sábado, 25 de junho de 2011

BERRA BOI


Imagine-se um boi morto. Não qualquer boi magro a quem o sol reivindica o último suor da morte. Mas um boi aproveitável, um boi que, na verdade, não está morto. Ainda. Um boi vivo que já passou da idade de morrer, sob o constante e insistente olhar perscrutante de todos os outros animais da manada. Não somente os bois, mas todos os outros animais, principalmente aqueles que adoram carniça e que desejam que você morra logo e se transforme em carne. Carne morta. Degustável. Carne que servirá para ser bicada, estraçalhada, rompida, dividida.

     Imagine-se boi. Um boi que já passou da idade de viver, mas que insiste em saborear a vida. Agora sob o olhar vigilante dos corvos, que o querem morto como na poesia do Bandeira. Não por suposta fome, porque são tantas as carniças espalhadas pelo campo, que já estão enfastiados. Mas pelo prazer de vê-lo morto para poder dilacerar as suas carnes, para dividi-lo em postas que poderão ser comidas, eventualmente.

     Imagine-se um boi que acredita nos demais bois e tem afeição pelos outros animais que não são bois. Uma espécie de boi franciscano. Um boi ingênuo. Não interessa a sua idade, porque você não se preocupa mais com essas coisas, pois já viveu todos os tempos e saboreou todas as pastagens e bebeu de todas as águas e apenas deseja continuar a ser o que você sempre foi – boi, descomedido boi. Mas boi vivo, que ainda se delicia com o por-do-sol e com o amanhecer e com o estranho mistério do brilho das estrelas mortas, que você não vê, mas adivinha.

     Imagine-se um boi que confia nos demais bois, que não percebe as aves de rapina que já o desejam morto e que se enraivecem pela sua persistência em continuar vivo e um dia, sem qualquer aviso, decidem matá-lo. Não de frente, porque tem natureza traiçoeira, mas usando de ardis.

     Um belo dia – e todos os dias são belos para você – você acorda e vai beber água. E não encontra a água. Vai comer e o pasto já não está no mesmo lugar. Você reclama, ergue cartazes, faz passeatas, exclama um raivoso “buff” quando percebe aquelas aves a espreitá-lo. Mas de nada adianta. Os corvos são espertos e falaciosos e dizem que para você beber água deverá pagar o preço da rapina e para você comer o seu pasto precisará empenhar o seu couro para eles. Você reclama, mas eles mostram leis. Leis que favorecem apenas a eles, carnívoros voadores - tão espertos com os seus bicos sempre vorazes e a sua eterna roupa preta de velório.

     E você apenas boi. Inocente boi. Mas boi com fome e com sede. Boi a quem negaram o simples direito de continuar a ser boi e que somente reaverá esse direito se pagar aos rapinantes o preço da rapina.

     O que você faz, preclaro boi? Deixa-se morrer de tédio e desilusão e desânimo? Deixa-se matar, aos poucos, para que os corvos enfim se satisfaçam com a sua morte e com o seu penhorado corpo? Clama aos céus, esperando que um anjo vingador lhe faça justiça, ou lembra dos seus tempos de touro e investe contra os corvos?

     Mesmo sabendo que talvez não adiante nada, porque os corvos tem asas e voam e tem amigos, muitos amigos, que talvez também estejam interessados em alguma parte do seu corpo e você é um boi, pesado boi, insofismável boi, destemido boi. Talvez quixotesco boi.

     Quem olha para você vê apenas um boi dentre tantos bois do rebanho. Mas, se olharem bem, verão que você é o boi que berra, que não se intimida, que não se limita a apenas pastar indolentemente, mesmo quando o pasto é ralo. Você é o boi que busca novas pastagens e novos rios, o boi que muge forte e que investe contra os corvos que o desejam morto e estraçalhado e não se deixa dominar pelos seus fixos olhares, ceifadores como a morte.

     Agora você sabe que eles o querem morto, caído, quieto como um espólio a ser dividido por credores famintos. Mas não se importa mais porque descobriu que a vida é descoberta a cada segundo e bichos que comem bichos mortos não passam de lixeiros, que usam leis próprias para apressar a morte dos que desejam saquear. E você se rebela contra isso; prefere lutar a ser somente mais um boi.

     Mas como lutar, prestimoso boi, se a manada inteira é feita de bois de canga, subservientes bois, cansados bois, anestesiados bois, bois que apenas pastam e mugem e nada mais desejam senão pastar e mugir dolentemente, bois que nada sabem dos corvos, ou, se os vêem os ignoram, porque acreditam que não se pode fugir ao destino pré-traçado, escolhido pelo grande Deus Boi?

     Desesperas, revoltado boi? Ou ainda berras o teu berrar de boi inconformado com os eternos scraps pré-fabricados nas empresas dos que pregam o conformismo, a aceitação da mesma paisagem em variações para todos os tipos de bois, desde que sejam mansos? Como pesa sobre ti a sombra dos corvos?

     Talvez participes da marcha dos ingênuos, programados ingênuos, que somente desejam um pasto mais alucinógeno ou entre no twitter para declamar a tua insatisfação de boi inconformado em 140 toques, ou brinque de muitos amigos no facebook, onde muitas revoluções são feitas, estimado boi, menos a tua, a revolução que te libertará dos corvos, que te fará acreditar em outras possibilidades, além deste mundo pastagem, onde todos apenas pastam, satisfeitos ou submissos e trocam mensagens sobre como é bom este variado pasto, que um dia sumirá, mas é a vida!?

     O que te restará, mágico boi, quando sentires a inevitável coorte de corvos sobre a tua insubmissa carcaça, senão a magia suprema, a transformação em touro bravo, mais que isso, esfinge, aterradora esfinge, com suas asas a planar sobre a plácida manada em infinito berro?

Um comentário:

  1. Muito interessante este boi! Excelente a visão de como estamos inseridos na sociedade, alienada e predadora. Parabéns!
    Lidia.

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