status. A própria presidente do país está inclinada a transgredir o Estatuto do Torcedor e orientar a sua base no Congresso para que vote a Lei da Copa liberando bebidas alcoólicas dentro dos estádios durante os jogos da Copa do Mundo. Tudo para agradar e obedecer a FIFA, que estará mandando no Brasil naquele período de festividades, em 2014.

     Imaginem os torcedores adeptos desse tipo de droga, depois dos jogos, devidamente embriagados, saindo nos seus carros e atropelando pedestres e ciclistas. A culpa sempre será das vítimas.

     Esta é a terra do crescimento acelerado, onde tudo pode ser feito, desde que dê lucro. Por isso estão desmatando a torto e a direito e destruindo o Parque Indígena do Xingu, uma das maiores reservas ambientais do mundo que está sendo ameaçada de extinção pela construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. A usina destruirá inúmeras espécies animais e vegetais e desalojará os indígenas das suas terras. Mas, segundo Dilma e seus assessores ávidos por desenvolvimento acelerado, cada vez mais acelerado ao ponto de atropelar o que estiver pela frente, os índios, os animais e as plantas que saiam de lá. A culpa é da vítima.

quarta-feira, 21 de março de 2012

O ESTELIONATO ELEITORAL E O MEDO


Vinte e nove votos a zero foi o resultado da votação do reajuste do magistério do Rio Grande do Sul proposto pelo governo do estado e referendado pela sua base aliada na Assembléia Legislativa, no dia 20 de março. A proposta aprovada prevê reajuste de 23,5% parcelado até fevereiro de 2013. O Rio Grande do Sul paga o pior salário do país aos professores – em torno de R$800,00 por uma jornada de 40 horas semanais.

     O reajuste proposto e aprovado pelo governo do estado – porque os deputados da oposição se retiraram na hora da votação - fica bem abaixo do piso nacional de R$1.451,00. Uma das bandeiras da campanha do governador Tarso Genro (PT) foi o reajuste salarial dos professores de acordo com o piso nacional. No mínimo. Agora, os professores estão chamando Tarso de estelionatário eleitoral, porque, além de não cumprir com a sua promessa, repete a política de tantos outros governadores que o povo gaúcho esperançoso tem eleito e com os quais tem sofrido.

     Os professores gaúchos estão muito surpresos com o governador. Em sua grande maioria votaram em Tarso, devido às suas promessas de campanha e também nele votaram porque é do PT – muitos ainda acreditando que o PT é um partido a favor do povo e dos trabalhadores. Outros, acreditando que votar no PT seria a única alternativa possível, uma vez que a oposição formal àquele partido é composta por partidos de extrema-direita.

     E assim tem sido, não só no Rio Grande do Sul como em todo o Brasil. Ao povo o PT é apresentado como um partido salvacionista, ao qual é necessário referendar nas urnas, caso contrário a extrema-direita tomará o poder e novamente e tudo o que foi conseguido desde a campanha das Diretas Já irá por água abaixo.

     É uma chantagem política que coloca as pessoas de boa vontade no paredão da confiança cega.

     O resultado dessa cegueira está sendo visto todos os dias. Mensalões e mensalinhos, acusações de corrupção em muitos ministérios, que respingam no vestido imaculado de Dilma Roussef, certeza de impunidade dos grandes ladrões da República, um governo aliado com todos os partidos que desejarem apoiá-lo, sem ideologia, desejando o poder pelo poder e nada mais, sem um projeto para o Brasil, apenas a velha demagogia; um governo aliado do latifúndio, para o qual faz leis como o novo Código Florestal; um governo aliado das grandes empresas, às quais auxilia de todas as maneiras; um governo aliado estratégico dos Estados Unidos, ao qual serve como vassalo; um governo que se mostra cada vez mais hipócrita em relação ao povo que o elegeu.

     E – o mais grave - um governo que promove a alienação, para que a inconsciência do povo lhe dê os votos que necessita para se perpetuar no poder.

     O descaso com as pessoas é gigantesco. O SUS é uma vergonha, a educação depende dos abnegados, e sem educação e saúde não existe um povo, mas um rebanho pronto para o abate, o que acontece a cada dois anos, quando, em fila, as pessoas são obrigadas a votar através de uma estranha máquina eletrônica chamada de urna, que só existe no Brasil, Costa Rica, Honduras e Equador – de acordo com o site http://www.fraudeurnaseletronicas.com.br/.

     E, em fila as pessoas votam no PT, que descobriu que um povo inconsciente e alienado pode ser facilmente manipulado. Pior que isso: as pessoas não só votam no PT – na ilusão de melhores salários – como acreditam que o sistema de democracia representativa é o melhor. Aliás, não acreditam, porque não raciocinam – aceitam. Tem medo de novas possibilidades. Medo de ir além de lutas classistas. Medo de tentar uma reforma geral do Estado.

     Quando ocorre uma traição – e tem havido tantas!... – os interessados gritam bem alto: Traidores!! E depois voltam para casa. Passam-se os meses, os anos, há uma nova eleição e as mesmas pessoas que gritaram contra a traição elegem os mesmos traidores, porque não vêem outra possibilidade. Ou por medo de tentar a verdadeira mudança.

sábado, 17 de março de 2012

SEU CHICO E OS SONHOS


Acordei de manhã cedo e fui até a praça para ouvir os passarinhos. Encontrei o seu Chico no seu banco favorito, chimarreando. Parecia distante, divagando. Cheguei perto e cumprimentei. Abriu-se em um sorriso.

     - Até parece assombração, aparecendo de repente – falou. – Mas senta e vamos matear. Que bicho te mordeu para levantar da cama a estas horas?

     - Dormi cedo, seu Chico, foi só isso. Acordei e resolvi dar uma caminhada. Mas aceito um mate.

     - E eu, o que me tirou da cama foram os sonhos.

     - Que sonhos, seu Chico?

     - Tive uns sonhos estranhos. Acordei, me vesti, fiz um mate e resolvi consultar as árvores a respeito. O senhor sabe que as árvores são sábias – embora existam aqueles que gostam de árvore só pra fazer celulose. Gente má, que maltrata a natureza para enriquecer. Estamos aqui para aprender, mas a maioria só pensa em usar os outros para ganhar dinheiro.

