quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

TERRA DA GENTE


Assisti ao desfile cênico da Festa da Uva de Caxias do Sul e fiquei pensando na obviedade: aquela é uma cidade que cresce. Cresce, porque os seus cidadãos tem orgulho da cidade e nela investem a sua força de trabalho. Sentem vontade de trabalhar e de fazer a cidade crescer, porque o trabalho é bem remunerado; são reconhecidos enquanto participantes da sociedade à qual pertencem. Há quem possa dizer que não dá para comparar com Bagé - Caxias do Sul é um centro de força e energia. É verdade.

     Morei em Santa Maria durante os meus tempos de universitário, enquanto cursava Comunicação Social, e vi aquela cidade crescer em todos os sentidos. Na época, anos’70, a Reitoria ficava no centro. Quando saí de lá, cinco anos depois, a Reitoria já estava instalada no mais belo campus universitário que eu conheço. Tenho muitos amigos queridos em Santa Maria, pessoas que raramente vem a Bagé para não ficarem deprimidas.

     Fui convidado, em 1978, para fazer um estágio remunerado em Boa Vista, capital de Roraima, durante dois meses. Lá, trabalhei na Rádio Roraima, depois Rádio Nacional de Boa Vista, onde produzia dois programas por dia. E lá eu conheci o esfuziante povo macuxi. Naquela época, a cidade ainda não tinha duzentos mil habitantes, mas crescia, inclusive com a participação de muitos gaúchos, alguns de Bagé. Nas horas vagas, conheci hábitos e cultura daquele povo. Andei de bicicleta por toda a cidade, pesquei no meio do Rio Branco, em cima de uma barcaça e tirei duas belas piracatingas – que é o nosso jundiá -, e, naquele dia, quando voltei, ufano, para o Campus Avançado de Santa Maria e apresentei os meus trunfos para as cozinheiras elas riram de mim, dizendo que eram peixes pequenos que iriam dar para os cachorros.

     Outra vez, fui até a floresta, junto com o pessoal do Projeto Rondon, que prestava auxílio à população marginalizada, e me senti o próprio Rondon sob o verdadeiro verde, buscando trilhas que ainda não tinham sido demarcadas, encontrando indígenas que riam das nossas incertezas e dos nossos medos e caboclos que ainda usavam o pilão para fazer farinha. Certa noite, de madrugada, um dos formandos em medicina foi visitar o berçário da cidade e eu o acompanhei. Infelizmente, era época da ditadura militar e eu não pude fotografar o horror, nem reportar, depois, o que tinha visto - crianças que eram somente pele e osso, devido à desnutrição das mães, e que estavam destinadas a morrer em poucos dias, talvez em poucas horas.

     Em contraponto, os grandes palacetes dos latifundiários, que recebiam verbas fabulosas do governo do Estado, para desmatar e fazer da floresta campos de cultivo e de pecuária. O tempo passou, a ditadura fardada acabou, mas, pelo que sei de Roraima e do restante da nossa Amazônia as coisas pioraram em muito. Nem Projeto Rondon existe mais. Quando voltei a Bagé, os carros continuavam subindo e descendo a Sete.

     Morei em São Leopoldo, nos anos ’80, por cerca de dois meses e parecia estar em outro mundo. É uma cidade onde as pessoas são reconhecidas pelos seus méritos e não pelos seus bens. Tem jornais, revistas e muita atividade cultural. Tem indústrias. Na biblioteca pública, uma sala reservada apenas para enxadristas. Ali encontrei pessoas que se tornaram amigas e me convidaram para participar da equipe da Sociedade Ginástica de São Leopoldo, como sócio-atleta. Joguei com eles um torneio inesquecível, quando pela primeira vez São Leopoldo venceu o zonal daquela região. Nos finais de semana, a Rua Grande é fechada para automóveis e as pessoas passeiam e se encontram; fazem planos e são alegres, e não precisam ficar restritas a bares para buscar um prazer quase artificial.

     Com minha família, quando pequeno e ainda na minha juventude, viajei por quase todo o Brasil, com exceção do Nordeste e de alguns estados do Norte. Em cada cidade e lugarejo uma surpresa, uma novidade, um deslumbrar. As memórias que mais guardo foram os momentos de encantamento junto às esculturas do Aleijadinho em Congonhas do Campo, a surpresa do demasiado ouro nas igrejas de Ouro Preto, um momento de descanso para tomar mate junto à igreja da Pampulha, ao lado das pinturas de Portinari, o quarto onde Getúlio Vargas morreu, conservado como estava no dia da sua morte, no que é hoje o Museu do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, um entardecer às margens do rio São Francisco... O Niemeyer que me perdoe, mas Brasília, além de desnecessária e artificial, é uma cidade esquizofrênica; não sabe se pertence ao povo ou aos grupos oligárquicos que lá se sentem à vontade para as suas tramas. Lembra a ilha flutuante, descrita por Jonathan Swift em “As Viagens de Gulliver” – que só se dignava descer ao reino para cobrar impostos e fingir bondade.

     Em outra ocasião, fiquei surpreso quando cruzamos a fronteira de Santa Catarina com o Paraná. Havia um cartaz onde estava escrito: “Aqui se trabalha!”. Bastante antipático, como se no resto do Brasil ninguém trabalhasse... Mas lá os campos são todos cultivados, até a beira das estradas, como em algumas cidades do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde se trabalha e o povo é feliz.

     Como em Caxias, Santa Rosa e tantas outras cidades, principalmente na região da serra, onde o povo e a natureza são respeitados e as pessoas, mesmo quando muito velhas, acreditam no futuro que é fabricado todos os dias, com entusiasmo, e a vida sempre é uma surpresa, porque muitas são as possibilidades.

     Conheço muitas pessoas que gostariam de ir embora de Bagé, se pudessem. Mas estão presas pela família, pelo trabalho, que é pouco, mas fazer o que? E os jovens que podem estão indo embora de Bagé, porque aqui não há futuro. Esta é uma cidade opaca, quase uma cidade-dormitório para a grande maioria do povo. É a terra da gente, eu sei, e deveríamos falar bem dela, lembrar das verdes coxilhas, de Santa Tecla, das promessas dos políticos especializados em política e que somente pensam em reeleição e em ganhar mais... Mas aqui também é a terra do “já teve”. De dez anos para cá, talvez mais, é uma cidade em decadência. É certo que canteiros são “revitalizados”, museus são refeitos, praças são destruídas para depois serem reconstruídas de outra maneira, e outras maquilagens... Mas também é certo que o nosso povo anda de cabeça baixa. Cada vez mais.

Um comentário:

  1. Se eu me determinar a olhar com altivez, vou ver que aqui nascem farmácias como em outros lugares nascem cinemas, teatros e livrarias. Tenho andado de cabeça baixa e olho o asfalto sobre as pedras e não sei o que pensar de tudo isto. Nasci aqui, amo Bagé, mas cada vez que saio a volta é mais dolorida. Não encontro os velhos amigos como acontecia nas manhãs de sábado, não sei o que aconteceu. Se estão em casa pensando se já dá para ir a farmácia com o dinheiro do mês, se foram embora, se morreram e nem a Difusora a gente consegue escutar mais.

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