segunda-feira, 25 de julho de 2011

O PARADOXO DE SHYLOCK







Para quem leu “O Mercador de Veneza”, de Shakespeare, o tema não será estranho. Para quem não leu, faço um resumo.

     Antônio é um mercador que está com todos os seus navios e, portanto, todo o seu capital, no mar, e espera o retorno desse capital, talvez dobrado ou triplicado devido aos negócios. Nesse meio tempo, um amigo dele pede um empréstimo, mas como Antônio não dispõe de dinheiro, no momento, vai à casa de Shylock (um judeu agiota que odeia Antônio) e consegue a quantia desejada, mas, em troca, Shylock estabelece um prazo para o pagamento e no caso desse prazo acabar, ele, Shylock, terá direito a cortar uma libra de carne do peito de Antônio “perto do coração”. O acordo é feito e assinado em cartório.

     Passa o tempo e, depois de muitas peripécias, chega o dia em que Antônio é cobrado por Shylock. Os navios de Antônio ainda não voltaram e ele é obrigado a ir a juízo. Naquele dia, chega uma pessoa para julgar a causa - Pórcia, considerada pelos especialistas na literatura de Shakespeare uma das suas melhores personagens femininas, ao lado de Lady Macbeth. Vestida de homem e passando por célebre jurista, Pórcia dá ao judeu o direito de cortar uma libra de carne do peito de Antônio, “perto do coração”, conforme está estipulado no acordo. Mas alerta Shylock que não poderá cortar mais que uma libra, não poderá tirar sangue de Antônio, porque isso não está estipulado no contrato e, tampouco, provocar qualquer dano à saúde de Antônio.

     O restante da estória vocês podem adivinhar, mas seria melhor que lessem: Shylock desiste de cortar a libra de carne do peito de Antônio e acaba sendo penalizado pelo Doge de por desejar o mal de uma pessoa da República de Veneza. Os navios de Antônio regressam a salvo, os pares se encontram, casamentos são realizados e tudo fica bem.

     Esta a estória. Mas ela revela uma interessante verdade que poderá ser chamada de “Paradoxo de Shylock”. E essa verdade diz respeito às penas infligidas às pessoas pelo Estado e até a conclusões de juízes em causas cíveis que, na aparência, não são penas, mas em seus efeitos atuam como tais.

     Atualmente, o poder dos juízes, no Brasil, é imenso e eles podem suavizar a vida das pessoas ou complicar de tal maneira a ponto de provocar trágicas consequencias.

     O Paradoxo de Shylock consiste em que toda pena aplicada traz em si, implicitamente, outras penas, o que faz com que a primeira pena, a pena oficial, seja responsável por outros danos ao apenado.

     Um exemplo. Uma pessoa é presa por um crime grave, é julgada e condenada e um determinado número de anos na prisão. A pena é a de prisão, somente isso. No entanto, na prisão, a pessoa estará sujeita a violações, maus tratos, péssima alimentação, superlotação das celas e toda uma série de “outras penas” não explicitadas na pena oficial. O que torna o Estado – que, pela Constituição, é responsável por todos os cidadãos, presos ou não, – infrator.

     É um paradoxo. O próprio Estado que condenou aquele que infringiu a lei torna-se, igualmente, passível de ser julgado e condenado. No entanto, o Estado, que é uma palavra que foi usada inicialmente por Maquiavel, segundo o jurista Norberto Bobbio, e que designa aquele conjunto de instituições que controlam e administram uma nação – segundo o dicionário Houaiss – não pode ser julgado ou penalizado, porque teoricamente está acima de todos.

     Mas aqueles que representam o Estado podem e devem ser julgados pelos seus atos.

     Assim, voltando ao mesmo caso da pessoa aprisionada e sofrendo maus tratos, ou simplesmente aprisionada – porque a sua pena foi apenas de prisão – mas não tendo direito a levar uma vida minimamente confortável ou em acordo com a vida que levava anteriormente, antes de ser aprisionada, terá ela direito de mover uma ação contra o juiz ou contra o representante da instituição que não só a aprisionou, mas mudou a sua vida para pior, além do fato de estar aprisionada? O que vale mais para o Estado: as suas instituições ou as pessoas que o compõem?

     Um outro caso que conheço, bem simples e bem comum. Um juiz nega AJG (Assistência Judiciária Gratuita) para uma pessoa que não tem dinheiro, comprovadamente, mas que é herdeira de bens imóveis que estão sendo inventariados. O juiz vai mais além: nega alvará para que um dos bens seja vendido para pagar as dívidas do inventário e obriga a pessoa a prestar contas dentro de cinco dias.

     Acrescenta o juiz que caso as suas ordens não sejam cumpridas, os bens que a pessoa ainda não recebeu e aos quais tem direito por testamento irão a leilão.

     Quais as conseqüências de um caso assim, caso a pessoa não tiver um bom advogado, ou advogada, que prove que a decisão do juiz não só é irregular, mas ilegal?

     As conseqüências poderão ser muitas, porque o juiz, num caso como o exemplificado acima estará atentando contra a moral da pessoa, ameaçando-a materialmente, fazendo tanta pressão que a pessoa poderá perder o controle. Poderá pensar em suicídio e, até, em homicídio. Poderá infringir leis e será julgada e penalizada pelo Estado que a levou a infringir as suas leis.

     E novamente temos o Paradoxo de Shylock – o Estado, através de um juiz – agindo contra o cidadão, mas “em nome da lei”.

     O que vale mais: o cidadão, ou o conjunto de cidadãos que compõem o Estado ou o Estado, através das instituições que o representam, que atuam através de pessoas, muitas vezes imbuídas de um poder demasiado e que confundem conciliação com devastação?

     As instituições do Estado devem ser repensadas, principalmente no que tange às suas relações com os cidadãos. Urgentemente. Ou o que é chamado de “máquina estatal” fará de todos nós passivas e pequenas máquinas que poderão ser montadas e desmontadas ao bel-prazer de pessoas demasiado poderosas, mas também demasiado maquiavélicas.

Um comentário:

  1. O paradoxo do personagem de Shakespeare é um bom exemplo de como o Estado, ao invés de proteger o cidadão, o cruxifica na maioria das vezes, agindo com parcialidade trazendo consequências danosas, quando não mata. Eu, como cidadã, senti e sinto na pele até hoje o abandono do poderoso "Estado".
    Lidia.

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