segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

NA FLORESTA (I)


Depois de muito caminharem, o professor Silvestre e seu auxiliar, Óscarparaobrasil, chegaram a um lugar onde viram uma casa, com uma bela varanda e cercada por hortas e árvores frutíferas. Estavam cansados e famintos. Já fazia mais de quatro horas que perambulavam na floresta amazônica, de clareira em clareira - provocadas pelo desmatamento e queimadas criminosas - e em cada uma dessas clareiras paravam alguns minutos para chorar. As lágrimas que restavam eram poucas e já estavam temerosos de gastarem todas quando chegaram àquele lugar que parecia encantado.
     Bateram à porta e ninguém atendeu. Bateram novamente e nada. Por fim, desistiram e sentaram-se nos degraus da varanda que era guardada somente por uma jibóia que não ligou para eles e continuou melancolicamente enrodilhada. Parecia triste e sozinha.
     Óscarparaobrasil afagou a jibóia e perguntou ao professor Silvestre se não seria o caso de colherem algumas daquelas frutas, mas o professor Silvestre o impediu com a sua célebre frase: “A sorte não abandona os destemidos” e puseram-se a esperar ao lado da jibóia, embora não soubessem quem estavam esperando.
     O sol já estava se pondo, junto com as esperanças dos dois, quando ouviram ruído de passos e, logo em seguida, alguma coisa parecida com um ser humano, mas indistinguível na forma, apareceu e perguntou: “Quem são vocês?”.
     “Um momento, Shu. Eu é que pergunto: Quem são vocês?”, falou uma moça que vinha logo atrás da estranha forma que parecia humana e transparente. Era loura, alta, olhos azuis translúcidos, vestindo botas e roupas de couro e carregando em uma das mãos uma espingarda de dois canos.
     Depois de recompor-se da surpresa, o professor Silvestre disse: “Perdoe-me, bela senhora, por estar invadindo os seus domínios. Eu sou o professor Silvestre e este é o meu auxiliar Óscarparaobrasil. Fazemos parte da expedição da ONG “Chorar Pela Amazônia” e nos perdemos dos outros quando estávamos cumprindo o nosso dever de chorar pela Amazônia em um dos muitos lugares devastados por queimadas. A fumaça era tanta que nos ajudou a chorar, e quando, finalmente, saímos do lugar com os olhos úmidos e purificados na alma não vimos mais ninguém. Caminhamos durante horas e chegamos a este lugar que parece um paraíso no meio do inferno – se me permite a imagem vulgar – e fomos recebidos apenas por esta jibóia que estava dormindo e agora parece muito interessada no meu auxiliar”.
     “Hermelinda, comporte-se e vá caçar ratos!”, disse a moça, fazendo com que Hermelinda – a única jibóia que ainda conserva acento no “ó”, por ser contra as novas regras ortográficas – deixasse o colo de Óscarparaobrasil. Espreguiçou-se e foi em direção à floresta. Enquanto isso, a porta da casa tinha sido aberta pelo ser que parecia humano e não tinha forma definida, e todos entraram.
     “Nada mais eu estranho nesta floresta, senhora”, disse o professor Silvestre. Nem mesmo...” – e apontou para a estranha figura que se confundia com móveis e paredes. “O nome dele é Shuniazzar”, disse a mulher, “um estranho animal mitológico que fala. E o meu nome, hoje, é Ingrid. Às vezes, é Gerda, ou Maria, ou Gertrude. Depende do dia. O povo da floresta me chama de Alemã na Floresta, o que é óbvio, porque eu sou alemã e moro na floresta. Eu não me importo que me chamem assim. Vim para cá quando era muito pequena. Havia uma grande guerra na Europa e a Alemanha estava sendo invadida pelos inimigos. Foi quando os meus pais decidiram me colocar em uma barquinha que atravessou o Mediterrâneo e o Atlântico e me trouxe para este país. Shuniazzar me encontrou quando eu estava transpondo a pororoca; me protegeu e me ensinou todas as coisas que um estranho animal mitológico que fala pode ensinar. Quando eu cresci, me ajudou a construir esta casa. E o senhor, é professor de que? Mas deixe para contar durante a janta. Shu, estamos com fome”.