     - Lá isso é verdade, seu Chico. Este mundo está cada vez mais materialista, deixando as pessoas enlouquecidas, principalmente os ingênuos, que acabam acreditando que ter cada vez mais e mais é a única e principal razão da existência.

     - Pois veja o senhor: antes eu pensava que eram só os mais pobres e menos instruídos que alimentavam essa ânsia. No entanto, eles tem razão, passam necessidade, são explorados a vida inteira. Mas agora eu tenho visto gente com dinheiro sobrando e que não pecisaria se deixar envolver por essa volúpia diabólica, “correndo atrás” o dia inteiro – como eles dizem. E correndo atrás do quê? De mais dinheiro, de mais posses, de mais bens materiais. E fazendo isso por quê? – o senhor há de me perguntar. E eu lhe respondo que é por competição. Enfiaram na cabeça dessa gente que a vida é um jogo e os transformaram em aleijados mentais que só pensam em suplantar o mais próximo.

     - Mas não são todos, seu Chico, não são todos...

     - Concordo com o senhor, não são todos. Calculo que só noventa por cento, por enquanto. Temo que as próximas gerações completem os dez por cento que restam. Os que forem exceção serão considerados loucos. Os que sonham, como eu. Os que sonham nos dois sentidos.

     - Mas me conte esses sonhos, seu Chico, se não for pedir demasiado.

     - Os sonhos da noite ou os sonhos do dia?

     - Os da noite, porque os do dia eu imagino quais sejam.

     - Esta noite eu tive três sonhos estranhos e vim me aconselhar com as árvores, e quem sabe foram elas que trouxeram o senhor aqui para eu trocar uma ideia a respeito? Vou contar o primeiro e quero a sua opinião: "Sem perceber, faço a minha cama em cima de uma toca de cobras. Uma delas me morde, mas não é venenosa." O que o senhor acha? Traição?

     - Mais que traição, talvez confiança demasiada em alguém, seu Chico. E, apesar de não ter sido picada de cobra venenosa, cobra é sempre cobra.

     - Foi o que eu pensei. Às vezes eu confio nas pessoas erradas para algum assunto mais sério... Deve ter sido isso. E, como o senhor diz, picada de cobra é sempre picada de cobra, mesmo que não pareça venenosa.

     - Alguma coisa que eu possa auxiliar, seu Chico?

     - Nada que a vida não resolva com o passar dos dias, não se preocupe. É um alerta para que eu tome mais cuidado, esteja mais atento. É uma tristeza isso de ter que estar atento com as pessoas, confiar desconfiando... Viver está virando uma arte, o mundo está ficando muito árido.

     - Tem cobra pra tudo que é lado, seu Chico. Antigamente, e não muito antigamente, era na base do fio de bigode, do olho no olho, do respeito. Mas me conte os outros sonhos.

     - Pois o segundo sonho – e tudo nesta noite passada, veja só... O segundo sonho foi ainda mais estranho, embora eu creia que se relacione com o primeiro: "É uma noite muito escura. Estou pescando com meu pai em um poço muito fundo. Parece um poço artesiano. Pescamos peixes pequenos. Um deles me morde na mão e depois se transforma em morcego."

     - Pescando num poço, seu Chico?

     - Estranho, não é? Em outras épocas um lagoão pequeno era apelidado de “poço” pelo pescador. Mas, no sonho, era um poço mesmo. Fundo, escuro como a noite, e o meu pai – que saudade que me deu do meu velho pai quando acordei! – estava junto comigo. No sonho, é ele que me atende depois que o peixe-morcego me morde.

     - E esse sonho foi depois do sonho da cobra?

     - Foi depois, quase em seguida.

     - Então tem relação mesmo, seu Chico. E estou tentado a lhe dizer que, apesar das mordidas traiçoeiras, o senhor está sendo bem assistido pelo mundo espiritual. Provavelmente o seu pai esteja junto ao senhor e o proteja nessas horas amargas que ocorrem na vida de cada um de nós.

     - Quem diria, não é? Com a minha mãe eu sonho volta e meia, como se estivesse sempre com ela. Mas com o meu pai deve ter sido a primeira ou segunda vez desde o seu falecimento – e olhe que já são passados mais de dez anos! Foi ele quem me ensinou a pescar, e como eram boas aquelas pescarias! Quando eu era bem guri, ficava encarregado, durante a tarde, de tirar os lambaris que serviriam de isca para a pescaria dos mais velhos, de noite. Lembro que certa vez, em um lugar onde o pesqueiro era muito fundo, o meu pai me amarrou com uma corda comprida, prendendo uma das pontas em uma árvore e a outra na minha cintura, com medo de que eu caísse no rio, no afã de pescar os lambaris. Só depois de bem crescido é que fui iniciado nos mistérios de pescador de linha. Mas o senhor deve estar desejoso de ouvir o meu terceiro sonho – e o mais curioso. Desta vez não tem mordida de bicho ou coisa parecida.

     - Mesmo que tivesse, seu Chico. Os seus sonhos são muito interessantes. Eu raramente lembro dos meus. Às vezes, quando acordo, chego a pensar que não sonhei.

     - Pois eu li em algum lugar que todos nós sonhamos, basta dormir. Alguns, como eu, acostumam a prestar atenção e a lembrar dos sonhos. Mais que isso: a dar valor aos sonhos. Eu deixo um caderno na mesa de cabeceira só pra anotar os meus sonhos. Mas aí vai o terceiro sonho:

     “Estou em um lugar onde foi construída uma igreja em estilo moderno, mas foi repudiada pelo povo, devido às suas linhas heterodoxas. Ouço um engenheiro falando. Ele se prontifica com outras pessoas a destruir a igreja e a construir no mesmo lugar uma igreja em estilo antigo. Ao fim do dia eu olho de uma janela e vejo a nova igreja construída. É feia, mas agradável aos olhos do povo.”

