quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A MISÉRIA DA MISÉRIA



Certa vez, em Porto Alegre, vendo pessoas dormirem ao relento, e falando a respeito com alguém que estava comigo e morava perto dos que hoje são chamados “sem teto”, recebi a resposta de que eles (os sem teto) gostam de viver assim. Não entendi e perguntei por que. A resposta foi: “Porque sim”.

     Não foi a única vez em que ouvi comentários de que as pessoas que não tem casa – eufemisticamente chamados de “moradores de rua” – sentem prazer com essa situação. Muitas pessoas acreditam nesse estranho prazer, mas não trocariam de lugar com os sem teto. Não sentiriam o prazer que eles sentem.

     Sem teto também é um eufemismo, porque pessoas que não tem teto, também não tem paredes, portas, janelas, banheiro, cozinha, sala, escritório. Sequer tem um jardinzinho ao fundo da não-casa onde possam plantar flores ou o que desejarem. Não tem nada. Vivem em situação de extrema miserabilidade, dependendo dos que tem para sobreviverem.

     Este é o país onde ter ou não ter é a principal questão. Ao vencedor as batatas e ao perdedor a ruína física e moral. Este é o país da barganha e quem não tem nada não pode barganhar. É o país do jeitinho e da malandragem, mas é impossível ser malandro quando a miséria é uma companheira cruel, e um sonho dar um jeitinho na vida quando se mora na rua à mercê dos piedosos cidadãos.

     Pois um desses moradores de rua, chamado Nelson Renato da Luz, em outubro do ano passado foi preso em flagrante quando tentava furtar placas de zinco da estação República do Metrô, em São Paulo. Dois dias depois, a juíza da 14ª Vara Criminal da Capital converteu o flagrante em prisão preventiva.

     No entanto, o laudo pericial comprovou que o suspeito é inimputável (sofre de doença mental e é pessoa comprovadamente incapaz de responder por seus atos) e, portanto, não poderia ser preso.

     “Inegável que a simples soltura do acusado não se mostra apropriada, já que nada assegura que, em razão dos delírios decorrentes da certificada doença mental, não volte a cometer delitos”, afirmou o desembargador Figueiredo Gonçalves, relator do habeas corpus que pedia a soltura do morador de rua.

     “Todavia, evidente também que inadequada a prisão preventiva, por colocar no cárcere comum pessoa que demanda cuidados médicos, situação que põe em risco a incolumidade física de eventuais companheiros de cela e do próprio paciente”, completou o desembargador.

     O relator cogitou da internação provisória de Luz em um hospital de custódia e tratamento, mas concluiu que a medida só se aplica nos casos de crimes violentos ou praticados com grave ameaça.

     Luz não se enquadra em nenhum dos casos. A solução encontrada pela 1ª Câmara de Direito Criminal, a partir do voto do relator, Figueiredo Gonçalves, de mandar o acusado responder ao processo em prisão domiciliar - quando ele não tem residência fixa - criou outro problema para o suspeito. Apesar de estar solto, poderá ser detido novamente.

     É um daqueles casos em que a Lei auxilia o criminoso e, ao mesmo tempo, o prejudica. Auxilia, porque o condena a prisão domiciliar e o prejudica porque o condenado não tem domicílio, não tem casa e – pasmem! – poderá ser preso novamente por não cumprir a pena de prisão domiciliar.

     Neste caso, o apenado é considerado doente mental e o artigo 196 da Constituição diz:

     Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

     É direito de todos e dever do Estado. Sabemos que isso não acontece, mas é o que reza a Constituição, e o Estado deveria ser responsável também pela saúde desse cidadão, independente da gravidade do seu delito.

     Além disso, se a pena é de prisão domiciliar, penso que caberia ao Estado providenciar uma casa para o senhor Nelson Renato da Luz. Caso contrário, ele corre o risco de ser preso por culpa do próprio Estado que o condenou a prisão domiciliar, sendo ele um sem teto. Se o Estado assim não fizer – não providenciar a casa para que Renato cumpra a sua prisão domiciliar – estará descumprindo a sua própria ordem, ou sendo omisso no caso de Renato ser preso novamente por não ter casa.

     Também vemos na Constituição Federal que:

     Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

     IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

     Portanto, cabe ao Estado, através dos seus agentes autorizados, evitar a existência dos sem teto. E, se existem, o Estado está descumprindo com uma das suas funções constitucionais.

     Se formos mais adiante, a razão do crime de Nelson – crime de furto – foi provocada pela ausência do Estado que teria o dever de não só ampará-lo economicamente, evitando que caísse em extrema miséria, mas, também, por não lhe dar qualquer assistência social ou não providenciar cuidados para a sua saúde.

     Mas o Estado, nesses casos, não funciona – prefere o paradoxo – assim como não funciona em outros casos.

     Por exemplo, na Constituição, artigo 225, está escrito:

     Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

     No entanto, temos o novo Código Florestal, que a presidente Dilma deve sancionar, e que é um exemplo de como se deve depredar o meio ambiente.

     É gigantesca a distância entre as classes sociais no Brasil. Houve tempos em que eu acreditava que era por maldade que eles faziam esse tipo de coisa, mas é por falta de visão. Vêem o povo como nós vemos as formigas. Ou pior: como micróbios. Micróbios trabalhadores que podem ser descartáveis quando perdem a utilidade.

     Pessoas que não trabalham, que vivem na rua e que enlouquecem porque não lhes é dada qualquer perspectiva talvez não sejam vistas nem com microscópio. Pior ainda: são considerados não-existentes, cadáveres vivos que não tem direito a nada, porque nada possuem.

     O que acontecerá com Nelson Renato da Luz?

     Será preso e solto repetidamente, até o momento em que um grupo desses meninos e meninas da classe média decidir que matá-lo a pontapés é a melhor solução para a sociedade?

     Ou esperará, entre uma prisão e outra, as reformas da presidente Dilma, que diz pretender acabar com a miséria?

Um comentário:

  1. Meu Deus! Deus de todos nós. Difícil acreditar na sentença a esse pobre e enlouquecido "homem". Há algo que cheira muito mal no Brasil. Dia a dia vou tentando entender tanta ausência desse Estado que se perdeu por aí, passando a existir só no papel
    Lidia.

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