sábado, 24 de março de 2012

A CULPA É DA VÍTIMA

(obra  de Portinari)

A culpa é da vítima. Principalmente se a vítima for pobre e desconhecida e tiver o desplante de pedalar em ruas que deveriam ser reservadas apenas para os carros, um símbolo de poder neste Brasil tão aculturado que até programa de culinária é temperado com música estrangeira.

     A nossa cultura deve ficar escondida embaixo do tapete, porque somos brasileirinhos e não brasileiros. De vez em quando alguns vão até a Disneylândia bater o ponto, outros vão ao Canadá aprender inglês ou são assassinados nas ruas européias. Outros, mais brasileirinhos ainda, pensam que o país é de todos e escolhem erguer casebres em lugares de onde serão expulsos a tiros e cacetadas, e depois assistem ao discurso da Grande Mãe que afirma que vai acabar com a miséria no país. Faz parte da nossa cultura ser expulso pela polícia a pauladas.

     A culpa é da vítima. Principalmente se a vítima não concordar com a cultura importada e preferir usar bicicleta nas ruas deste Brasil tão grande. Acreditar que o Brasil é nosso também faz parte da nossa cultura. Nunca aprendemos que o Brasil é, em primeiro lugar, daqueles que tem muito poder e dinheiro. Depois é que vem os outros, em gradual escala decrescente, de acordo com o poder aquisitivo de cada um. Este é um país que vai pra frente.

     Pra frente dos carros, dos ônibus, dos caminhões, de todos os veículos automotores dirigidos por pessoas com licença para matar principalmente pedestres e ciclistas – porque a culpa sempre será da vítima.

     Além dos pedestres – o que já se tornou corriqueiro e nem mais é considerado notícia – a moda agora é matar ciclistas. Ciclocídio no Brasil mambembe.

     Somente neste mês de março de 2012, de acordo com o blog VITÓRIA SUSTENTÁVEL –http://vitoria sustentável.blogspot.com.br – foram atropelados e mortos 50 ciclistas. Remeto o leitor àquele blog para ver a lista.

     Alguns dos assassinados, digo, dos acidentados, foram notícia, como a ciclista Juliane Ingrid Dias, atropelada por um ônibus, em São Paulo, a jornalista Márcia Shoo, que fazia uma trilha em Maceió e foi atropelada por um caminhão, ou o servente de pedreiro Misael Severino dos Santos, atropelado por um Chevette na região metropolitana do Recife, PE.

     Mas o mais famoso acidente foi o que envolveu Thor Batista, filho do milionário Eike Batista e que resultou na morte do ajudante de caminhão Wanderson Pereira dos Santos, de 30 anos.

     Thor afirma que a culpa é da vítima.

     A escritora catarinense Urda Alice Klueger, autora de diversos livros, em um trecho de sua recente matéria intitulada “MORREU NA CONTRAMÃO ATRAPALHANDO O TRÁFEGO”, escreve:

     “A verdade que se tenta encobrir com as versões de Eike e a omissão de seu até aqui mudo filho mais velho, visa resultar na transformação do ajudante de caminhoneiro de vítima fatal em principal culpado de sua própria morte. Uma manobra com requintes de crueldade. Com a mesma determinação demonstrada por Thor e os dois homens que o acompanhavam no carro de, até aqui, não abrir a boca sobre o que de fato aconteceu, Eike aninhou-se no twitter para pilotar pessoalmente a sua versão sobre o fato. Ele já determinou que o ciclista foi colhido quando pedalava pela segunda pista, a de ultrapassagem, em lugar do acostamento, como sustenta a família. Também disse que, apesar da falta de confirmação da perícia, ela foi sim feita pela polícia, apesar de o carrão ter sido liberado logo após a morte de Wanderson."

     E começa a sua matéria dizendo:

     “A sabedoria popular já traçou o desfecho do caso: "não vai dar em nada, vai ficar tudo por isso mesmo”."

     Óbvio. Qual o juiz que vai condenar o filho de Eike Batista?

     Eu moro em uma cidade onde não existem ciclovias, as calçadas são estreitas e os motoristas, ao mais das vezes, não são confiáveis. Dia desses, ouvi um motorista indignado dizer que os canteiros deveriam ser retirados para que as ruas sejam aumentadas. Já começaram a cortar as árvores. Em vez de árvores, agora temos florzinhas nos canteiros. O governo municipal chama isso de “revitalização”. Valentim Casali, ex-vereador, ano passado, amarrou-se com correntes em uma das poucas árvores restantes para evitar que fosse derrubada. Esta é uma cidade muito perigosa. O governo daqui é motorizado.

     Ainda sobre o acidente que matou Wandersson, Urda diz, no seu artigo:

     “Sua vida era, como a de tantos, uma repetição. Em muito parecida com a descrita por Chico Buarque em Construção, de 1971. Wanderson devia atravessar “a rua com seu passo tímido” e agradecer a Deus por lhe deixar “respirar”, por lhe deixar “existir”. Sabe-se que era humilde, respeitador das regras sociais, atento à família. No mesmo paralelo do operário que “ergueu no patamar quatro paredes sólidas”, ele também vivia do trabalho braçal, trocando pesados pneus, sujando-se de graxa e poeira. Como o personagem de 41 anos atrás, agora mais que presente, também Wanderson “morreu na contramão atrapalhando o sábado”. O sábado da elite. Thor teria ao chegar o desfrute de uma festa que estava sendo dada por seu irmão Olin, para 150 pessoas.”

     É muito perigoso atrapalhar o tráfego, o trânsito e até o tráfico. Principalmente se você for pedestre ou ciclista. Nos sábados à noite nem pensar! As pessoas tem o hábito de correr nesses dias. Geralmente embriagadas ou sob o efeito de outra droga. Mas estamos no Brasil, onde drogar-se é uma questão de status. A própria presidente do país está inclinada a transgredir o Estatuto do Torcedor e orientar a sua base no Congresso para que vote a Lei da Copa liberando bebidas alcoólicas dentro dos estádios durante os jogos da Copa do Mundo. Tudo para agradar e obedecer a FIFA, que estará mandando no Brasil naquele período de festividades, em 2014.

     Imaginem os torcedores adeptos desse tipo de droga, depois dos jogos, devidamente embriagados, saindo nos seus carros e atropelando pedestres e ciclistas. A culpa sempre será das vítimas.

     Esta é a terra do crescimento acelerado, onde tudo pode ser feito, desde que dê lucro. Por isso estão desmatando a torto e a direito e destruindo o Parque Indígena do Xingu, uma das maiores reservas ambientais do mundo que está sendo ameaçada de extinção pela construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. A usina destruirá inúmeras espécies animais e vegetais e desalojará os indígenas das suas terras. Mas, segundo Dilma e seus assessores ávidos por desenvolvimento acelerado, cada vez mais acelerado ao ponto de atropelar o que estiver pela frente, os índios, os animais e as plantas que saiam de lá. A culpa é da vítima.

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