     - Esse é difícil de interpretar, seu Chico. Deve se relacionar com a ideia de novo e de antigo; com aquilo que é conhecido e confiável e aquilo que é desconhecido e provoca suspeitas. O mais interessante, pra mim, é que o senhor ouviu a conversa e depois, no fim do dia, a igreja nova já tinha sido destruída e no seu lugar tinham construído uma igreja em estilo antigo.

     - Tenho pensado muito nesse sonho, desde que acordei, e por isso vim até aqui para me aconselhar com as árvores. Os outros dois sonhos, como o senhor percebeu, tem um simbolismo mais claro, mas esse...

     - Está mais parecido com o do poço escuro e fundo, seu Chico.

     - Pois é. Pescador não deve pescar em águas turvas; muito menos em poço escuro. Às vezes, querendo um resultado imediato a gente se atira no desconhecido. E acaba sendo mordido. Mas o sonho da igreja, ou das igrejas, pode ter várias interpretações.

     - É um sonho no qual o senhor apenas ouve e assiste, seu Chico. Não pode fazer nada a respeito. Os agentes são outros: o engenheiro que se prontifica a destruir a igreja nova e construir outra igreja no mesmo lugar, as pessoas que contrataram o engenheiro que, pela sua narração, o senhor não identificou e o povo descontente com a igreja anterior, que era nova demais para a sua compreensão.

     - Pois é aí que mora a coruja! O povo descontente! O senhor sabe que o povo, quando mal orientado, é a parcela mais reacionária da sociedade. Tem medo do novo e se ampara naquilo que já é conhecido e que considera seguro. Como um jovem assustado com a vida e que prefere morar na casa dos pais a procurar novos horizontes.

     - Ou como um velho que segue a mesma rotina, todos os dias, para não perder as referências conhecidas, até o momento em que não procura mais novidades e se conforma com a mesquinhez da sua vida.

     - Um povo assim é um povo morto – o senhor há de convir.

     - Sem dúvida, seu Chico. Morto porque não deseja mais do que aquilo que lhe é oferecido. Acostuma-se a apenas aceitar, aceitar, sem perceber que ele, o povo, é a grande maioria e deve ser o agente das transformações sociais, e não uma grande massa ausente e tutelada.

     - Pois eu me lembro que tivemos um povo consciente antes de abril de 1964. Um povo que estava fazendo as reformas de base, a reforma agrária, o método de educação de Paulo Freire era aplicado nas escolas – e Paulo Freire era o ministro da Educação de João Goulart.

     - Quanta diferença para os ministros de hoje em dia, seu Chico. O senhor conhece algum que seja minimamente inteligente ou corajosamente revolucionário?

     - Eu conheço vários que já deixaram o governo por suspeita de máxima corrupção e os que ficaram são cordeiros mansos que só desejam os lucros do cargo.

     - Esta não é exatamente uma igreja nova, não é seu Chico?

     - Longe disso! Esta é uma igreja estilo República Velha, com direito às mesmas corrupções e troca de cargos. No máximo, uma pintura para esconder a fachada carcomida. A igreja nova eles destruíram em um dia, no Dia dos Bobos, e ainda disseram que o povo é que estava descontente. Foi a grande mentira do dia.

     - E essa grande mentira continua até hoje, seu Chico. Será que o engenheiro que o senhor viu no sonho - aquele que se prontificou a destruir a igreja nova e a construir, no mesmo dia, uma igreja em estilo antigo – não estava fardado?

     - Não deu pra perceber. Mas hoje não faria a menor diferença.

     - Já tivemos um Brasil, seu Chico.

     - Que está sendo vendido aos poucos. Também já tivemos um povo lutador.

     - Que hoje luta nos campos de futebol. E como luta!

     - E dança muito no carnaval.

     - Se dança, seu Chico! Dança todos os dias.

     - E cada vez dança mais!

quarta-feira, 14 de março de 2012

HARRY E A FRAGATA BRASILEIRA



O príncipe Harry esteve no Rio de Janeiro – o Brasil dos cartões postais – provocando uma grande comoção naquele povo que adora príncipes e princesas e famílias reais e tudo o que se relacione com nobreza, a tal ponto que dá a impressão que tem grande trauma desde que expulsou (ou nada fez contra a expulsão) Dom Pedro II. Cariocas, paulistas e mineiros não queriam exatamente uma república, mas o que fazer contra os generais que desejavam governar?

     Ainda teremos de volta a realeza com um sistema parlamentar de governo. Tudo indica. O sistema parlamentar evita golpes de estado e a realeza dá ao povo uma sensação de segurança, como se estivesse sendo protegido lá de cima, por pessoas escolhidas por Deus. Substituiremos Pelé por um rei de verdade e Xuxa por uma rainha que não será apenas dos baixinhos. Todos ficarão felizes. Haverá uma imprensa especializada para cobrir somente as atividades da família real. Imaginem manchetes como: “A PRINCESA SILVA BRAGANÇA MACHUCOU O JOELHO, MAS PASSA BEM”, “O REI LEVANTOU ÀS DEZ HORAS E DISSE QUE O POVO BRASILEIRO É MUITO BOM”, “A RAINHA DONA QUITÉRIA ACOMPANHA O BBB”. Coisas assim. E o povo comentando nas ruas:
     - Você sabia que dizem que o Príncipe Silva é gay?
     - Não diga!
    - Digo, mas vai casar para resguardar as aparências.
     - Ainda bem!

     Mas eu estava escrevendo sobre o príncipe Harry, aquele da Inglaterra, filho da ex-princesa Diana (e, por isso, temos tantas Daianas e Daianes por aqui). Esteve no Rio de Janeiro, a capital do petróleo, praticou alguns esportes à vista do embasbacado povo, foi até uma favela onde ouviu os tiros tradicionais, concedeu entrevistas aos repórteres ansiosos, deixou-se fotografar com pessoas muito felizes e foi embora.

     Foi uma visita pequena. Enquanto isso, o seu irmão, William, estava nas Malvinas. Com uniforme de conquistador, segundo Cristina Kirchner, que não se deixa dominar tão facilmente como Dilma Silva Roussef. As Malvinas são argentinas, todos sabem. Mas os ingleses e seus amigos insistem que são inglesas e as chamam de Falklands. Na região das Malvinas tem petróleo, muito petróleo, e os ingleses não estão ali, com navios de todo tipo e soldados apenas para garantir a conquista de rochedos. Além do petróleo é uma região estratégica, pertinho da Patagônia e a um passo da Antártica, onde existem tantos minerais cobiçados pelos bem armados ingleses e aliados.

