sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

MATAR A ALMA


A maneira mais tradicional que se conhece para matar árvores é através de um machado que, aliás, está ficando obsoleto, dando lugar ao estrelismo da motosserra em filmes trash de terror e pânico. Aquelas coisas que adolescentes adoram assistir. Terror e pânico também para as árvores, mas os matadores especializados dizem que árvores não tem alma, assim como nenhum outro ser vivo irracional e a motosserra foi criada especificamente para abater, derrubar, cortar o seu passivo e indefeso alvo verde. Matar rapidamente.

     Bilhões de pessoas acreditam que matar é um ato maléfico relacionado somente aos seres humanos. O primeiro dos Dez Mandamentos diz “Não matarás”. E ficou subentendido que não se deve matar os humanos. Vegetais e animais poderiam ser mortos à vontade, sujeitos à vontade e imaginação destrutiva do rei dos predadores. Se bem que aquela lei, ou mandamento, é contraditada quando o mesmo deus manda matar pessoas de outras nações para os desalojar e desapossar da terra da Canaã. E mais uma vez o mandamento é reinterpretado implicitamente para “Não matarás aqueles do nosso povo”.

     As leis existem para serem interpretadas, conforme temos visto inúmeras vezes. Caso contrário, o que seria dos juízes? Perderiam muito da sua importância. Lembram como o Joaquim Barbosa e o Lewandovski duelaram, recentemente, por ocasião do julgamento do Mensalão? No entanto, o fato era um só: a existência de crimes contra o Estado perpetrados por uma quadrilha organizada. Todos sabiam disso. E lembram dos pudores jurisprudenciais do Joaquim Barbosa quando teve chance de mandar para a cadeia os criminosos e não o fez? Eram criminosos importantes.

     Este é o país dos crimes não julgados e de criminosos sentenciados à liberdade. Se você deseja ser um criminoso impune, em primeiro lugar consiga um cargo no governo. Qualquer governo. Poderá ser o secretário do último dos secretarios municipais da sua cidade. Se o crime for descoberto, no máximo você será exonerado e responderá a um interminável processo.

     Um dos crimes mais corriqueiros é contra o meio-ambiente. As leis que tratam do assunto são absurdas. Quando alguém é pego em flagrante é solto imediatamente com pedido de desculpas. O que é o Novo Código Florestal senão um gigantesco crime ecológico? Ressalte-se que um crime ecológico oficializado, aprovado por senadores e deputados. E olhem que o Genoíno ainda não tinha sido empossado!

     O Governo ganha bastante com os impostos sobre exportação. Fazendeiros e multinacionais agropecuárias enriquecem ainda mais exportando. Os países europeus adoram importar os baratos produtos brasileiros. Os fabricantes de transgênicos aumentam muito as suas fortunas esterilizando o solo do país.

     E as matas e florestas? Eles ganham de duas maneiras: 1) Desmatando e vendendo as madeiras nobres e tranformando as menos nobres em celulose; 2) Aproveitando a área desmatada para plantar ou utilizar para a pecuária. A frase da época da ditadura militar voltou com toda a força: “Plante que o Governo garante”.

"Crimes contra a flora"

     "Destruir ou danificar floresta de preservação permanente mesmo que em formação, ou utilizá-la em desacordo com as normas de proteção assim como as vegetações fixadoras de dunas ou protetoras de mangues; causar danos diretos ou indiretos às unidades de conservação; provocar incêndio em mata ou floresta ou fabricar, vender, transportar ou soltar balões que possam provocá-lo em qualquer área; extração, corte, aquisição, venda, exposição para fins comerciais de madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal sem a devida autorização ou em desacordo com esta; extrair de florestas de domínio público ou de preservação permanente pedra, areia, cal ou qualquer espécie de mineral; impedir ou dificultar a regeneração natural de qualquer forma de vegetação; destruir, danificar, lesar ou maltratar plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em propriedade privada alheia; comercializar ou utilizar motosserras sem a devida autorização. Neste caso, se a degradação da flora provocar mudanças climáticas ou alteração de corpos hídricos e erosão a pena é aumentada de um sexto a um terço."

          Como todo crime no Brasil, o crime ambiental, exceto em caso de flagrante,  deverá ser denunciado, aceita a denúncia pela promotoria para só então ir a julgamento, quando será interpretado e poucas vezes condenado. Condenações ridículas. Vejam Belo Monte. Um gigantesco crime ambiental denunciado pelo mundo inteiro. No entanto, continua a ser cometido porque agrada ao Governo. E aqui temos um interessante falso silogismo: se o Governo deseja perpetrar crimes e sendo o Governo eleito pelo povo, logo, quem comete os crimes é o povo. E o povo, ou o Governo, é soberano também quando criminoso.

     Belo Monte é o exemplo mais escrachado, mas olhem para os lados, em suas respectivas cidades. Pedem licença ao povo os governos municipais para cometerem os seus ‘pequenos’ crimes ambientais?