     Imediatamente, o professor Silvestre e Óscarparaobrasil, sem que tivessem se mexido, perceberam que estavam em uma sala, iluminada por grandes velas colocadas em castiçais antigos, onde havia uma mesa, cadeiras, belos quadros nas paredes, e um piano ao fundo, ao lado de uma janela. Sobre a mesa, pratos e travessas contendo comida que parecia apetitosa. Ingrid, percebendo a surpresa deles, disse que aquele era mais um dos truques de Shuniazzar, que fossem se servindo e não fizessem cerimônia, porque via que estavam com muita fome. Em seguida, serviu o vinho, que apareceu subitamente sobre a mesa e, depois de alguns minutos, quando já se ouvia o piano tocar músicas que embelezavam a alma e abriam o apetite, repetiu a pergunta que fizera ao professor Silvestre: o que ele ensinava?
     Com o estômago agradecido e a voz embargada – talvez por ter chorado muito durante o dia – o professor começou a dizer “Pois dona Ingrid...”, quando foi interrompido pela dona da casa: “Ingrid não, agora é Gertrude, já passou da meia-noite”. “Pois dona Gertrude” – recomeçou o professor – “saiba que este país que me engana, ai de mim Copacabana, sobre a cabeça os aviões e sob meus pés os caminhões, como diz o poeta, não só engana a mim como a quase todos que nele moramos, porque madame diz que a vida não melhora, que a vida piora por causa do samba – como diz outro poeta -, mas não é por causa do samba, mas do desgoverno que nos aflige como um caminhão derrapando na estrada de Santos, como diria outro poeta, e nós, indignados brasileiros fundamos a ONG “Chorar Pela Amazônia”, que reúne intelectuais de todo o país, e eu – que sou professor de Anatomia da Natureza e Fisiologia Sistêmica dos Bens Renováveis – convidei os membros da nossa ONG para virmos até a Amazônia. Nem todos vieram, alguns preferiram ficar chorando em casa, mas o pequeno grupo que aqui está já faz três dias que chora desesperadamente cada vez que vemos uma parte da floresta desmatada ou incendiada. Hoje, eu e Óscarparaobrasil nos perdemos dos demais e caminhamos até encontrar a sua bela morada.”
     “Que interessante!” - disse Gertrude “E existem outras ONGS que se interessam pela Amazônia?”
     “Inumeráveis!” - respondeu o professor. “Algumas se destacam mais, como a ONG “Deitados Em Berço Esplêndido”, que faz um grande trabalho pela Internet, ou a ONG “Garota da Amazônia”, que recolhe assinaturas em Ipanema para protestar contra a desvirgindade da floresta; a ONG “Poetar É Preciso”, formada por poetas de todo o Brasil, que escrevem poemas contra a devastação da Amazônia e brevemente lançarão o seu primeiro livro, a ONG “O Último Suspiro”, cujos membros fazem reuniões para suspirar sentidamente pela Amazônia e pela Mata Atlântica, a ONG “Me Engana Que Eu Gosto”, que faz vigílias em frente ao Congresso Nacional para vaiar deputados e senadores... E tantas outras...
     “Que bonito!” – disse Gertrude. “E eu achando que só existia a ONG “Macunaímas Traídos”, formada pelo povo da floresta que vê cair as suas árvores e volta e meia grita: “Estamos sendo traídos!”, e depois voltam a dormir em suas redes, ou a ONG “Grandes E Poderosos Índios Valentes”, formada por índios aculturados que, quando sabem de algum novo desastre florestal fazem aquela dança onde sapateiam e gritam “hu-hu-hu-hu” e depois voltam para assistir televisão ou jogar vídeo-game, ou a ONG “Guerrilheiros Da Floresta”, formada por jovens intelectuais que distribuem panfletos para os madeireiros, enquanto eles cortam as árvores, e depois voltam para as suas casas para escrever novos panfletos. E tantas outras... Mas vejo que estava enganada.”
     “O nosso esforço conjunto um dia dará seus frutos, a sorte não abandona os destemidos” – disse o professor. “É verdade, professor”, respondeu Gertrude, mas já é hora de dormir. Amanhã eu vou caçar e vocês dois estão convidados”. “Agradeço, mas eu não mato animais”, disse o professor. “Nem eu”, respondeu Gertrude. É uma caçada diferente, o senhor vai ver”.
     Em seguida, a sala se transformou em um quarto espaçoso, onde se viam duas camas e um guarda-roupa. O professor Silvestre e Óscarparaobrasil já não se surpreendiam de nada. As suas mochilas estavam no chão, uma ao lado de cada cama. Trocaram de roupa e se deitaram. Quando Hermelinda, no meio da noite, entrou, sinuosa e lânguida, pela janela e foi enroscar-se sobre os pés de Óscarparaobrasil, por quem já tinha alguma afeição, ele perguntou: “Comeu o seu ratinho, Hermelinda?”