     Quando da Guerra das Malvinas, em 1982, a Inglaterra obteve o apoio da ONU e do seu exército, a OTAN, através dos Estados Unidos. Foram usadas as armas mais poderosas da época, assim como os mísseis Stinger e Exocet, além de submarinos nucleares, navios de guerra e porta-aviões – ingleses e estadunidenses – contra uma obsoleta frota de guerra argentina. O principal crime de guerra dos ingleses foi o afundamento do General Belgrano, navio com marinheiros recrutas que estava fora da área de exclusão marítima. 323 soldados morreram, na ocasião - a metade dos mortos argentinos durante a guerra, que durou pouco mais de dois meses.

     Harry estava no Brasil, brincando de promover as Olimpíadas de Londres, William está nas Malvinas, tentando promover a raiva dos argentinos e o Brasil... O Brasil estava e está no Mediterrâneo. O Brasil está onde está a sua bandeira e temos uma fragata brasileira no Mediterrâneo, pertinho do Líbano, liderando uma missão de paz da ONU. Desde novembro de 2011. O custo dessa brincadeira está estimado em cerca de R$130 milhões.

     A fragata União (F-45) está equipada para guerra. Ficará oito meses em águas internacionais, com cerca de 300 militares a bordo. Sua missão é liderar uma frota composta por embarcações da Alemanha, Grécia, Turquia, Indonésia e Bangladesh. O objetivo é patrulhar as águas libanesas, participando da UNIFIL-FTM (Força Interina das Nações Unidas no Líbano – Força Tarefa Marítima).

     Essa Força Tarefa substitui, desde outubro de 2006, o bloqueio naval imposto por Israel ao Líbano. No dia 25, assume o comando da UNIFIL o contra-almirante Wagner Lopes de Moraes Zamith. Em abril, parte a fragata Liberal, com 270 homens a bordo.

     O Líbano é um pequeno país do Oriente Médio que faz fronteira com Jordânia, Iraque, Síria e Israel. É a terra dos antigos fenícios. Quanto aos países fronteiriços do Líbano, a Jordânia é um país aliado do ocidente, O Iraque é um país dominado, a Síria é um país em guerra civil e Israel é a cabeça de ponte dos Estados Unidos e da Europa na região.

     O Líbano já foi alvo de invasão dos Estados Unidos e de Israel e, desde 2007, é governado pelo general Michel Suleiman, amigo dos antigos e novos invasores. No entanto, o povo libanês, através do satanizado Hezbollah, não aceita essa situação de país colonizado e vez por outra reage. Mesmo cercado, resta a via marítima para receber socorro. E agora o Brasil apóia o cerco ao Líbano, através de suas fragatas liderando uma força tarefa da ONU.

     A desculpa encontrada pelo Governo Dilma para essa absurda “missão de paz” é provar que o Brasil é um bom aliado, pau pra toda obra, que, em troca dos bons serviços prestados poderá receber uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.

     Para isso já conta com o apoio explícito de David Cameron, primeiro-ministro da Inglaterra. E, se conta com o apoio da Inglaterra, o apoio dos Estados Unidos está implícito. Os dois países são irmãos gêmeos. O Brasil de Dilma & Cia. pretende ser o irmão mais moço.

     E cada vez mais o Brasil se ‘desplega’, se afasta dos demais países latino-americanos – que já consideram o Brasil um país imperialista - e se aproxima dos Estados Unidos e da Europa. Cada vez mais se mostra servil e dócil aos interesses daqueles que mandam através das armas.

sexta-feira, 9 de março de 2012

A VIAGEM DE DIONÍSIA



Dionísia Rosa da Silva, 77 anos, brasileira. Ficou três dias presa em uma cela do aeroporto de Barajas, na Espanha. Foi deportada e voltou para o Brasil no dia 8 de março. Talvez tenha recebido flores pelo Dia Internacional da Mulher. O consulado do Brasil em Madri não fez nada por Dionísia, durante todo o período em que ela esteve presa e abandonada no aeroporto. A embaixada brasileira na Espanha não fez nada por Dionísia; o Itamaraty não fez nada por Dionísia. Dilma nem falou em Dionísia.

     Até agora, o que se sabe é que Dionísia passou fome, não teve acesso às suas malas e, por isso, não conseguiu tomar banho e sofreu maus tratos.

     “Tão ruim quanto à precariedade da cela foi o tratamento que ela recebeu no aeroporto de Barajas, em Madri. “Os outros só rindo. Rindo porque a gente tá preso. Eu dizia: ‘eu tenho que sair daqui, eu tenho que pegar minha neta’. E eles só riam”, diz.” (g1.globo.com).

     Mas Dionísia é apenas Dionísia da Silva. Não é ministra, não é secretária, não é senadora, não é deputada, não é governadora, não é prefeita, não é vereadora. Não é nem mesmo uma socialite deslumbrada. Dionísia não foi miss ou atleta conhecida. Dionísia é mais uma brasileira aposentada. Só.

     “Nos últimos dias eu vivi mal, fiquei chateada demais, só chorava, presa, comida ruim demais, cama de arame, sentava em uma bancada só de madeira. Cela mesmo. Cadeia”. (g1.globo.com).

     E o Governo brasileiro não fez nada a respeito. O grande crime de Dionísia foi desejar visitar a filha, que mora na Espanha, em situação irregular. Foi presa por isso. Depois foi deportada de volta. Passou três dias na cadeia. E o Governo brasileiro não fez nada, apenas constatou o fato.

     Pequena entrevista da Folha.com com Dionísia.

“Folha - Como foi a detenção?

”Dionísia Rosa da Silva - Eu cheguei com a minha neta e três malas. Tinha 70 euros e a passagem de volta. O policial me pediu para sair da fila. Falei: "Justo eu, com essa idade?".

“E o que aconteceu?

”Ele me disse: "Fica ali". Comecei a reclamar para minha neta, o policial viu eu falando e disse que ia me algemar. Falei pra ele: "Não vai fazer isso".