     Matar. Quando começaram a destruir as árvores em Bagé a maioria das pessoas não se importou. Grandes placas diziam que as praças estavam sendo “revitalizadas”, mesmo que nelas não se percebesse qualquer sinal de ausência de vitalidade. Cortaram e arrancaram árvores pela raíz. Árvores conhecidas e amigas dos verdadeiros bajeenses que já estavam acostumados à sua presença. Comentários esquivos; tímidos e canhestros protestos. Esta não é uma cidade com grande consciência ecológica e a maioria das pessoas prefere não se incomodar. Os representantes do povo, também chamados de vereadores, na verdade são porta-vozes do Executivo e as árvores continuaram a ser derrubadas. Algumas eram centenárias.

     Ao mesmo tempo, os canteiros foram depredados. Os canteiros das praças. Quem nasceu aqui e tem amor a esta terra ainda se lembra dos belos e faceiros gramados, um dos orgulhos naturais da cidade. Não foram mais cuidados. Sumiram.

     O corte de árvores continuou não só nas praças como nas calçadas. Basta algum empresário amigo pedir e lá vai a turma da motosserra. Em uma dessas ocasiões, o ex-vereador Valentim Cassali acorrentou-se a uma das árvores condenadas. Quase foi vítima do louco da motosserra. Dizem que famosos cineastas e atores da terra estavam a postos para fazerem um filme na hora. Teriam ficado frustrados pela realidade do tema.

     Depois foram os antigos e confortáveis bancos das praças. Nós, os bajeenses de verdade, tínhamos orgulho daqueles bancos. Eram aconchegantes; contavam e lembravam histórias. E os postes de luz – belos, altaneiros, graciosos. Numa daquelas revitalizações para turista ver eles cometeram o crime. Alguns que ainda dormiam, acordaram dizendo: “Será que eles querem acabar com os indícios da nossa História?” Pequena história, íntima história, tímida história, mas nossa, não a deles.

     A deles é construída com palavras, gestos, discursos; a nossa está sendo desconstruída gradativamente, perseverantemente. Matar também é matar a memória.

     Dia desses fui passear na Praça da Estação que, bem no meio, tem um antigo canhão apontando diretamente para o Centro Administrativo, como a dizer: “Comportem-se, ou...” Não pensem que é um canhão tradicional. Foi colocado lá na época da ditadura militar. Os donos do poder tem o hábito de marcarem a sua passagem. Começam por modificações nas praças. Continuam pelo amordaçamento e passividade do povo. No lugar do canhão havia um belo chafariz do qual pouca gente se lembra. Matar a memória é um ato ditatorial infalível.

     Eu estava lá, observando os estragos - o capim crescendo no lugar dos antigos gramados, as árvores esperando o seu momento de despedida – e me lembrando que em menos de um mês a praça será invadida e devastada mais uma vez por centenas de pessoas que tentarão assistir a desfiles de blocos ou, como preferem, escolas de samba, no curralzinho apelidado de sambódromo que todos os anos – desde que eles chegaram - é construído entre a praça e o Centro Administrativo, porque também o antigo carnaval dos verdadeiros bajeenses acabou, devido a supostas misteriosas razões monetárias e logísticas... quando vi.

     Árvores marcadas para morrer. Ao lado delas, a grama que ainda existia foi arrancada e estão sendo criados espaços de pedra ou grandes calçadas ou que nome eles dêem aquilo. Devem chamar de revitalização. Toda a praça está marcada para morrer. O que ainda resta dela.

     Desta vez, porém, preferiram não usar as motosserras. Por enquanto. Primeiro estão matando as árvores escolhidas. Cortam as raízes, as árvores secam e então eles as derrubam e aumentam o espaço revitalizado.

     Não se sabe exatamente o que os dois últimos prefeitos pretendem com essas revitalizações, além de deixarem a sua triste marca no destino da cidade. Mas tenho certeza de que muitos bajeenses de verdade já não reconhecem a sua cidade.

     Alguns dizem que o ex-prefeito e o atual, como não são de Bagé e não viram a cidade crescer, não tem apego às nossas pequenas coisas que consideramos tão grandes, sinais particulares que nos distinguem, características que faziam de Bagé a nossa cidade – embora tudo indique que essa afirmação poderá ser mais uma tentativa de sofisma. Chê Guevara era argentino e foi lutar pela libertação de Cuba e de outros países. Morreu na Bolívia, depois de preso e torturado.

     Claro que nem todos tem o desprendimento de um Chê Guevara, atualmente. Aliás, pouquíssimos. Pode-se contar nos dedos de uma das mãos e sobrarão dedos. Não se pode exigir esse altruísmo de pessoas que só pensam em eleições e reeleições, que multiplicam secretarias para se manterem nos cargos. Esses, se for o caso, farão o Carnaval na Quaresma e conservarão os canhões nas praças. Destruirão árvores.

     Árvores não votam. São consideradas como objetos decorativos que podem ser deslocados, trocados, mortos. Estamos na época do desamor, do inerte e estéril racionalismo utilitarista, do consumo pelo consumo, dos carnavais insanos que engordam alguns e iludem a maioria, da ausência de sentimentos puros, simples e honestos e da morte da alma.

Um comentário:

  1. Bela matéria sobre o que acontece com nossas árvores em Bagé, por exemplo. Ótima análise e preciosas informações ecológicas, dentre outras. Parabéns!

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