terça-feira, 8 de junho de 2010

A LETRA DA LEI



Há alguns dias atrás, li uma notícia que me deixou perplexo. Um homem tinha sido preso por acorrentar seu filho a uma cama. A razão? O filho estava viciado em crack, já tinha estado em várias clínicas e nada adiantara. De volta para casa, começou a efetuar pequenos furtos na vizinhança. O pai, desesperado, não encontrou outra maneira senão prende-lo em casa. Por isto, foi denunciado e preso sob a acusação de cárcere privado.

     E eu fiquei perplexo. Não pelo pai, que prendeu o filho. No meu modo de ver, na hora do desespero ele fez o que pensou ser o melhor: tentar tirar o vício do filho “à força”. Também não foi pelo filho que eu fiquei perplexo. Essa droga, o crack, está entrando em todas as cabeças fracas, e as mais fracas cabeças sempre são as dos jovens. Eu fiquei perplexo pelo nosso sistema, que, mais uma vez, revela a sua ineficácia – para dizer o mínimo.

     É um sistema que oscila entre a extrema frouxidão e o extremo rigor. Entre esses dois extremos está a incompetência. Vejam só: deixam entrar a droga, sem nada fazerem a respeito e, depois, combatem os viciados, como se estes fossem os culpados por aquilo que a nossa própria sociedade podre lhes ofereceu. De vez em quando, combatem os traficantes, mas nunca vão na origem do tráfico, nunca prendem aqueles que fabricam a droga. Por que será?

     Agora mesmo, em grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, está havendo uma guerra civil disfarçada contra as pessoas pobres que vivem em favelas, sob a desculpa de combate ao tráfico. Todos os dias prendem e matam alguns supostos traficantes. Mas o tráfico continua – curioso, não? Todos nós sabemos que os traficantes apenas traficam, vendem as drogas, mas não as fabricam. E são eles e os viciados os perseguidos. Os que produzem as drogas, onde estão? Se estivessem presos, não haveria mais drogas; logo, continuam soltos e à vontade.

     Mas, voltando ao crack. Primeiro, o sistema fez o que sempre tinha feito com as outras drogas que apareceram no Brasil: deixou acontecer. Chamavam de “a droga dos pobres”, e se os pobres estiverem drogados não poderão questionar, olhar em volta, revoltar-se contra a sua situação de marginalizados sociais. Então, droga neles. Mas, aos poucos, pessoas da classe média e de classes mais altas passaram a usar o crack, e o sistema se sentiu atingido. Foi quando começaram a fazer as campanhas contra o crack. Eles chamam isso de “campanha de conscientização”: adesivos onde está escrito: “Crack Nem Pensar!” A pergunta, irônica e inevitável, logo surge: - “só o crack?” É que as outras drogas ou são muito mais caras ou não viciam na primeira vez. Ah, bom!... Como nós somos bobos, não é?

     Em algumas ocasiões, o sistema foi desmascarado a nível mundial. Por exemplo, durante a guerra do Vietnã, quando os soldados estadunidenses usavam drogas diariamente, devidamente compradas e passadas a eles pelo seu governo. E não era só a maconha, que aparece nos filmes sobre aquela guerra. Drogas mais pesadas. E o sistema fingindo de bonzinho, de campeão da luta contra as drogas. Suprema hipocrisia. Também fiquei sabendo, diretamente de um ex-combatente, que na guerra que desmembrou a Iugoslávia em vários países, nos anos ’90, os soldados da OTAN usavam heroína. E é claro que eles não iam ali na esquina comprar, escondidos, a sua heroína de todo dia. Há quem diga que a guerra no Afeganistão é mais que uma guerra por minérios. O Afeganistão é o maior produtor de papoula do mundo. E quem domina a terra da papoula, domina a produção de heroína e drogas correlatas. E é muito dinheiro, mais do que vocês imaginam. Talvez tanto ou mais dinheiro quanto o comércio da venda de armas, que patrocina todas as guerras. Mas dizem que é uma guerra pela democracia e pela liberdade. Talvez a liberdade de usar armas e drogas.

     Enquanto isto, aquele cidadão brasileiro que queria livrar o seu filho do vício do crack está na cadeia. Como foi preso em flagrante, ainda deve estar na prisão, ao lado de verdadeiros criminosos. Curioso sistema, o nosso. Sempre pensei que os juizes existissem para interpretar a lei e não apenas para cumpri-la. E não somente a lei, mas as diversas situações, as mais diferentes, como no caso relatado, que surgem nas relações humanas. Porque, se não for assim, para que juiz? Bastaria um computador, onde estariam arquivadas, em um gigantesco banco de dados, todas as leis e as respectivas penas, no caso de transgressão. Por exemplo, o cidadão é preso e, no próprio carro da polícia, um terminal daquele computador dá a sentença: “bip-bip, prisão em flagrante? bib-bip, cárcere privado? bip-bip – cadeia!, bib-bip”.

     E por que ele foi preso? Porque o sistema oferece a droga mas não proporciona a cura do vício. De quem a verdadeira culpa?

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