sábado, 12 de março de 2011

O QUE É DO POVO


Quando Ulisses finalmente voltou para Ítaca e, depois de matar os pretendentes de sua esposa que o julgavam morto e queriam desposar Penélope, esta, para testá-lo e ver se realmente aquele que voltava depois de vinte anos para casa era o seu marido, disse à sua serva, Euricléia, que armasse uma cama para Ulisses.

    
     Ulisses retrucou indignado, perguntando o que tinha sido feito da cama de casal, que não poderia ser movida nem pelo mais forte dos homens. E explicou a Penélope a maneira como ele a tinha construído, a partir de um tronco de oliveira. Somente assim Penélope ficou convencida que aquele era realmente o seu marido, que voltava da guerra de Tróia, que durara dez anos - depois de muitas aventuras que o fizeram demorar outros dez anos. Aquele era o principal segredo entre os dois esposos.

     Um povo não é apenas o habitante de determinado território por capricho, mas devido à sua própria história que o levou a habitar aquele e não outro lugar. 

     Há todo um processo de simbiose, de amor, entre um povo e o lugar em que mora. Se perguntarem aos catarinenses se gostariam de mudar de lugar com os gaúchos, passando todos a morar no Rio Grande do Sul e os riograndenses a morar em Santa Catarina, a resposta seria um indignado “Não!”. E vice-versa. Tampouco os gaúchos gostariam de morar em Santa Catarina ou em qualquer outro estado do Brasil.

     Ao pensar conquistar uma terra, o homem, na verdade, é seduzido por ela devido a determinados sinais e pequenas cumplicidades que fazem com que o homem e a terra, com o passar do tempo, passem a ser um só. 

     E abandonar a terra de origem é sempre um processo de tortura íntima, que somente acontece por extrema necessidade. O contrário, voltar para a sua terra – e não somente para os seus, mas para tudo o que significa estar em território próprio – é um momento de reencontro consigo mesmo.

     A história da volta de Ulisses para Ítaca, que durou dez anos, segundo a "Odisséia", também é a história da tentativa do reencontro com a sua terra natal, com a pátria mãe.

     E nessa história – que representa, simbolicamente, a busca do Homem pelo seu próprio destino, que sabe estar em seu ponto de partida, na força primária que o empurrou para lutas e aventuras mas que sempre o requer de volta para lhe dar novas forças – Ulisses sofre todo o tipo de desventuras, com a perda dos companheiros, e tentações ilusórias que o fazem demorar-se em belos mas falsos lugares. 

     Mas Ulisses luta contra tudo isso porque o seu único desejo é rever a pedregosa Ítaca, banhada pelo mar e onde se criam carneiros. Uma pequena ilha do Mediterrâneo que talvez fosse o último lugar para um estrangeiro, mas o único e verdadeiro lar onde o herói de Homero poderia reencontrar a sua força vital.

     Porque a relação dos homens com a sua terra é uma relação de vida, de aconchego, de amor, de intimidade – relação esta que não pode ser confundida como de mera propriedade. O Homem apropria-se da terra na mesma medida em que a terra apropria-se do Homem, numa relação fraternal de trocas que incluem carinho e cuidados mútuos. Quando assim não é, essa relação torna-se estéril e agressiva.

     Na minha cidade, Bagé, os originários desta terra, os que aqui nasceram e principalmente aqueles, como eu e tantos outros, que tem uma família que ajudou a construir a cidade, existe essa relação de mútua cumplicidade. Com o passar do tempo, essa relação nunca se diluiu, mesmo com a vinda para cá de pessoas de outros países - como os sírio-libaneses – ou pessoas de outras cidades brasileiras que escolheram Bagé para exercerem os seus ofícios. Ou para buscar o poder.

     Já faz quase dez anos que pessoas que não nasceram aqui dominam o poder municipal. O primeiro – Mainardi – que hoje é deputado estadual e secretário do Tarso e foi por ele criado politicamente e encaminhado para Bagé, parecia ser uma esperança contra as oligarquias dominantes. E continuou a ser essa esperança ainda durante algum tempo, depois de eleito prefeito pelo PT. 