     A noite passou como costumam passar as noites: dormitando em sua escuridão, até o momento em que foi definitivamente acordada pelo Sol, que pedia para brilhar, e recolheu-se, resmungona, para o outro lado do globo. Óscarparaobrasil acordou com as amorosas lambidas de Hermelinda e disse para ela que estava na hora de caçar ratos. Hermelinda quase respondeu que nem só de ratos vive uma jibóia, mas conteve-se, educadamente, e saiu pela janela, preguiçosamente.
     O professor Silvestre estava acordado desde o momento em que os róseos dedos da aurora tinham entrado pela janela e tocado na sua testa. Óscarparaobrasil voltou-se para ele e disse “Bom dia, professor” – ao que o professor retrucou, impiedosamente: “Se você não usasse esse cabelo moicano e não passasse tantas horas assistindo futebol talvez percebesse que este dia só é bom na aparência. Quantas árvores estão sendo derrubadas neste exato momento!, e só resta a nós, as forças desarmadas – porque as armadas devem estar dormindo nos quartéis ou invadindo favelas -, só nos resta chorar. Choremos, pois”.
     Choraram pela Amazônia e pelas maldades dos humanos que destroem o mundo e, em seguida, sentiram urgente necessidade de ir ao banheiro. Naquele momento surgiram dois banheiros, que os atraíram como os olhos da Iara e onde entraram empurrados por uma força interior irresistível. Depois, banhados e com as roupas trocadas, quando pensavam em sair do quarto viram-se na mesma sala onde tinham jantado na noite anterior. Sobre a mesa, bules fumegantes de café e leite, queijos, geléias, pães os mais diversos, patê, manteiga e tudo o que deve conter um legítimo café colonial. “Desculpem pela ausência de margarina”, disse Gertrude, que já tomava o seu café. “Eu não uso gordura trans. Passaram bem a noite?”
     O professor Silvestre disse que tinha dormido como uma criança e Óscarparaobrasil quase se queixou de Hermelinda, mas preferiu perguntar como era que Shuniazzar adivinhava até pensamentos.
     “Shuniazzar é muito prático”, disse Gertrude, “ele não adivinha, se antecipa; deixa tudo programado com antecedência através de formas de pensamento que são acionadas e se transformam em realidade quando nelas pensamos. Só não pode interferir na vontade das pessoas; caso contrário, a floresta não estaria sendo devastada. Ele é apenas um ser mitológico que fala”.
     “Muito curioso”, disse o professor, “mas de qual mitologia?”
     “Ele nunca me disse nem eu perguntei”, respondeu Gertrude. “Mas penso que de todas ou um pouco de cada uma. Shu não gosta de discriminação. Mas por que Óscarparaobrasil tem esse nome tão expressivo?”
     “É que meus pais”, respondeu Óscarparaobrasil, “sempre assistiram todos os filmes norte-americanos e desejam muito que um dia o Brasil seja premiado com um Oscar, o que seria um enorme salto qualitativo para a nossa cultura, segundo eles, e, quando eu nasci me deram o nome de Óscarparaobrasil, assim mesmo, com acento, mas eu sempre quis trocar de nome. Gostaria tanto de ser João, ou José, ou até Mário, apesar daquela piada... Só não troco para respeitar a vontade deles, e uso o meu cabelo estilo moicano porque rima com norte-americano. Mas o professor me ensinou que todos os moicanos foram mortos pelos brancos daquele país e agora eu uso o cabelo assim em forma de protesto silencioso”.
     “Ah, sei... E você respeita muito os seus pais?”
     “Muito.”
     “E o seu Governo?”
     “Muito.”
     “Então, o que você faz aqui na floresta, Óscarparaobrasil?”
     “Eu também respeito muito o professor.”
     “Você tem alguma perturbação?”