“Os policiais a maltrataram?

”Não. Mas fiquei presa na cadeia, naquela casa, com mais gente, sem ninguém... Uma cama ruim. A comida era meio em mutirão, sem sal... Eu emagreci.

“Tomou banho?

”Eles ficaram com a minha mala, fiquei só com a roupa do corpo até hoje. Banho, só sem sabonete.

“O que a sra. acha do que lhe fizeram?

”Uma cachorrada. Isso não é tratamento que se faça com a gente. Eu tinha ido ver meus netos, estava com a passagem de ida e volta [R$ 2.900 foi o preço da passagem dela e da filha, pago à vista, disse].

“A sra. passou mal lá?

”Meu nariz sangrou e tive dor nas costas. Me levaram para o médico, mediram minha pressão.

“A sra fala espanhol?

”Não.

“Como conseguiu conversar com os policiais?

”A gente entende, né... Dá uma de "joão sem braço".

“E como dormia lá?

”Tinha uns dormitórios, cada um com quatro beliches. Fiquei em um desses. Mas o colchão era velho, afundava.

“Pretende voltar à Espanha?

”Nunca mais. Vou ficar aqui até morrer.”

     E logo será esquecida até morrer.

     “O Itamaraty garante que, apesar da retenção por três dias no aeroporto, não houve maus tratos e que o governo espanhol estava apenas seguindo suas exigências de admissibilidade. "Mas é isso que pode acontecer quando se adotam regras sem flexibilidade. Essas injustiças acontecem. E poderão acontecer quando o Brasil passar a adotar a reciprocidade com a Espanha", comentou um diplomata.” (brasil247.com).

     E mais que isso o Itamaraty não fez. Reciprocidade? Vão prender alguma idosa espanhola na cadeia de algum aeroporto brasileiro? “Retenção” por três dias não é igual a maus tratos?

     Por falta de ideias, a ideologia do Governo é o feminismo. Todas as mulheres da Presidente estão sendo nomeadas para cargos especiais. Fica implícito que lá no Planalto presentear mulheres com cargos importantes é sinônimo de vanguardismo - mulheres fiéis ao Governo, mulheres que já tem algum status. Emoldurados quadros partidários.

     Não é um governo que se preocupe com mulheres comuns. As mulheres que a Dilma privilegia pertencem todas ao mesmo clube.

     Então, porque se preocupar com uma Dionísia da Silva qualquer? Logo será esquecida. Ela só queria viajar.

quinta-feira, 8 de março de 2012

8 DE MARÇO - DIA DE LUTA




No Dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como, redução na carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho.

     A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas, num ato totalmente desumano.

     Porém, somente no ano de 1910, durante uma conferência na Dinamarca, ficou decidido que o 8 de março passaria a ser o "Dia Internacional da Mulher", em homenagem as mulheres que morreram na fábrica em 1857. Mas somente no ano de 1975, através de um decreto, a data foi oficializada pela ONU (Organização das Nações Unidas).

     Comemorar a data é comemorar a luta daquelas que são espoliadas em seus direitos. Mais que isso. É lembrar os trabalhadores do mundo inteiro, homens e mulheres, que se indignam contra o sistema de exploração a que são submetidos, mas não se intimidam, não desistem, não se acomodam e tem na mão fechada estendida para o alto uma flor simbolizando a esperança na transformação.

     Acredito que o Manifesto da Via Campesina sobre o Dia Internacional da Mulher – que traduzi e coloquei abaixo – vem a propósito.


     “O 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, dia em que comemoramos e honramos a memória das muitas mulheres trabalhadoras do campo e da cidade que tem entregado as suas vidas na luta pelos seus direitos, pela justiça e para por um fim à discriminação e às desigualdades sociais, políticas e econômicas que sustentam o desenvolvimento do capitalismo a nível mundial é também um dia de celebração pelos importantes avanços alcançados nas lutas emancipadoras das mulheres.

     “O 8 de Março é dia de mobilização e de reafirmação do compromisso irrestrito de não descansar na luta para acabar com este sistema capitalista e patriarcal que oprime mais fortemente às mulheres em todas as esferas da sociedade e em qualquer lugar do planeta. Esta luta gigantesca nos obriga, mulheres e homens da Via Campesina, a pensar com urgência na mudança para um sistema ao qual aspiramos, e no tipo de sociedade que queremos construir com novas relações sociais e de poder, onde as mulheres e os homens tenham iguais oportunidades, direitos e deveres.

     “Saudamos a Jornada Internacional e Ação e Luta que realizam neste dia as Mulheres da Via Campesina no mundo, cujo propósito é denunciar o avanço do capitalismo na agricultura através do capital transnacional, denunciando o modelo destrutivo do agronegócio que ameaçanão só a soberania alimentar dos povos, senão também o meio ambiente que atenta diretamente contra a realidade e a vida das mulheres.

     “Neste sentido, desde a Via Campesina reiteramos como condição essencial elevar o nível de consciência de todas e todos, valorizando o grande protagonismo e a importância que tem a participação das mulheres na agricultura camponesa, conservando os conhecimentos ancestrais e cuidando das sementes, garantindo a Biodiversidade e a Soberania Alimentar dos povos. É lamentável que as mulheres rurais, que produzem 80% dos alimentos no mundo, sejam proprietárias de somente 20% das terras.

     “Portanto, como Via Campesina lutaremos conjuntamente, homens e mulheres, para denunciar as condutas machistas, a nível político e econômico, de uma sociedade capitalista e patriarcal como a que hoje impera no mundo. Nos mobilizaremos contra a ofensiva das corporações transnacionais que se utilizam de nossos territórios, de nossos conhecimentos e de nosso trabalho, e construiremos uma sociedade baseada na igualdade e na justiça.

     “Nossos objetivos conjuntos são a Reforma Agrária Integral, acabar com oo monopólios de terra e garantir justiça social, para que sirvam de base para a consolidação da soberania alimentar e ambiental, e acabar com a violência contra as mulheres. Por um projeto de agricultura baseado na agroecologia, pela defesa da terra, da água, das sementes e contra a mercantilização da vida.