     Até o instante em que se definiu – assim como todo o PT brasileiro – por fazer alianças com as mesmas oligarquias que havia combatido. O reflexo foi a saída do partido de quase todos os antigos membros do PT, principalmente os bajeenses, e um governo de oito anos que se caracterizou pelas alianças e os conchavos políticos.

     Mas se fosse só isso... Ocorre que a relação de cumplicidade, não com o povo, mas com o lugar onde habita o povo, de uma pessoa que nasceu e viveu em Sobradinho até o momento em que veio para Bagé com a missão específica de se tornar prefeito municipal, através de um partido que na época era clandestino – o PCBR, depois Nova Esquerda – que depois se transformou no PT de hoje... Essa relação de cumplicidade nunca existiu.

     Praças foram demolidas para depois serem reconstruídas sob o pretexto de “revitalização”. E antigas árvores foram arrancadas pela raiz. 

     Na praça da Estação, que assim ainda é chamada pela maioria da população, foi retirada uma cerca viva, que constituía um dos lugares mais belos da praça. O gramado, que um dia foi bem tratado, foi abandonado e achou-se uma maneira de ganhar dinheiro através do aluguel de carrinhos, provavelmente “terceirizados”, para as crianças se exercitarem pedalando por toda a praça. Os antigos bancos, feitos de pedra e cimento, foram retirados e em seu lugar vemos hoje esparsos e desconfortáveis bancos de madeira. A praça transformou-se em uma espécie de jardim da infância ao ar livre. Trocaram-se as antigas e tradicionais luminárias por grotescos postes pintados de vermelho encimados por lâmpadas.

     Para as novas gerações de pais foi uma maravilha, porque ali podem levar os seus filhos e deixá-los brincar à vontade. Mas para os que se acostumaram a ter aquela praça como um lugar de descanso, prazer e fruição do pouco que nos resta de natureza, foi um desastre.

     Depois do Mainardi, sucedeu-lhe o Dudu, do mesmo partido, e, mesmo sendo também de outra cidade, tem um modo de pensar mais leve e acessível. Conheço o Dudu de muito tempo e sei que ele é uma pessoa boa, embora se saiba que o poder transforma as pessoas. 

     Mas ocorre que já havia todo um plano de “revitalização” das praças em andamento. E outra praça, a praça de Desportos (onde antigamente havia quadras e pequenos campos de futsal) já não é de desportos, mas de inúmeras bancas onde se vende desde cerveja até cafezinho e onde a gurizada vai namorar e fumar os seus baseados nos novos nichos construídos. 

     Mas com um triste adendo. O ex-prefeito Mainardi - na tentativa de promover o turismo e agradar a classe média e a pequena burguesia e deixar o povo aparvalhado -, promoveu o que denominou de Moto Encontro, que consiste na vinda a Bagé de motoqueiros de todo o país, que se hospedam nos melhores hotéis, ostentam as suas motocicletas caríssimas, mostram as barbas, jaquetas e óculos demodée, fazem algumas festas por alguns dias e vão embora depois de um desfile.

     Até aí tudo bem. Os comerciantes ficaram muito faceiros e é para isto que os prefeitos promovem esse tipo de evento. Mas na praça de Desportos – que agora deve ter outro nome – foi erigido um “Monumento À Moto”. Não riam, é verdade. De um mau gosto extremo, não só a idéia como a própria escultura. E que não significa nada para os bajeenses.

     Na praça Silveira Martins, bem em frente a Prefeitura, também foi feita uma "revitalização", mas desta vez tiraram poucas árvores. Na verdade, ninguém sabe exatamente em que consistiu a tal de revitalização, mas todos sentem falta dos antigos bancos e tem ojeriza por aqueles grotescos postes pintados de vermelho.

     Quase em frente a essa praça, em um espaço que todos acostumaram a chamar de calçadão, mas que já foi conhecido por Praça das Bandeiras em uma época em que Bagé era dos bajeenses e ali havia um Mercado Público modelo, além de estar enfeitada com quiosques que a prefeitura aluga aos interessados, as poucas árvores que ainda sobraram estão ameaçadas pelo "Poder Público" - que não tem vergonha de assim se denominar.