     “Não. Eu sou perfeitamente correto. Vou cursar advocacia, casar com uma moça certinha, que não pense muito, como eu, ter dois filhos, entrar para a Maçonaria e para o Rotary e viver feliz. Eu só me perturbo quando durmo com uma jibóia nos pés ou quando encontro um estranho ser mitológico que fala. Mas logo aceito qualquer situação como normal, seguindo o conselho do meu pai que sempre me disse, como regra de vida, que devo respeitar a todos e aceitar tudo.”
     “Bem, senhores – disse Gertrude – está na hora da caçada.” Levantou-se e pegou a sua arma de dois canos, colocou um cinturão com cartuchos preso na cintura e disse: “Vamos?” Saíram os quatro e, depois de alguns passos, já estavam em plena floresta. Caminharam cerca de uma hora em silêncio até que Gertrude mandou parar. “Estão ouvindo?” – perguntou. O professor esforçou-se por ouvir qualquer coisa diferente dos ruídos esquivos da floresta, sem nenhum resultado, e foi Óscarparaobrasil quem disse: “Parece uma banda de rock!” À medida que caminhavam o ruído se tornava mais claro: “rrrrrrrrróqpóqrrrrróqpóqrrrrrrrrrrr”.
     “O que será isso?”, perguntou o professor Silvestre, “Algum outro animal mitológico, que não fala e só ruge?” “É o ruído do desmatamento, professor”, respondeu Gertrude, e em seguida disse para Shuniazzar, que estava em algum lugar ali por perto: “Shu, precisamos ficar invisíveis”. Imediatamente uma estranha neblina verde os envolveu. Aproximaram-se ainda mais e viram vários homens portando motosserras e cortando gigantescas árvores. Dois ou três caminhões estavam estacionados mais adiante para carregar a madeira. Outros homens cortavam as árvores que já tinham sido derrubadas.
     Gertrude pegou a sua arma e a carregou com dois cartuchos. Imediatamente, o professor Silvestre, horrorizado, disse: “Por favor, senhora, não os mate!” Ao que Gertrude respondeu dizendo ao professor que ele e seu auxiliar poderiam aproveitar para chorar um pouco, enquanto ela fazia algo mais prático. “E não se assuste tanto, professor, eu não vou matar ninguém”. Colocou a arma no ombro, apontou, no momento em que o professor começava a chorar, junto com Óscarparaobrasil, e deu o primeiro tiro. Ouviu-se um grito e um dos homens que estava mais perto começou a correr para todos os lados e a gritar esganiçadamente.
     Gertrude continuou a atirar. A cada tiro, gritos e correria. Até que os homens entraram nos caminhões como puderam e deram a partida. Gertrude dava grandes gargalhadas. O professor aproximou-se e perguntou: “O que a senhora fez?”
     “Chumbinho nas nádegas, professor. Só que hoje eu misturei com sal e pimenta moída. Pode apostar que esses não voltam mais. Devem estar pensando que é algum espírito protetor da floresta. Viu? Não matei ninguém. Eles sequer ouviram o barulho dos tiros, Shu não deixou.”
     Enquanto voltavam, o professor Silvestre fez um longo discurso sobre a não-violência, que os protestos deveriam sempre ser pacíficos, lembrou Gandhi e outros pacifistas, disse que cabia ao Governo tomar qualquer atitude mais enérgica, chegou a lembrar a nova Lei da Palmada...
     Finalmente, Gertrude respondeu: “E o Governo faz o que, professor? Estatísticas, enquanto a floresta está sendo derrubada? É preciso ser muito mulher para viver na floresta. Eu não sou a única. Enquanto os homens bebem, se queixam, fazem abaixo-assinados, choram, gemem, batem o pé e gritam hu-hu-hu-hu, as mulheres agem. Chumbinho nas nádegas, ou nos glúteos, se o senhor preferir, pode resolver muitos problemas, além de proteger a natureza. Isto sim é que é legítima defesa do outro, professor!”.
     Óscarparaobrasil ouvia a conversa e fazia o possível para não pensar.

2 comentários:

  1. Adorei! fina ironia....conto de fadas e realidade....

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  2. Belo conto, com estilo diferente e muito criativo. Parabéns pelos toques bem dados aqui e ali. Quem se tocou, tocou...
    Lidia.

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