     “A Via Campesina diz Basta de Violência contra as mulheres!

     "Mulheres em luta contra o Agronegócio, os Agrotóxicos e em defesa da Soberania Alimentar, Ambiental, a Saúde e a Soberania das Mulheres!

     “Globalizemos a Luta, Globalizemos a Esperança!”

terça-feira, 6 de março de 2012

A SOBERANIA A CABRESTO





Dilma foi a Hannover, esbravejando contra a guerra cambial e, depois de uma conversa com a Ângela Merkel, voltou dizendo que o Brasil vai emprestar dinheiro ao FMI para ajudar os coitados dos países europeus.

     E fazer lastro para o caso de uma não tão distante necessidade de apelar para o FMI. Afinal, o PIB está crescendo pouco, a inflação está mascarada e quando houver uma grande recessão atingirá todos os países globalizados economicamente. E o Brasil é um deles.

     A nossa economia cumpre o papel que, desde abril de 1964, lhe foi atribuída: a de celeiro mundial. É a economia do cabresto, também conhecida como economia de exportação.

   Plantamos para exportar, desmatamos para exportar. No tempo da ditadura fardada, o governo militar lançou um slogan: “Plante Que O Governo Garante”. E os mercadores formaram as suas empresas e se atiraram a desmatar, a expulsar indígenas das suas reservas, a devastar as florestas para aumentar os campos agricultáveis e a plantar, plantar, plantar de tudo, porque tudo o que plantassem era subsidiado pelo Governo.

     Foi a época do chamado “milagre econômico”, quando as ferrovias foram abandonadas e dezenas de estradas foram abertas para que os caminhões das recém instaladas multinacionais de veículos automotores pudessem transitar livremente para escoar a produção. Para eles – Europa, Estados Unidos, Canadá e demais países interessados. Quando perguntaram a um daqueles generais de plantão quando o dinheiro do “milagre” seria repartido com o povo brasileiro, respondeu que o Governo estava esperando o bolo crescer para repartir.

     Também foi a época em que milhares de pessoas foram expulsas do campo e aumentaram as favelas nas grandes e pequenas cidades brasileiras. E surgiram os movimentos dos sem terra e sem teto, sempre reprimidos pela atenta polícia dos fazendeiros e empresários, aliados do Governo.

     Os operários começaram a reivindicar aumentos, porque as grandes empresas, principalmente as metalúrgicas, estavam enriquecendo rapidamente. Formaram-se sindicatos; surgiram protestos e greves, líderes sindicais apareceram para pacificar os mais revoltados e fazer os necessários pactos com os empresários. Era o momento da “abertura política” – uma metáfora utilizada pela mídia para tentar convencer o povo de que eleições e presidentes civis fariam a grande diferença. Fez-se uma nova Constituição. Grandes discursos falaram em estado de direito. A classe média saiu às ruas, pensando que fazia História e, depois, voltou para assistir as novelas.

     E a política continuou a mesma. Um pouco pior, concordo, mas isso porque agora podemos ver quem rouba e quanto rouba. O Brasil continuou um país agrícola e exportador, os operários foram amansados, os líderes sindicais foram para o Governo pactuar com os empresários e latifundiários e foi dado um salário mensal aos mais pobres. A miséria aumentou e foi marginalizada pelas tropas de assalto e maquiada pela mídia amestrada.

     Importamos tudo do exterior, menos tecnologia. Este é um país que exporta insumos para importar produtos eletrônicos, carros e tudo o mais que for necessário. Também importamos necessidades desnecessárias que as empresas de marketing e propaganda impõem a um povo que prefere não mais raciocinar.

     Também exportamos petróleo, embora tenhamos entregado todas as empresas importantes para o capital estrangeiro. Os governos deste país adoram o capital estrangeiro e reverenciam o deus Mercado.

     Neste momento está sendo votado o novo Código Florestal, que permitirá às grandes empresas agropecuárias desmatarem o que resta das nossas florestas. Não que isso não esteja sendo feito desde o Brasil colônia, mas será tornado lei.

     Os ganhos são muitos para os empresários e latifundiários. Cortam as árvores, vendem a madeira, utilizam a terra para agricultura, usando sementes transgênicas que rendem mais grãos, mas esterilizam o solo e o transformam em deserto verde em poucos anos. Ou utilizam a terra desmatada para pecuária extensiva, porque do boi tudo se aproveita e tudo se vende, até os chifres legitimamente brasileiros.

     Já ia esquecendo: Dilma também disse, antes de ir para a Alemanha, que o Brasil é um país soberano. Pois é...

segunda-feira, 5 de março de 2012

O GRANDE RANCOR




O exílio judeu na Babilônia durou setenta anos, e todos os exilados pertenciam a famílias da classe média para cima. O povo pobre ficou na sua terra de origem, porque alguém tinha que cuidar dos campos, do gado e até dos lugarejos que ainda existiam no outrora reino de Judá. Os membros das famílias ricas foram levados para serem reeducados na corte, embora não tenha dado resultado. Setenta anos depois, quando Ciro, o persa, reinava, representantes da nova geração judia pediram ao rei licença para voltarem à sua pátria, reerguerem a cidade dos seus antepassados – Jerusalém – e reconstruírem o Templo. Como não representavam mais nenhum perigo, Ciro concordou.

     Não poderia ter sido mais ofensivo. Nem com visita chata se faz uma coisa dessas! É de praxe dizer que fiquem mais um pouquinho, a conversa está tão boa... Imaginem com escravos, ou súditos!... 

     Informes sigilosos revelam que o atual estado beligerante entre Israel e Irã, o país Persa, tem como origem o rancor causado por Ciro ao ter aceitado o pedido dos judeus de deixarem a Pérsia, naqueles tempos longínquos, e não, conforme é divulgado atualmente, a suposição de que o Irã esteja construindo armas nucleares.

     Um antigo pergaminho caiu em minhas mãos num desses dias ventosos. Provavelmente veio direto do Irã ou de Israel e comprova essa teoria. Chama-se “O Rancor dos Rancores”. Leiam e julguem.