     A tal ponto que quando funcionários da prefeitura foram cumprir a ordem maníaca de arrancar uma das últimas árvores, um bajeense de verdade - o professor e ex-vereador Valentim Casale - amarrou-se à árvore, impedindo a atrocidade.

     Percebe-se que esses prefeitos “estrangeiros" são muito aliados à Associação Comercial e Industrial de Bagé (ACIBA), da qual dependem para os seus projetos políticos pessoais. Mas essa Associação também tem os seus próprios planos desinvolvimentistas e para isso usa a escancarada aliança coma prefeitura.

     Agora estão demolindo casas que pertencem ao patrimônio histórico de Bagé. Em nome do desenvolvimento e progresso - a velha história. Na verdade, todos sabemos que é em nome do dinheiro no bolso.

     Tanto é assim, que em dezembro do ano passado dezenas de pessoas abraçaram, de mãos dadas, um dos casarões antigos da cidade e que já estava parcialmente destruído e recebera ordem de demolição da Prefeitura. Adornos antigos já haviam sido retirados das paredes externas. Isso evitou a destruição imediata daquela casa tão estimada pelos verdadeiros bageenses.

     Os prefeitos em si não são maus; mas acreditam que tudo na cidade poderá ser usado em benefício de sua política. Não nasceram aqui, não conhecem a cidade, pouco sabem dos hábitos, da cultura, do modo de ser dos bajeenses. Entendem a cidade que administram como um objeto a ser desfrutado, utilizado, manuseado. Algo que existe para dar lucro, quase como uma propriedade sua, principalmente se levarmos em conta que o Legislativo é deles.

     Assim como os pretendentes de Penélope que não haviam nascido em Ítaca e quase destruíram a casa de Ulisses.

     Entendo a Bagé governada por esses prefeitos como um microcosmo do Brasil governado por Lula e agora por Dilma. Dilma destruirá o Xingu e o que for necessário do Brasil para impor, de qualquer jeito o seu Plano de Aceleração do Crescimento. Uma das razões é que não nasceu no Pará e conhece o Brasil apenas pelo mapa.

     Talvez Dudu não chegue a esse ponto em relação a Bagé. Mas, aos poucos, me dou conta que não é uma questão de Dudu ou de Mainardi, mas toda uma fria mentalidade que não tem nada a ver com o que Mercinha, uma das nossas melhores poetisas, apelidou de “sentimento de bageensidade” – ou bageen-cidade.

     Penso que esses senhores políticos profissionais, eleitos graças ao "é dando que se recebe" e a uma demagogia estudada aliada à prática petista da compra do povo através das mesadas e outros expedientes nos quais se mostram especialistas, acreditam que o cargo de prefeito tem o mesmo significado que o de déspota.

        E o que me deixou mais decepcionado e triste e que me resolveu a escrever esta matéria foi quando descobri, dia destes, que o famoso galho de uma das menores praças de Bagé, que ainda estava intocada, ou quase, pela administração municipal, talvez por ser pequena e quase invisível... Aquele famoso galho de um querido salso-chorão, que várias gerações tinham conhecido e admirado tinha sido cortado. Não só ele como outros da mesma árvore.

     Era um galho que tinha nascido torto e crescera lateralmente, quase tocando no chão. Todos admiravam aquela esquisitice da Natureza, tão bela e pura. Era um lindo galho; nodoso, forte, onde os ramos não se negavam a nascer. 

     Todos os verdadeiros bajeenses quando o viam sentiam que Bagé ainda estava viva. Passavam por cima com todo o cuidado para não machucá-lo ou, simplesmente, o contornavam. Não fazia mal a ninguém. Era de todos, era do povo. E foi mandado cortar por pessoas insensíveis. Pessoas que nada conhecem do coração e da alma de Bagé.

Um comentário:

  1. Não nasci em Bagé, mas aqui moro há mais de quarenta anos, portanto o coração a adotou e me identifico plenamente com a abordagem feita em relação ao que acontece por aqui. Às vezes, a vontade de ir para outras paragens é grande, mas concordo que "pedra que muito rola não cria limo", e concluo que devo lutar pelas mudanças por aqui mesmo. Excelente enfoque dado à matéria, que se aplica a qualquer outro lugar e circunstância.
    Lidia.

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