sábado, 5 de julho de 2014

AMARELOU!





Agora sim a seleção vai ganhar a Copa! Desde que N. levou aquele encontrão, sofreu aquela falta, aquele joelhaço, aquela tentativa de assassinato (dizem os mais afoitos) e ficou estirado no chão a chorar e a gritar e o Brasil inteiro chorou e gritou com ele, porque esta é uma nação de sentimentais e até os mais corruptos, depois de muito choro e algumas ameaças de morte são libertados por juízes sensíveis às suas lágrimas; naquele momento o início da noite que não era muito veloz em Fortaleza libertou um último clarão, um último fulgor, um último atrasado raio de sol muito travesso que desejava ficar assistindo o jogo e (meninos, eu vi!) o gramado ficou intensamente amarelo, enaltecendo a cor das camisetas da seleção, um canarinho solar resplandecente, como se o dedo de Deus apontasse o futuro campeão desta breve Copa do Mundo.

   Já era tempo! Depois de várias partidas medíocres da gloriosa seleção que será sempre lembrada pelo denodo, galhardia, arrojo, ímpeto, ousadia ao fazer tantas faltas, porque é necessário defender a mãe gentil, mesmo que a pontapés, lembremos que a pátria está de chuteiras, o Brasil é zil zil neste momento, e a cada gol muito chorado surge um herói idolatrado pela mídia retumbante... Depois de tantos prantos, soluços e ranger de dentes; reuniões, conventículos, mesas-redondas e algumas muito quadradas onde se discutia a ontológica questão de como fazer o time, o selecionado, jogar como uma verdadeira seleção... Depois que a grande maioria do povo estava temerosa, assustada, quase desiludida e ouviam-se gritos desesperados pelas ruas, os assaltos aumentavam em inimaginável desproporção, a ditadura voltava criminalizando as manifestações populares, o Apocalipse era anunciado, nasciam jacarés de duas cabeças, viadutos recém construídos desabavam, chuvas intensas afogavam inúmeras cidades e sóis inclementes como árbitros despudorados provocavam grandes secas... eis que o grande jogador que a pátria lamenta não ter encontrado o seu futebol, talvez esquecido na Espanha ou nos vestiários santistas – desaba. 

   Ó céus! Ó terras! Ó mares! Ó eleições!, pensa a dona Dilma e declara que a dor de N. feriu o coração dos brasileiros, fala-se em desastre, Felipão usa a palavra “catástrofe”, milhões de mensagens são enviadas para o desgostoso jogador que diz estar acabado o seu sonho de jogar uma final de Copa do Mundo, e muitos retrucam: “Não, não fale assim, ainda há muito tempo!”.  

   Milhares de cartazes dentro e fora dos estádios e outros centros esportivos e não esportivos repetem a mesma frase, desejando força, nem tudo está perdido, o mundo é dos bravos, tens médicos particulares, não necessitas entrar em fila do SUS nem acampar com os milhares de desabrigados vítimas de desastres muito maiores, como a fome, a miséria e o abandono, não és um favelado cercado pelo exército ou um manifestante ferido por policiais, não moras no negado Brasil dos esquecidos, no triste Brasil dos abandonados, no imundo Brasil dos políticos prostituídos, no desmatado Brasil dos latifúndios, és um deus, um ídolo, uma marca registrada; serás um mito. Força, muita força! 

   E dentro da noite lenta, muito lenta, enquanto o povo chora desconsolado por tragédia humana tão singular, uma verdadeira novela da vida real ao vivo e a cores, eis que o treinador da seleção prepara um final feliz. Agora está livre para armar o time que desejar. Antes do desditoso fato, Felipão era obrigado a escalar N. e mais 10, e todas as jogadas de ataque do time deveriam ser decididas (ou não) pela magnificente estrela que agora descansa. A própria torcida gritava “Vai N.! vai N.!” e, quem sabe, doravante, nas duas partidas que restam, os embriagados torcedores lembrem que é uma seleção formada por 11 jogadores e não o time de um só. Ainda mais: se perder, a desculpa está pronta - foi devido à sentida ausência do onipotente jogador; se vencer, a vitória será de todos, do Brasil unido que supera todos os obstáculos e mostra para o mundo a sua força e pujança. 

    Mais perfeito impossível. Não por acaso o amarelo do Sol vibrou sobre o berço esplêndido do gramado cearense quando tombou o herói vítima de covarde falta. Está confirmado: Deus é brasileiro, mesmo que o Papa seja argentino. Vai Brasil!

2 comentários:

  1. É exatamente isso, Blogueiro. Ótima matéria, bons toques.

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  2. Pertinente e oportuno texto Fausto.Um pesquisador nato, escreve com clareza e compartilha conosco seu conhecimento. Parabéns e obrigada!

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