     - Como vai, doutor Ciro? Eu queria lhe falar uma coisinha...
     - Não precisa me chamar de doutor; basta Magnífico Rei do Mundo.
     - Perdão, Magnífico. É que o nosso povo é dado a profecias e daqui a alguns séculos o título de doutor vai ser tão reverenciado como hoje é o título de rei.
     - Magnífico rei! E já estou cheio dessa estória das profecias de vocês. O velho Nabucodonosor sofreu muito com aquele tal de Daniel, que interpretava sonhos e profetizava.
     - É provável, Magnífico, ouvi falar a respeito, mas eu queria lhe pedir um favor.
     - Pois fala, criatura do teu deus!
     - O senhor sabe que o nosso povo já está aqui há mais de setenta anos. Dá pra cansar um pouco. Além disso, sentimos muita falta da nossa humilde terra, das colinas verdejantes, das cidades que foram arrasadas e saqueadas, das ovelhas, das vacas e até da mísera ralé que ficou lá cuidando de tudo isso para nós...
     - Mãinha do Céu!
     - Como disse, Magnífico?
     - É uma expressão, uma frase comum, um dizer exclamativo que os magos da corte me contaram que vai ser usada daqui a muitos séculos em um país de dançarinos e malabaristas. Significa: para de me chatear e vai direto ao ponto.
     - Bem, me perdoe pela ousadia, Magnífico, mas indo direto ao ponto nós gostaríamos de voltar para a nossa terra. Pronto, falei!
     - Só isso? E precisava dar tantas voltinhas para um pedido tão simples? Podem ir.
     - Como assim, Magnífico, o senhor quer dizer...
     - Isso mesmo que eu disse: que podem ir. É só arrumarem as malas e pé na estrada. O dia está ótimo para uma boa viagem.
     - O senhor está nos correndo, Magnífico?
     - Não, súdito falador, apenas concordando com o seu pedido.
     - Mas eu pensei...
     - Não pense. Se você pensar, continuará falando e agora eu tenho muito que fazer. As minhas esposas estão me esperando.
     - Se essa é a sua resposta, Magnífico, eu terei que comunicá-la ao Super Grande Conselho Secreto.
     - Pois faça isso. Divirta-se.

                                ---

     Reunião do Super Grande Conselho Secreto.

     - Ele disse que nós podemos ir, irmão número 1?
     - Com essas palavras, irmão número 2.
     - Mas isso é terrível, irmão número 1! Que falta de respeito! Não pediu que ficassem alguns dentre nós para servi-lo?
     - Nem lembrou dos nossos imensos serviços ao reino, irmão número 2.
     - Isso entristece muito a minha alma, irmão número 1.
     - Eu tenho uma idéia!
     - Que bom que você tem uma idéia de vez em quando, irmão número 3! E qual seria essa idéia?
     - Devemos pedir mais, irmão número 1. Volte ao rei e peça que levemos conosco os objetos do Templo que foram roubados por Nabucodonosor. Quero ver se esse pedido não o fará enfurecer-se a ponto de proibir a nossa saída do reino.
     - Brilhante, irmão número 3! Amanhã mesmo vou fazer esse pedido ao rei.

                                 ---

     - Majestade, Magnífico Rei do Mundo, Excelsa Estrela do Universo...
     - Para de me puxar o saco e diz o que você quer.
     - Lembra da nossa conversa, Magnífico, quando eu implorei que deixasse o nosso povo partir de volta para a terra dos nossos ancestrais?
     - Se lembro!... Passei a noite em claro só pensando nisso.
     - Com insônia, Magnífico? Quer dizer que se arrependeu? Deseja que fiquemos aqui? Ficou triste ao lembrar que o nosso povo deixará a Pérsia?
     - Ao contrário. Foi tamanho o alívio que não consegui dormir. E quando vocês partem?
     - Magnífico, se me permite...
     - Permito, mas diga logo o que deseja que eu permita.
     - Magnífico, nós pretendemos reconstruir o Templo, mas faltam os utensílios. Vossa Majestade deve lembrar que são utensílios raríssimos e caríssimos, feitos por inesquecíveis artesãos. Estão no tesouro real e eu vim humildemente pedir que nos deixe levá-los.
     - Mas porque não pediu antes? Tem a minha permissão. É só falar com o tesoureiro real e pegar o que precisa.
     - Assim no mais?
     - Mas não é o que pediu? Podem levar. Eu sou um rei magnânimo.
     - Devo lembrá-lo, Magnífico, que são peças de ouro e prata de valor inestimável.
     - É verdade, mas eu não me importo muito com as coisas materiais. Eu sou um rei espiritualizado.
     - Muito bem, Magnífico, mas terei que comunicar a sua decisão...
     - Ao SGCS? Pode comunicar. E saudações aos outros dois irmãos do Conselho Secreto.
     - Como Vossa Majestade sabe que o nosso Conselho Secreto é composto por três pessoas?
     - É que o meu serviço secreto é muito aperfeiçoado, quase tanto quanto será o de vocês daqui a muitos séculos – segundo visões sobre o futuro dos magos da corte – ou o S2 daquele país de bailarinos e contadores de anedotas, daqui a muitos e muitos séculos.
     - Majestade, mas o senhor disse anteriormente que será um país de dançarinos e malabaristas...
     - Ou isso. Os meus magos, em suas visões, vêem um estranho povo que gosta muito de correr atrás do couro que salta, e de cantar e pular. Nas horas vagas, contam anedotas e falam incessantemente num estranho aparelho que colocam junto ao ouvido.
     - Que estranho, Magnífico!... O que o futuro nos espera!...
     - Espera a eles. É por essas e outras que estou ficando espiritualizado. Agora pode ir, porque está na hora de eu assistir ao grande espetáculo da ordenha das cabras reais.

                                  ---

     Reunião do Super Grande Conselho Secreto.

     - Então ele não nos quer mais, irmão número 1! Como a minha alma fica contristada!
     - Pssst! As paredes, o teto e até as goteiras e teias de aranha tem ouvidos.
     - Então vamos falar a língua do Pê, irmão número 1.
     - Não diga bobagens, irmão número 3! Eles devem conhecer a língua do Pê.
     - E só vamos ter um bom serviço secreto lá pelo século XX, irmãos...
     - E a Cabala será aperfeiçoada somente na Idade Média, irmão número 2...
     - Isso tudo deixa a minha alma...
     - Muito triste. Eu já sei disso, irmão número 2. Vamos conversar bem baixinho.
     - pstflsbsgnlstfsgmn........
     - flllstmancvcdassaso...
     - kasdfccmlsnvbdf...
     - Grande idéia, irmão número 3! Você está se sobrepujando!
     - Pssst, irmão número 2. Amanhã falarei com ele.

                                         ---

     - Majestade, Magnífico, Supremo entre os Supremos, Luz da Melíflua Beleza, Grande e Portentoso Sábio do Universo...
     - Você está querendo me gozar, não é? Pensei que você e todo o seu povo já estavam a caminho. Diga logo o que deseja.
     - Magnífico, depois que pedi desesperadamente para que deixasse o meu povo partir para a terra onde mana leite e mel e que hoje, infelizmente, está devastada por feras e salteadores, e depois que Vossa Majestade concordou com os meu pedidos, porque sabe que somos súditos leais e eternos...
     - Confesso que ao ouvi-lo falar, súdito leal e eterno, quase esqueço que um dia os nossos povos serão inimigos.
     - Inimigos?! Mas como isso poderá ser, Majestade?
     - Segundo os meus magos, por causa daquele líquido negro e viscoso que usamos para acender fogueiras e lampiões.
     - Mas isso é impossível, Majestade! Ainda se fosse por ouro...
     - Pois os meus magos me disseram que daqui a muitos séculos aquele líquido mal-cheiroso vai valer mais do que ouro.
     - Ah, é bom saber desde agora... É bom saber...
     - Mas você dizia...
     - Eu dizia... O que eu dizia, mesmo, Magnífico? Perdão, fiquei um pouco perturbado ao falar em ouro... Lembrei, Sapientíssimo! Apenas um último e, creio, doloroso pedido para Vossa Majestade.
     - Doloroso? Doloroso é saber o que aquele povo do futuro - aquele que gostará de rir e de dançar – vai fazer com a sua fauna e flora daqui a muitos séculos. Isso sim é que é doloroso. Você nem imagina o que os meus magos tem me contado sobre suas visões do futuro!...
     - Parece que será um povo um tanto extravagante, Magnífico...
     - Extravagante é dizer pouco. Totalmente inconsciente! Mas o que você deseja agora? Armas e mantimentos? Podem levar. Material de construção para o Templo e para a cidade, idem. O que mais?
     - Sinto ter que comunicar à Vossa Presença Iluminada que o nosso povo tem que sair sem que falte um só membro. Sentiremos muita saudade da Pérsia, mas temos que ir todos, inclusive levando os ossos dos nossos pais que morreram aqui. É uma questão de tradição.
     - Uh! Que tradição horrível! É isso que é doloroso para mim?
     - Não exatamente, Magnífico Rei. Sabe a sua esposa número 3?
     - Aquela que tem lábios de rubi, olhos cor de mel, seios como os montes mais altos do meu reino, cabelos negros como a asa da graúna?
     - Essa mesma, Majestade. Mas o que é graúna, se me permite a pergunta, Magnífico?
     - É um dos pássaros que vai ser extinto naquela terra que já lhe falei. E o que tem a minha esposa número 3?
     - Ela é da nossa raça, Magnífico, e terá que ir junto para a nossa terra. Claro que somente se Vossa Majestade permitir... Se não for possível, teremos que ficar todos aqui. O nosso lema é “Um Por Todos e Todos Por Um” – ou “Por Uma”, como é o caso.
     - Oh, isso me deixa muito entristecido! - como diria o seu irmão número 2. Mas que fazer? Leve-a. Afinal, eu tenho mais 333 esposas que tem os olhos cor de mel e todos aqueles outros atributos necessários a uma esposa real. Vão com o vosso deus e com a minha bênção, e não percam tempo, aproveitem o tempo bom, partam amanhã mesmo.

           A caminho da terra muitas vezes prometida, os membros do Super Grande Conselho Secreto conversavam.

     - Irmãos, andei verificando a caravana e está tudo certo. Temos cavalos, camelos, cabras, ovelhas, bois, vacas, material de construção, armas, todos os utensílios do Templo e os tesouros que tinham sido roubados do nosso povo, dinheiro persa, alimentos em abundância, os ossos dos nossos pais, a ex-esposa número 3 do rei... Enfim, tudo o que foi pedido e ainda muitas outras coisas. Só o povo é que anda murmurando por ter que deixar um reino tão rico como o da Pérsia.
     - Este nosso povo sempre foi murmurador, irmão número 3. Faz parte da nossa tradição. Mas sinto um grande rancor no meu peito porque o rei nos despediu assim, tão facilmente.
     - Eu também, irmão número 1. A minha alma sente-se atribulada com tamanha ofensa e o meu corpo esmagado pelo andar desajeitado deste camelo.
     - Ainda nos vingaremos, irmão número 2. O rei me falou de um futuro conflito entre os nossos povos, daqui a muitos séculos. Devemos nos preparar desde agora. Afinal, não deve ser por acaso que somos o povo escolhido.
     - É verdade, irmão número 1. Mas daqui a muitos séculos ainda vai demorar um pouco. Tudo que eu desejava era que o rei não permitisse a nossa saída da Pérsia.
     - Eu também, irmão número 2. Seria perfeito. Teríamos a oportunidade de reeditar a epopéia de Moisés, com todas aquelas pragas sobre o povo do Egito, a matança dos primogênitos, o exército do Faraó morrendo afogado no Mar Vermelho. Deve ter sido tão bonito!
     - Nem me fale, irmão número 1, nem me fale...
     - Irmãos, eu vejo!
     - O que você vê, irmão número 3?
     - Eu vejo muros cercando os nossos escravos e armas que lançam fogo e imensos anjos voadores que rugem nos céus e atiram raios que explodem e magníficos cogumelos de luz que antecedem a vinda do nosso Messias e...

     E o povo, embasbacado, ouvindo as exclamações do irmão número 3 começou a murmurar novamente e diziam: “Estará o irmão número 3 entre os profetas?”
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